sexta-feira, junho 09, 2006

Circo de horrores

por Mylton Severiano

A primeira edição extra de Caros Amigos, 28 de maio de 2006, dedicada ao PCC, Primeiro Comando da Capital, arrepia. Pasma constatar: quase 250 anos depois da publicação de Dos Delitos e das Penas (1764), nosso sistema carcerário e o aparato ideológico que o envolve parecem reportar-se ainda ao Código de Hamurabi e à Lei de Talião (2000 a.C.).

Sempre temos notícias de que nossas prisões são cruéis. Mas não imaginamos o quanto. Cadeia não foi feita pra cachorro, diziam nossos avós. Em Dos Delitos e das Penas, Cesare Beccaria, o marquês de Beccaria, filósofo e jurista italiano (1738-1794), pregou a humanização da pena. Ela não deve exceder a privação da liberdade – quer pior pena que ser privado da liberdade? Há dois séculos e meio, o jurista e professor de direito milanês pregava a educação como prevenção do crime. Um marco na moderna história do direito.


Contudo, o que salta dos relatos de João de Barros, Marina Amaral, Roberto Manera e Thiago Domenici, nessa edição extra, são torturas, humilhações, cães ferozes a morder presos nus (sob comando do atual deputado estadual Conte Lopes), trabalho escravo, processos “kafkianos”. Prendem mãe que furtou manteiga ou remédio para o filho (furto famélico) e deixam à solta sonegadores de milhões de reais. Mantêm gente amontoada – e há dezenas de milhares de mandados de prisão só em São Paulo: precisariam triplicar o número de cadeias! Salta aos olhos que a cadeia e as forças repressoras mal contêm a “formatura” anual de cada vez mais levas de “bandidos”, caso não se estabeleçam urgentes mecanismos de distribuição de renda.


Há gente literalmente mofando, novatos misturados a reincidentes; cafuas 22 horas por dia; transferências ilegais para longe das famílias, surras com barra de ferro; rés primárias “enterradas em pé”. O inferno é aqui, para os presos pobres.
Não fosse o PCC, a situação estaria pior, não é incrível? Organizaram os presos na luta por seus direitos e impediram mortes entre eles, dentre outras coisas. E um desembargador, cujo nome o ex-secretário de Segurança de São Paulo, Marcos Vinicius Petreluzzi, omite na entrevista ao João de Barros, sugeriu que é fácil acabar com o PCC: “pegar o líder e pôr numa cadeia dominada por outra facção, eles matam o cara rapidinho”. Um desembargador! Um juiz! O próprio secretário atual, Saulo de Castro, adota o lema “bandido bom é bandido morto e enterrado na Lua”. O delegado Ruy Ferraz Fontes, do Deic, Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado, ante-sala do inferno, inscreveu na porta de seu gabinete: “Direitos humanos para os humanos direitos.”


Deve se achar o máximo! E até comunicador pensa e propaga este sofisma idiota. Devem pertencer esses, desembargador, delegado, secretário, comunicador, à “elite branquinha”, apontada pelo governador Cláudio Lembo como responsável pelo maio sangrento. (O Cláudio Lembo, quem diria. Comprova que se pode encontrar gente não tão má no inferno como gente não tão boa no céu.)
Pergunto: tal como os delinqüentes “de fato”, esses delinqüentes “de direito” não deveriam, como pregou Beccaria, ser reeducados? Em que faculdade estudaram? Que professores lhes ensinaram? A OAB, Ordem dos Advogados do Brasil, que os aprova, não lhes examina o caráter? São mais obtusos e sem entranhas que muito bandido.


E o circo de horrores que a PM patrocinou em seguida ao ataque do PCC? Média de quinze mortes por noite, à socapa. Anunciadas pelo major Sérgio Olímpio Gomes, diretor da Associação de Oficiais da PM, às claras, em entrevista ao Globo: “Vai morrer uma média de dez a quinze bandidos por dia a partir de agora.” Bandidos? Garotos, entregador de pizza, namorado à espera da namorada, cabeleireiro a fechar as portas com medo, mãe de preso ligado ao PCC cuja casa invadiram. Tiros nas costas, na nuca. Coisa de bandidos. Que PM!
Agiram pior os “homens da lei”. Tanto na ação covarde ao matar inocentes, quanto, pior ainda, por serem agentes do Estado. Lei de Talião – olho por olho, dente por dente. Anti-Cristo.


Choremos uma nênia pelos mortos de todos os lados, inocentes úteis ou inúteis desta engrenagem infernal que a “elite branquinha” montou e celebra em tintins.
A PM, em alguns Estados, não há mais quem controle. Peço sempre às forças superiores que me livrem de bandido. Com fervor redobrado peço me livrem de peeme. O melhor seria extinguir a PM. Não os peemes, claro. O povo agradeceria. Que é contra o povo que se voltam. Há lugar para todos neste mundo de Deus.

Isto daria um livro. Por ora, o que se depreende dos fatos e da leitura desse número extra são duas medidas para minorar o sofrimento do povo: fim da PM; legalização das drogas ilícitas. Chutando, um terço da massa carcerária é pobre-diabo, pobre-diaba apanhados vendendo trouxinha de maconha, sacolé de coca. E prisão custa “uma fortuna”, diz Petreluzzi:

“O dia em que a droga voltar a ser um caso de saúde pública, você acaba com a droga ilegal.”

E já esvaziaria prisões. O delegado Cosmo Stikovicz diz que nem poderia dizer o nome dos cabeças do “tráfico”, senão seria processado. Quem são os “patrões”?
“Se eu dissesse os nomes de alguns desses suspeitos, você cairia para trás”, declara Cosmo. E esses estão acima da lei.
Por que Cosmo não diz? Aceitaria depor numa CPI?
Há muitas questões explosivas nesse número extra da Caros Amigos. Um banho de jornalismo. Daria um livro-reportagem.

Mylton Severiano é jornalista.

Caros Amigos