sábado, junho 24, 2006

O que realmente está em jogo em 2006?

José Dirceu,
ex -ministro-chefe da Casa Civil
[22/JUN/2006]


Quando terminar a Copa do Mundo, outro jogo ocupará o campo principal das atenções nacionais e nele, estará em disputa aquilo que os próprios tucanos, finalmente, já admitem: a escolha entre dois projetos distintos de desenvolvimento para o Brasil do século XXI. Não há mais dúvida de que o governo Lula não foi uma continuidade do governo FHC e representa uma mudança, pois iniciou um novo ciclo econômico, diferente do modelo neoliberal dos anos 90.
Todavia, agora que já se admite a existência de uma alternativa em andamento, os críticos, da oposição, questionam nossa capacidade de sustentá-la, face ao ajuste da economia mundial, que pode ter começado com o aumento da taxa de juros nos EUA.
Na verdade, é paradoxal que, diante da incerteza, se defenda um retrocesso ao neoliberalismo tucano, quando se sabe que o principal obstáculo ao desenvolvimento brasileiro decorre, justamente, da herança fernandista. Tanto o desequilíbrio macroeconômico quanto a subordinação ideológica do Estado a esquematismos escravizantes – como o é a orientação rentista imposta à política monetária — são gargalos com denominação e origem consagradas.
O primeiro governo do presidente Lula retomou o controle da inflação. Mas, diferentemente da estagnação que caracterizou o ciclo tucano, promoveu, simultaneamente, a retomada do crescimento, com a criação média de 1,2 milhão de empregos por ano. Ademais, fez uma ruptura benigna na área externa, trocando a subordinação aos guichês do FMI e ao governo dos EUA por uma inserção comercial competitiva e soberana no mercado mundial. Ganhamos, assim, um colchão de reservas quatro vezes superior ao disponível na era FHC. Bancos públicos e governo federal voltaram a investir nas áreas de energia, petróleo, ferrovias, portos, agricultura familiar, habitação, saneamento e turismo. A natureza do desenvolvimento mudou com a emergência de um mercado de massas, apoiado na expansão do emprego, da renda e do crédito ao consumo.
Os responsáveis pelo descalabro tucano, que agora propõem uma volta ao passado, esquecem-se da situação em que deixaram o Brasil. O que herdamos, em 2003, foi o rescaldo desastroso de uma crise energética, que custou – preços atuais – R$ 50 bilhões em prejuízos a toda sociedade.
O custo do déficit em conta corrente, depois de oito anos de estrangulamento externo, foi de 188 bilhões de dólares. Isso, sem falar na desagregação social cujas conseqüências o Brasil ainda enfrenta, apesar dos cinco milhões de empregos criados no governo Lula e do aumento com os gastos sociais. Todavia, o governo Lula manteve uma política monetária e, por conseqüência, um câmbio que inibem o crescimento e paralisam a nova política industrial e de inovação, impondo limites ao desenvolvimento do país.
A questão é se vamos retornar ao passado ou vamos avançar na agenda iniciada pelo atual governo. Vamos aumentar os investimentos públicos, com redução dos juros e um câmbio de exportação, fazendo como todos os países, inclusive os EUA, ou vamos aceitar a agenda do passado, que sempre exige corte nos gastos sociais, mais superávit, diminuição da participação dos salários na renda nacional, privatizações e mais abertura comercial, via Alca?
Não estamos fadados a um processo de esgotamento do atual ciclo, como sugerem os críticos tucanos, ao propalar que ele se apóia no aumento dos gastos públicos e da carga tributária, numa política de juros altos e câmbio valorizado que estrangulará nossa política exportadora e o impulso inovador de nossa economia.
A questão decisiva, agora, portanto, é armar o segundo tempo do jogo, para completar de vez a travessia para um modelo de desenvolvimento, lastreado em quatro motores: mercado interno de massa, apoiado em um amplo programa de distribuição de renda; revolução educacional; política de exportações agressiva e integração sul-americana que adicione respostas continentais aos impasses econômicos gerados pela volatilidade mundial. Mas não é possível construir esse modelo de desenvolvimento sem uma ampla reforma política e administrativa e sem o aumento dos investimentos públicos em infra-estrutura de transportes e urbana.
Não se pode mais responder com hesitação ao projeto regressivo embutido na análise tucana. É necessário fixar metas com audácia e criar os instrumentos de consenso político para alcançá-las. A um Conselho Monetário Nacional ampliado e democratizado caberia articular metas de inflação e de crescimento industrial, com criação de dois milhões de empregos por ano e não mais 1,2 milhão de empregos, como já fizemos no primeiro mandato.
Vivemos um momento de transição de um modelo para outro. Se chegamos até aqui, a duras penas, não é agora que iremos recuar ou andar em círculos. Pagamos caro pela memória trazida dos anos 90, já não mais inflacionária, mas ortodoxa, de juros altos e câmbio valorizado. Aprendemos com os erros e acumulamos experiência preciosa para construir, num segundo mandato, um projeto de desenvolvimento à altura do nosso povo e do tamanho do Brasil.