sexta-feira, maio 12, 2006

Brasil-Bolívia: o império contra-ataca com a Alca



Por trás da contenda a respeito das relações Brasil-Bolívia está uma questão muito maior: o futuro da Alca.

FHC e o patrão do norte, e ele ri...

Por Osvaldo Bertolino


Evo Morales veio para nos esfolar. Esta é a impressão que se tem, lendo e vendo o noticiário. Patriotas de ocasião e raivosos publicistas da direita se “indignam” com a denúncia de ilegalidades contidas nos contratos da Petrobras assinados pelos governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) e Gonzalo Sánchez de Lozada. (É a velha história: o pior pecado depois do pecado é a publicação do pecado.) E dessa aliança nasceu uma revoltada corrente “nacionalista” ligeiramente extravagante neste mundo “globalizado” neoliberal. Para usar um grande slogan nacionalista, o que parece estar sendo dito é: calma lá, Evo, o Brasil é nosso. Sim, claro que é.

A questão que se coloca, na verdade, é outra: será que é mesmo impossível que as duas partes possam se dar bem nessa negociação? Será que é mesmo inevitável que uma delas — no caso, o Brasil — se estrepe em benefício da outra (os bolivianos)? Essa versão está longe da realidade. Na visão brasileira, a união do Mercosul com a Comunidade Andina (CAN) deve ser consolidada. A CAN une desde 1969 a Colômbia, a Bolívia, o Equador, o Peru e a Venezuela, que somam um Produto Interno Bruto de 255 milhões de dólares. O Mercosul tem um PIB de 890 milhões de dólares. Os norte-americanos, ao contrário, preferem que a Alca se torne realidade quanto antes.


O problema está no outro lado do mapa


Há uma divergência real do Brasil com a Bolívia, mas que não deve ser exagerada. Ela decorre dos contratos assinados por FHC e Lozada. O motivo é simples: para Evo Morales, conforme ele disse na quinta-feira (11) em Viena, Áustria, a base de uma verdadeira integração latino-americana são os recursos naturais. Nesse sentido, ele indicou que valoriza e respeita a proposta da Venezuela de criar a Petrosul e a Petroamérica. A inserção da Petrobras nesse processo, portanto, precisa ser tratada com diplomacia e não com arroubos “nacionalistas”. Essa integração não é boa apenas para os países andinos — pode perfeitamente ser boa também para o Brasil. O fortalecimento da CAN deve ser visto como uma "incubadeira" que fortalecerá a união com o Mercosul.

O problema está localizado no outro lado do mapa do Continente: são os Estados Unidos. Os temores de que eles pretendem rachar a união dos países sul-americanos, na velha estratégia de dividir para reinar, são procedentes. O governo norte-americano corre para fechar acordos bilaterais com países da CAN. A medida é amplamente vista como uma tentativa de intensificar a pressão diplomática sobre o Brasil. Os Estados Unidos, evidentemente, não vêem com bons olhos a união do Brasil com seus vizinhos — que está ocorrendo na prática. É cada vez maior o número de projetos envolvendo diferentes países, criando uma ligação crescente entre eles. E o melhor exemplo desse fato se dá na área de energia. Historicamente, a busca por energia representou um dos maiores motivos de integração entre os povos.Para quem duvida da importância da área de energia, basta lembrar como nasceu a União Européia. O bloco começou a surgir em 1951, com a criação da Comunidade Européia do Carvão e do Aço. Inicialmente, a preocupação era basicamente o suprimento de energia.

No caso da América do Sul, há um fator que facilita essa integração: todos os países da região, excetuando Brasil e Chile, têm mais energia do que necessitam. Não há nada mais natural do que vender o excedente a quem precise: o Brasil. Para que esse comércio ocorra, são necessárias obras gigantescas, que tendem a consolidar a ligação entre os países. Por exemplo, só o gasoduto entre Brasil e Bolívia custou mais de 2 bilhões de dólares. Ninguém faria uma obra desse porte se não fosse para ter uma relação de longo prazo.


Decisão estratégica da Argentina

Há duas formas de se aproveitar o gás: empregando-o diretamente como fonte de energia, em casas ou indústrias, ou usando-o para gerar eletricidade. No segundo caso, são necessárias usinas térmicas, que queimam o gás e produzem energia elétrica. E há aí mais investimentos, pois o Brasil precisa de um bom número de usinas térmicas. Há vários outros projetos ligando Brasil e seus vizinhos. Por exemplo, os argentinos e os uruguaios produzem mais energia elétrica do que consomem. Para que possam vender ao Brasil, a infra-estrutura de transmissão elétrica no Estado do Rio Grande do Sul está inserida no sistema interligado brasileiro, estando também conectada ao sistema elétrico da Argentina (por meio das estações conversoras de Garabi e Uruguaiana ) e ao sistema elétrico do Uruguai (estação conversora de Rivera, fronteira com Sant’Ana do Livramento).

No caso do petróleo, não se trata apenas de investimentos, mas de comércio: a Argentina passou a Arábia Saudita e é hoje o maior fornecedor do produto para o Brasil. Foi uma decisão estratégica do atual governo para fortalecer os laços com o sócio do Mercosul. Além da questão energética, há um outro tipo de ligação: a decisão das empresas de alocar seus investimentos entre os diferentes países da melhor maneira possível. É claro que essa estratégia só funciona se os países puderem comercializar livremente. E se existirem meios físicos de acesso entre os mercados. Ainda há muita ineficiência no transporte de mercadorias. Muito timidamente, começam os primeiros avanços nessa área. Um exemplo são os investimentos, embora ainda pequenos, na melhoria das estradas.


O valente “nacionalista” tucano

O aumento do intercâmbio entre Brasil e os demais países da América do Sul é visível. Boa parte desse intercâmbio não sofre concorrência norte-americana, até por questões geográficas. Por exemplo, muito dificilmente a Bolívia venderá gás para os Estados Unidos, dada a distância entre os países. Evidentemente, essa realidade favorece a integração regional e desagrada aos Estados Unidos. E conseqüentemente desperta a reação das forças políticas que representam os interesses norte-americanos — no caso, por meio da Alca. O presidente nacional do PSDB, senador Tasso Jereissati (CE), por exemplo, afirmou que os “ataques” de Evo Morales “contra a Petrobras” refletem a maneira "amadora e até irresponsável" assumida pelo presidente Lula frente ao “impasse criado pelo país vizinho”.

Para o tucano, o governo Lula ao invés de desagradar aos Estados Unidos deveria jogar pesado com os bravos bolivianos. "Não se trata de ser carinhoso com o camarada e companheiro de farra. Está na hora de o estadista aparecer", provocou. "Acima de amizades e afinidades ideológicas estão os interesses nacionais e a responsabilidade do presidente da República, que tem de raciocinar quando fala, quando age, e tem responsabilidade constitucional de defender os interesses nacionais", disse Jereissati. O valente “nacionalista” tucano afirmou ainda que o governo não pode se “rebaixar” e ficar "a reboque de pequenos líderes populistas demagogos". O assessor da Presidência para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia, reagiu: "Acho insultante, racista até, esses comentários. É como se o presidente Evo Morales não pudesse tomar atitudes por conta própria."


Aliança com o tio rico do norte


Jereissati representa um setor do país que entende as relações do Brasil na região pela lógica da Alca — ou seja, aquela visão de que a sociedade para ser "moderna" deve acumular capital em excesso numa margem e exclusão social em outra. Uma construção ideológica empreendida basicamente pelo modelo de aliança da elite brasileira com o tio rico do norte. O riscos para os norte-americanos é o Brasil criar por aqui um bloco parecido com a China, que está inventando seu próprio modelo de desenvolvimento, seu próprio estilo de fazer a roda da economia girar. E o setor energético é o ponto central nessa questão. O sempre atual diagnóstico de Lênin no Capítulo X da obra Imperialismo - Fase Superior do Capitalismo, intitulado O Lugar do Imperialismo na História, diz que o imperialismo é, pela sua essência econômica, o capitalismo monopolista — do qual o setor energético é estratégico.

Esse diagnóstico pode ser aplicado inteiramente à atual situação da América Latina. Além de outras características, Lênin afirmou que os monopólios agudizam a luta pela conquista das mais importantes fontes de matérias-primas. "A posse monopolista das fontes mais importantes de matérias-primas aumentou enormemente o poderio do grande capital e agudizou as contradições entre a indústria cartelizada e a não cartelizada", escreveu ele. "Aos numerosos 'velhos' motivos da política colonial, o capital financeiro acrescentou a luta pelas fontes de matérias-primas, pela exportação de capitais, pelas 'esferas de influência', isto é, as esferas de transações lucrativas, de concessões, de lucros monopolistas, etc., e, finalmente, pelo território econômico em geral", acrescentou.


Vigilância política e militar


O panorama da América Latina está claramente demarcado. De um lado, as forças políticas que aceitam de bom grado trilhar o caminho de Washington conduziram a região para uma sucessão de crises, configurando uma estrondosa catástrofe política, moral e econômica. Na década de 90, essa situação marcou o território latino-americano desde Tijuana até a Terra do fogo. De outro lado, as forças políticas que se opõem a esse quadro outrora hegemônico têm crescido do final da década de 90 para cá. A economia cubana avança e melhora os indicadores de bem-estar do povo. E a Venezuela, a Argentina e a Bolívia optaram por um caminho indiscutivelmente antiliberal. O eixo progressista latino-americano está mais forte, mais alinhado, mais balanceado e gira mais sincronizado.

Ocorreu, também, o recrudescimento da vigilância política e militar do imperialismo sobre a região. No relatório do Departamento de Estado dos Estados Unidos que atribui a designação de Organizações Terroristas Internacionais (OTI's), constam pelo menos quatro latino-americanas. O presidente George W. Bush tem se reunido sistematicamente com líderes liberais da América Latina e emitido sinais de preocupação. Daí a onfensiva pela implantação da Alca — uma espécie de apólice de seguro contra tendências patrióticas. O Brasil é a casa de força do sub-continente. Por isso, a direita tenta neutralizar a influência brasileira na América do Sul. O cenário político na região, enfim, está permeado por vozes e interesses em conflito. A imagem de Lula subindo a rampa do Palácio do Planalto novamente, anima. Mas não basta. A luta patriótica na América Latina exigirá muito mais integração e mobilização popular.

http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=2021