sexta-feira, maio 19, 2006

O padre Júlio e a mãe Conceição

Maria Inês Nassif

Júlio Lancellotti é o padre da rua. Por suas casas Vida pasam crianças portadoras de HIV, abandonadas pelas famílias ou consumidas pela miséria. Com a ajuda de equipes de educadores de rua, concebidos por ele na Pastoral do Menor, resistem à realidade de violência da cidade mais rica, e de habitantes mais pobres do país, menores que crescem nas sarjetas, longe das famílias ou ganhando trocados para elas. Alguns sobrevivem, outros morrem. Aqueles que sucumbem à violência do poder público ou ao "higienismo" privado têm no trabalho de Lancellotti pelo menos a garantia de que suas mortes ou as humilhações a eles impingidas não serão esquecidas. O padre também cuida dos moradores de rua, adultos destituídos de dignidade que dividem a intimidade que não têm com os transeuntes. Não fosse ele, ficariam esquecidas as circunstâncias dos assassinatos de vários desses cidadãos por pessoas que, sabe-se lá a razão, carecem de qualquer espécie de humanidade. Padre Júlio também atravessa os portões das Febens, disposto a salvar da desumanidade menores esquecidos numa realidade onde a tortura, os maus tratos, o ócio que deseduca e a convivência violenta os fazem candidatos a moradores de presídios no futuro, ou habitantes de cemitérios. Ele também está lá quando os meninos saem das prisões de menores. Tenta resgatar suas almas da revolta e livrá-los de um destino que a sociedade os condena.

Tem também dona Conceição. Moradora da periferia, viúva, negra e quase analfabeta, viu o caçula de seus cinco filhos sucumbir a uma dependência química. Com 16 anos, o menino era um interno da unidade da Febem do Tatuapé - e Conceição percebeu que o filho apenas sobreviveria se ela fosse a sua voz do lado de fora. Denunciou maus tratos e torturas aos menores, mediou negociações entre internos e a instituição em rebeliões e fundou a Associação de mães, a Amar, que foi reconhecida por sua atuação tanto por este governo como pelo anterior. Hoje ela não tem mais filhos lá dentro, mas continua os olhos dos filhos dos outros que tiveram o mesmo destino.

Por essas estranhas voltas que a história dá quando é impulsionada por processos inexplicáveis de radicalização ideológica, esses dois seres foram transformados em perigosos agitadores e são descritos como - pasmem - os responsáveis por rebeliões da Febem, pelo poder dos presos nas penitenciárias, pela "sujeira" nas ruas da capital, ou seja, os menores e moradores de rua. Eles representam, para um setor conservador do Estado e para o poder público do Estado, o mal que os direitos humanos fazem à "ordem".

Com PCC se negocia, mas ativistas são condenados

No quinto dia de seu governo, o ex-vice de Geraldo Alckmin Cláudio Lembo assumiu o discurso que, deve-se reconhecer, foi uma marca de todo o governo, muito antes que o pefelista assumisse. Lembo afirmou, justificando as rebeliões na Febem: "Nós temos aqui e ali sabe o quê? Temos provocação de agentes externos. (...) Toda vez que alguns agentes externos ingressam na Febem com uma idéia de que são humanos, na verdade eles estão criando atos desumanos". A presidente da Febem , Berenice Giannella, que foi cuidar de menores depois de tratar de presidiários - e não consegue diferenciar um do outro - está processando Conceição por incitar rebeliões. A mãe, que é semi-analfabeta e pobre mas não é ignorante, contra-atacou com a lógica: "Como uma mulher sozinha teria capacidade de causar crises e rebeliões?"

Não processaram padre Lancellotti, mas tornaram-no alvo de ofensas. Ou da ridicularização. A resistência dos movimentos sociais contra projetos da prefeitura que não consideram a população desprotegida fizeram do padre alvo de acusações várias, inclusive a de que estaria colocando a população em risco. Como se a pobreza fosse um risco não para os pobres, mas para os ricos.

Mas não são Lancelotti e Conceição que estão à frente da Secretaria de Segurança Pública há cinco anos. Quem está lá, e deve responder pela insegurança vivida pelo Estado nos últimos dias, é o secretário Saulo de Castro Abreu Filho. Ele é descrito como uma pessoa truculenta e a prova de que isso é verdade é sua gestão na Febem e na secretaria. Seu estilo provocou reações não apenas de militantes de direitos humanos, mas dos próprios tucanos. Em 2003, dois ex-secretários de segurança do governo de Mário Covas, José Afonso da Silva e Marco Petrelluzzi, assinaram um artigo na "Folha de S. Paulo" deixando claro que a política de Abreu Filho, e portanto de Alckmin, nada tinha a ver com a do seu antecessor. Abreu Filho espraiou seu estilo pelo governo. A Febem, sob as ordens de Berenice Gianella, administra a instituição rezando pela filosofia de que nenhum interno é passível de reabilitação, e portanto não caberia ao Estado recuperar os menores infratores, mas livrar a sociedade de conviver com eles. A Secretaria de Administração Penitenciária, segundo o secretário Nagashi Furukawa, só tem por função não deixar preso fugir.

Era esse sistema, montado com a concepção da truculência ou da omissão, que dominava quando o PCC declarou guerra. Padre Lancellotti estava bem longe quando os iluminados da segurança pública resolveram transferir presos do comando enquanto 15 mil detentos estavam nas ruas, em indulto. Eram eles que tinham informações de um ataque e não preveniram seus policiais. Eles jogaram nas mãos de organizações criminosas presídios sem controle, onde os presos, mesmo que não desejem, têm que ser parte da engrenagem da organização sob pena de morte. A miséria das penitenciárias e a violência não apenas deram ao PCC o poder de coação pela força nos presídios e nas Febens, mas tornaram o comando uma proteção contra a própria polícia.

Com um telefonema, o comando conseguiu rebelar duas unidades da Febem. Conceição estava longe dali e não foi ela quem levou o PCC aos menores. O comando chegou até eles pelas mãos do Estado que tortura, maltrata e condena ao ócio punitivo - uma política de extermínio de jovens que Conceição denuncia.

Lancellotti e Conceição eram o antídoto contra o PCC. Seus acusadores não reconheceram isso e tiveram que negociar com o PCC suas dignidades. A mãe e o padre mantêm as suas, intactas.
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Quem não negocia com o povo, acaba negociando com bandido... am