domingo, maio 21, 2006

VIOLÊNCIA EM SÃO PAULO


Governo foi omisso, negligente e incompetente, diz MP
Para o Ministério Público estadual, não houve vontade política do governo de São Paulo para conter a organização do PCC. Em audiência pública, o governo também foi duramente criticado por não divulgar a relação dos 109 mortos. IML estaria sem condições sanitárias de abrigar tantos corpos.
Bia Barbosa – Carta Maior

SÃO PAULO – Que é inaceitável extrair dividendos eleitorais da gravíssima crise da segurança pública em São Paulo todos concordam. Quando os governos cometem acertos, no entanto, merecem ser aplaudidos. E, se erram, os equívocos devem ser apontados. Seguindo esta lógica, o Ministério Público de São Paulo foi duro ao criticar o governo estadual nesta sexta-feira (19), durante uma audiência pública realizada na Assembléia Legislativa. Convocada pelas comissões de direitos humanos da Câmara dos Deputados, Assembléia Legislativa e Câmara Municipal de São Paulo, a audiência revelou a indignação do Poder Judiciário e da sociedade civil com a onda de violência que invadiu a cidade e que não parou de fazer vítimas.

“Não vejo como abordar o problema sem concluir que tudo isso é resultado da omissão, negligência e incompetência das autoridades estaduais de segurança pública. Há cinco anos, São Paulo foi surpreendida pela eclosão de uma mega rebelião em 29 unidades prisionais em todo o estado, a maior do Brasil à época. A rebelião de hoje é muito maior do que aquela e a maior do mundo ocidental”, disse Carlos Eduardo Cardoso, conselheiro de direitos humanos do Ministério Público. “Portanto, é inadmissível que os comandantes das polícias e administradores maiores da segurança continuem em seus cargos depois do espetáculo de sangue a que assistimos. Inúmeras vezes, esses mesmos administradores fizeram declarações públicas de que o PCC estava derrotado, que o aparelho do Estado trabalhava diuturnamente com inteligência para isso. Mas não era verdade. Mentiram, enganaram todos nós. E eu falo de omissão e negligência para afastar a hipótese de conivência”, afirma Cardoso.

Para o promotor, o governador Cláudio Lembo é vítima dessa história, porque não foi ele que escolheu as autoridades no comando. No entanto, disse que espera que, no momento oportuno, Lembo tenha a coragem de substituí-los. O presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Antonio Claudio Mariz de Oliveira, descreveu o resultado como a “história de uma tragédia anunciada”.

“Não se teve vontade política para desbaratar o PCC. O governo estadual foi de uma omissão e de um desleixo imperdoáveis. São oito anos que um grupo de arma e se estrutura em São Paulo e nada se fez. É um anúncio que ultrapassa o lapso temporal aceitável. De onde vieram essas armas? Alguém tem que responder por isso”, questiona.

Já na opinião da juíza Kenarik Boujikian Felippe, da 16a Vara Criminal de São Paulo, representante da Associação Juízes pela Democracia e do grupo de estudo e trabalho de mulheres encarceradas, que reúne uma série de organizações, não é possível dizer que foi só desleixo do governo estadual.

“Não há organização criminosa sem o
braço do Estado. Como entram celulares e armas nos presídios? Há um braço do Estado nessa história. O que está por trás disso tudo? Se o PCC trabalha com tráfico de armas, de entorpecentes, com roubo a bancos, há outros interesses. Então há responsabilidade através de alguns agentes”, avalia. “O PCC se fortaleceu porque cada vez o Estado esteve mais ausente do sistema prisional. Em Dacar 4, presídio da capital paulista, há 1.700 mulheres sem ter o que fazer o dia inteiro. Metade delas é condenada. Não há trabalho e educação garantidas. O Estado não dá absorvente para essa mulheres, não garante sua segurança. Por isso o PCC domina tanto. Quando o Estado não está presente, alguém vem e toma o lugar”, acredita Kenarik.

SUPERLOTAÇÃO NO IML

Durante a audiência pública, o presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária se disse estarrecido com a negativa das autoridades em divulgar a lista do mortos.

“Não há pretexto que justifique a omissão deliberada do Estado. As famílias têm o direito de enterrarem seus mortos – bandidos ou não – e a sociedade tem o direito de saber o que está acontecendo, para cobrar responsabilidades, se for necessário. Essa decisão não pode ficar a critério de uma ou duas pessoas. Resolveram não divulgar e pronto?”, disse Mariz. “O Estado matou pessoas, sejam lá quem for e em que condições. E não pode deixar de divulgar isso sob pena de cometer um crime”, completou.

A própria Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa já solicitou por diversas vezes ao governo a relação dos suspeitos mortos em supostos confrontos com a polícia. Mas também não teve sucesso. A resposta ao ofício encaminhado no início da semana foi um documento enviado para a comissão na sexta-feira que dizia que não havia espaço físico e condições sanitárias no Instituto Médico Legal para abrigar os corpos recolhidos nas ruas nos últimos dias. Ao todo, já são 109 mortos.

“O IML da maior cidade do país não está minimamente preparado para enfrentar essa situação. Hoje ela é produto do crime, mas poderia ser de forças alheias à vontade do homem. E não temos condições de proporcionar guarida a algumas dezenas de cadáveres para que essas famílias os enterrem no momento apropriado. Isso é desleixo e incúria das autoridades, que nem o IML proveram para uma situação de emergência”, criticou Carlos Eduardo Cardoso, do Ministério Público.

Diante de uma notícia publicada na imprensa de que o IML ordenaria, em função da superlotação, o enterro como indigente dos corpos não identificados até então, as entidades promotoras da audiência pública encaminharam uma petição ao Juiz de Direito do Plantão Judiciário da Comarca da Capital e outra ao Diretor do Instituto Médico Legal. Nelas, os signatários solicitam a apresentação de todos os laudos necroscópicos, a relação das vítimas já identificadas na última semana e a determinação para que nenhum corpo de vítima de disparo de fogo seja sepultado sem prévia realização dos procedimentos citados. Por enquanto, somente 73 corpos foram identificados. O número de pessoas enterradas como indigentes cresceu cinco vezes esta semana no Cemitério Dom Bosco, de Perus – o mesmo onde foram encontradas as 1.049 ossadas de desaparecidos políticos da época da ditadura militar.

Apesar disso, o superintendente da Polícia Técnica de São Paulo, Celso Perioli, afirmou neste sábado que apenas um corpo não identificado foi enterrado como indigente e que não há superlotação no IML. A Secretaria de Segurança Pública garantiu que todos os procedimentos de autópsia foram observados, e que o sepultamento não impediria nenhuma investigação futura, para identificar os autores das mortes e saber se elas foram praticadas criminalmente ou legitimamente. Mesmo com a maioria dos corpos tendo sido identificada, a alegação do governo estadual para não divulgar os nomes dos mortos é que isso poderia atrapalhar as investigações sobre suposta ligação destas pessoas com o PCC.

As petições encaminhadas ao Juiz de Direito do Plantão Judiciário e ao Diretor do Instituto Médico Legal também solicitaram a autorização de entrada e permanência nas dependências do IML de peritos a serem indicados pelo Ministério Público Federal, a título de assistentes técnicos. O objetivo do pedido é auxiliar a equipe do IML, caso a atual seja insuficiente diante da demanda, e, principalmente, proporcionar uma fiscalização independente e um acompanhamento do trabalho realizado. Se for necessário, a recomendação é para que os corpos sejam removidos para o IML de outros municípios.

COMISSÃO INDEPENDENTE

Acatando a sugestão da procuradoria regional dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal, foi criada uma comissão formada pelo próprio MPF, Defensoria Pública, ONGs, Ouvidoria das Polícias e as comissões de direitos humanos para acompanhar as investigações das mortes de civis em supostos confrontos. A comissão também vai requisitar ao governador do Estado a lista completa dos mortos.

“Vivemos numa democracia e precisamos cobrar das autoridades providências para que cada morte seja apurada e para que os responsáveis sejam punidos nos termos da lei”, disse Carlos Eduardo Cardoso. Segundo ele, o Ministério Público vai acompanhar cada inquérito policial, seja dos policiais brutalmente assassinados ou dos suspeitos, e divulgar todos os laudos assim que tiver acesso a eles. “Não usaremos de subterfúgios para não revelar uma situação que constranja quem quer que seja”, concluiu.

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