FHC e seus amigos, de tanto clamarem por choques, parecem ter perdido a lucidez. Em palestra na faculdade de medicina da USP, com ares de indignado, FHC repetiu o mantra tucano-pefelê de que o Brasil precisa de um “choque moral”. Embalado pelo belíssimo trabalho realizado na segurança pública no estado de São Paulo, Alckmin é outro que vive pedindo “choque de gestão”. Talvez seja pela fixação em descargas elétricas que eles escolheram como candidato a vice o ministro do apagão, o senador José Jorge.
Ao defender um choque moral, provavelmente FHC defende que seja ampliado o combate à corrupção. Todos concordamos em combater e eliminar a corrupção no Brasil. O problema é que, ao criar um slogan como esse, FHC, que pouco fez nessa área, presta um desserviço ao país, embaralhando e confundindo as idéias para que o importante saia do foco.
Não há dúvidas sobre a diferença entre o trabalho de combate à corrupção realizado no governo Lula e o pouco que aconteceu no governo anterior. Eleita como prioridade, a Polícia Federal no governo Lula realizou mais de 180 operações, 2.961 prisões e aumentou em 61,5% seu efetivo, desbaratinando várias quadrilhas, muitas delas envolvendo funcionários públicos, empresários e parlamentares. Mas a questão não é apenas comparativa – até porque é muito injusto comparar o incomparável; os números são muito cruéis com FHC.
O convívio com a corrupção não é privilégio da sociedade brasileira. A tentativa de levar vantagem e corromper, infelizmente, tem sido vivenciada por várias nações. A isso, porém, o Brasil somou uma indecorosa desigualdade social e regional e uma incivilizada concentração de poder e renda na mão de pouquíssima gente, a maioria localizada no centro-sul do país.
Ao tentar classificar os problemas do Brasil como morais, FHC usa de uma lógica privada para tratar de questões públicas. Nosso problema não é moral, mas político. A boa ou má qualidade dos políticos é uma circunstância que só pode ser avaliada – e corrigida, se for o caso – pelo bom exercício da cidadania e pela solidez de nossas instituições. Como nos ensina a professora Marilena Chauí, “uma ética pública só é possível pela boa qualidade das instituições públicas”. O contrário disso, como quer fazer parecer FHC, é depositar as esperanças e energias nas virtudes das pessoas, o que é antidemocrático e ilusório.
FHC alimenta essa ilusão de conteúdo privado para manter a coerência com o que fez no seu governo: tratou o patrimônio público como coisa particular, privatizando quase tudo, aumentando a dívida pública e o desemprego, elevando o risco-país, controlando o câmbio artificialmente e levando o país à beira da falência. A moralidade pretendida por ele é a que pretende eleger supostos tutores do povo e nega a participação popular na decisão dos rumos do país.
Certamente é isso o que o incomoda. Fernando Henrique e seus aliados não se conformam com tantas conferências nacionais, com a descriminalização dos movimentos sociais e com tanta gente sendo convidada a participar da construção de um país menos desigual e efetivamente democrático. Essa nova e civilizada relação entre Estado e sociedade é inaceitável. Para eles, como já demonstraram em seus governos, a participação do povo é imoral.
A dupla FHC-Alckmin tem defendido um choque de gestão, que é uma tese oca. O que é um choque de gestão? É repetir o que foi feito em São Paulo nos últimos 12 anos? É construir Febens pelo país? É tratar a cultura como negócio? É destruir o meio-ambiente em nome de “lucrativas” estradas? É levar o estado a crescer menos que a média nacional? É distribuir a pobreza e concentrar a riqueza? É esse o choque de gestão tucano?
O Brasil não precisa de choques, mas de trabalho e serenidade. De fortalecimento das instituições. No Brasil de hoje, a realidade se volta contra os antigos donos do poder. Depois de 20 anos, a desigualdade começou a diminuir, a escolaridade da população tem aumentado e o interesse por política dobrou, o que fez com que a influência dos pretensos formadores de opinião diminuísse. Hoje, a formação da opinião não é privilégio das classes médias, dos intelectuais ou dos meios de comunicação – e nós já aprendemos que opinião pública e opinião publicada são coisas bem diferentes.
Se a ansiedade pela correção dos erros fosse sincera, apresentariam propostas que tivessem impacto duradouro e contribuíssem para o fortalecimento das instituições públicas. Mas preferem a luminosidade efêmera das manchetes. Uma ampla reforma política, que alterasse as regras de financiamento de campanha e as relações entre bancadas no congresso, certamente ajudaria a corrigir os problemas que dizem indigná-los. Mas quem muito choque busca, pouca luz encontra.
Profetas do passado e apóstolos do caos, FHC e Alckmin defendem os choques por não lhes interessar a luz. Defendem os choques por lhes interessar escurecer o debate, embaralhar a visão. Mais atento e autônomo, é um Brasil megadiverso que vai escolher seu destino, sem tutelas, sem choques, com lucidez.
Glauber Piva é Secretário Nacional de Cultura do PT