quinta-feira, maio 18, 2006

A matança dos suspeitos


Já que não temos justiça, por que não nos contentar com a vingança?
Os meninos pardos e pobres da periferia estão aí pra isso mesmo.
Para morrer na lista dos suspeitos anônimos.
Para serem executados pela polícia ou pelos traficantes.
Maria Rita Kehl


Vamos falar sério: alguém acredita que a rebelião do PCC foi controlada pela polícia de São Paulo? Vejamos: as autoridades apresentaram aos cidadãos evidências de que pelo menos uma parte da poderosa quadrilha do crime organizado foi desbaratada? O sigilo dos celulares que organizaram, de dentro das prisões, a onda de atos terroristas no estado de São Paulo, Paraná, Mato Grosso, etc, foi quebrado para revelar os nomes de quem trabalhou para Marcos Camacho, o Marcola, fora da cadeia? Qual foi o plano de inteligência posto em ação para debelar a investida do terror iniciada no último final de semana?

Alguém acredita que “voltamos à normalidade?” Ou se voltamos – pois a vida está mais ou menos com a mesma cara de antes, só um pouco mais envergonhada: de que normalidade se trata?

Uma normalidade vexada: uma vez constatada a rapidez com que os capitalistas selvagens do tráfico de drogas desestabilizaram o cotidiano do estado mais rico do Brasil, não dá mais para esconder o fato de que nossa precária tranqüilidade depende integralmente da tranqüilidade deles.. Se os defensores da lei e da ordem não mexerem com seus negócios, eles não mexem conosco. Caso contrário, se seus interesses forem afetados, eles põem para funcionar imediatamente a rede de miseráveis a serviço do tráfico, conectada através de celulares autorizados pelo sistema carcerário (que outra explicação para a falta de bloqueadores e de detectores de metal nos presídios?) e toleradas pelo governador de plantão. No caso, o mesmo governador que, na hora do aperto, rejeitou trabalhar em colaboração com a Polícia Federal e, horas depois, negou ter feito acordos com os líderes do PCC. Segunda feira, nos telejornais, o governador Lembo nos fez recordar a retórica autoritária dos militares: nada a declarar além de “tudo tranqüilo, tudo sob controle”. E quanto aos oitenta mortos (hoje são 115), governador? Ah, aquilo. Bem, aquilo foi um drama, é claro. Lamento muito. Mas pertence ao passado.

A falta de transparência na conduta das autoridades e a desinformação proposital, que ajuda a semear o pânico na população, fazem parte das táticas autoritárias do atual governador de São Paulo. Quanto menos a sociedade souber a respeito da crise que nos afeta diretamente, melhor. Melhor para quem?

Na noite de segunda feira, quando os paulistanos em pânico tentavam voltar mais cedo para casa, vi-me parada ao lado de uma viatura policial, em um dos muitos congestionamentos que bloquearam a cidade. Olhei o homem à minha esquerda e, pela primeira vez na vida, solidarizei-me com um policial. Vi um homem humilde, desprotegido, assustado. Cumprimentou-me com um aceno conformado, como quem diz: fazer o que, não é? Pensei: ele sabe que está participando de uma farsa. Uma farsa que pode lhe custar a vida.

De repente entendi uma parte, pelo menos uma parte, da já habitual truculência da polícia brasileira: eles sabem que arriscam a vida em uma farsa. Não me refiro aos salários de fome que facilitam a corrupção entre bandidos e PMs. Refiro-me ao combate ao crime, à proteção da população, que são a própria razão de ser do trabalho dos policiais. Se até eu, que sou boba, percebi a farsa montada para que a polícia fingisse controlar o terror que se espalhava pela cidade enquanto as autoridades negociavam respeitosamente com Marcolas e Macarrões, imagino a situação do meu companheiro de engarrafamento. Imagino a falta total de sentido do exercício arriscado de sua profissão. Imagino o sentimento de falta de dignidade destes que têm licença para matar os pobres, mas sabem que não podem mexer com os interesses dos ricos, nem mesmo dos que estão trancados em presídios de segurança máxima e restrições mínimas.

Mas é preciso trabalhar, tocar a vida, exercer o trabalho sujo no qual não botam fé nenhuma. É preciso encontrar suspeitos, enfrentá-los a tiros, mostrar alguns cadáveres à sociedade. Satisfazer nossa necessidade de justiça com um teatro de vingança. A esquizofrenia da condição dos policiais militares foi revelada por algumas notícias de jornal: encapuzados como bandidos, executam inocentes sem razão alguma para a seguir, exibindo a farda, fingirem ter chegado a tempo de levar a vítima para o hospital.

Isso é o que alguns PMs fazem na periferia, nos bairros pobres onde também eles moram, onde o desamparo em relação à lei é mais antigo e mais radical do que nas regiões mais centrais da cidade. Nas ruas escuras das periferias os PMs cumprem seu dever de vingança e atiram no entregador de pizza. Atiram no menino que esperava a noiva no ponto de ônibus, ou nos anônimos que conversam desprevenidos, numa esquina qualquer. No motoboy que fugiu assustado – quem mandou fugir? Alguma ele fez... Não percebem – ou percebem? – que o arbítrio e a truculência com que tratam a população pobre contribui para o prestígio dos chefes do crime, que às vezes se oferecem às comunidades como única alternativa de proteção.

Assim a polícia vem “tranqüilizando” a cidade, ao apresentar um número de cadáveres “suspeitos” superior ao número de seus companheiros mortos pelo terrorismo do tráfico. Suspeitos que não terão nem ao menos a sorte do brasileiro Jean Charles, cuja morte será cobrada da polícia inglesa porque dela se espera que não execute sumariamente os cidadãos que aborda, por mais suspeitos que possam parecer. Não é o caso dos meninos daqui; no Brasil ninguém, a não ser os familiares das vítimas, reprova a polícia pelas execuções sumárias de centenas de “suspeitos”. Mas até mesmo os familiares têm medo de denunciar o arbítrio, temendo retaliações.

Aqui, achamos melhor fingir que os suspeitos eram perigosos, e seus assassinatos são condição na nossa segurança. Deixemos o Marcola em paz; ele só está cuidando de seus negócios. Negócios que, se legalizados, deixariam o campo de forças muito mais claro e menos violento (morre muito mais gente inocente na guerra do tráfico do que morreriam de overdose, se as drogas fossem liberadas – disso estou certa). Mas são negócios que, se legalizados, dariam muito menos lucro. O crime é que compensa.

Então ficamos assim: o estado negocia seus interesses com os do Marcola, um homem poderoso, fino, que lê Dante Alighieri e tem muito dinheiro. Deixa em paz os superiores do Marcola que vivem soltos por aí, no Congresso talvez, ou abrigados em algumas secretarias de governo. Deles, pelo menos, a população sabe o que pode e o que não pode esperar. E já que é preciso dar alguma satisfação à sociedade assustada, deixemos a polícia à vontade para matar suspeitos na calada da noite. Os policiais se arriscam tanto, coitados. Ganham tão pouco para servir à sociedade, e podem tão pouco contra os criminosos de verdade. Eles precisam acreditar em alguma coisa; precisam de alguma compensação. Já que não temos justiça, por que não nos contentar com a vingança? Os meninos pardos e pobres da periferia estão aí pra isso mesmo. Para morrer na lista dos suspeitos anônimos. Para serem executados pela polícia ou pelos traficantes. Para se viciarem em crack e se alistar nas fileiras dos soldadinhos do tráfico. Para sustentar nossa ilusão de que os bandidos estão nas favelas e de que do lado de cá, tudo está sob controle.

Maria Rita Kehl é psicanalista, ensaísta e poeta, é autora do livro "A mínima diferença - o masculino e o feminino na cultura".