sexta-feira, dezembro 30, 2011

Alteram-se as tendências, na disputa por recursos vitais (1/3)

27/12/2011, Pepe Escobar (entrevistado por Lars Schall), Consortium News
http://consortiumnews.com/2011/12/27/shifting-ground-for-vital-resources/

A disputa por petróleo, água e outros recursos intensifica-se, as relações globais mudam, criando o pano de fundo para uma cadeia de conflitos, do Iraque à Líbia. Pepe Escobar, jornalista nascido no Brasil e um dos mais sensíveis analistas dessas tendências, fala aqui, em entrevista ao jornalista alemão Lars Schall.

Lars Schall: Pepe Escobar, dada sua experiência nesse campo, qual, em sua opinião, o principal mal-entendido que se constata na opinião pública em geral, relacionado à chamada “Guerra ao Terror”?

Pepe Escobar: A “Guerra ao Terror” foi história-de-capa e cobertura para um “Choque de Civilizações” e uma guerra fria oculta, mas que talvez ‘esquente’, entre os EUA e seus dois concorrentes estratégicos, China e Rússia. Os EUA não poderiam atacar diretamente nenhum desses dois países membros do grupo BRICS [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, os países emergentes].

Lembremos que antes da “Guerra ao Terror” e depois da queda do Muro de Berlim, os norte-americanos tentavam definir quem seria seu próximo inimigo. Fazia falta um inimigo externo pré-fabricado – antes, foram a União Soviética, a Cortina de Ferro e o demônio do comunismo. Depois que o demônio foi derrotado pela realpolitik – OK, quem é o próximo?

Primeiro, pensaram na China, mas disseram “não, não podemos tomar a China, é uma grande potência, tem armas nucleares. Com a Rússia, a mesma coisa. E os russos estão agindo bem, há lá um fantoche, no Kremlin, Boris Yeltsin, privatizando tudo feito louco e saqueando os recursos da Rússia, hipoteticamente a favor das corporações ocidentais”. Foi assim, até que [Vladimir] Putin virou tudo isso de ponta cabeça.

Assim, a “Guerra ao Terror” pareceu perfeita, porque o Islã pôde ser rotulado como o inimigo. E o 11/9 não poderia ter sido mais conveniente, porque então, embora o conceito já existisse desde antes, havia o ‘fator Pearl Harbor’. A “Guerra ao Terror” foi conceito que pôde ser vendido não só ao público norte-americano, mas, também, à opinião pública mundial. Mas a agenda oculta, por baixo da “Guerra ao Terror” global, que o Pentágono chama de “A Longa Guerra” – guerra infinita – é, de fato, a emergência de duas potências que são ameaça real e grave aos EUA, Rússia e China.

A Rússia, basicamente porque tem armas atômicas. Naquele momento, sequer pensavam na Rússia como grande exportador de petróleo e gás – foi antes de Putin ter reorganizado a Gazprom, que viria a tornar-se a principal empresa internacional de petróleo e gás.

E a China, a qual, naquele momento, há 10 anos, os americanos viam como ainda desorganizada, talvez enfrentando alguma revolta camponesa, sabe-se lá! Fato é que os EUA não pensavam na China, naquele momento, como concorrente de peso. Hoje, claro, a China tem 3,2 trilhões de dólares norte-americanos nas suas reservas, além dos papéis do Tesouro do EUA etc.

11/9 foi pretexto perfeito, mas, por baixo, oculta, intensificou-se a disputa para chegar às reservas de energia do Golfo Persa e da Ásia Central. E os EUA tinham o plano máster dos neoconservadores. É o mesmo plano que – por difícil que seja acreditar –, está sendo implantado hoje. Esse plano implica desestabilizar esse “Arco de Instabilidade” – expressão cunhada, claro, pelo Pentágono –, do Maghreb pelo norte da África pelo Oriente Médio e direto até a Ásia Central via Afeganistão/Paquistão – que é a intersecção entre a Ásia Central e o Sul da Ásia – até a fronteira da China, em Xinjiang.

Eles precisavam implantar sua estratégica, que foi concebida em sua forma final, depois do 11/9. É a doutrina da “Dominação de Pleno Espectro” do Pentágono, tema sobre o qual você jamais lerá na imprensa dominante nos EUA ou na Europa.

Desde 2002, a doutrina da “Dominação de Pleno Espectro” é doutrina oficial do Pentágono. É intrinsecamente ligada à Segurança Nacional dos EUA: temos de ser principal potência, não só em terra, mar e ar, mas também no ciberespaço e no espaço sideral. Essa é a essência da doutrina da doutrina da “Dominação de Pleno Espectro”.
[Ver, por exemplo, GARAMONE, Jim (American Forces Press Service): “Joint Vision 2020 Emphazises Full Spectrum Dominance“, 2/6/2000, Departamento de Defesa dos EUA, em http://www.defense.gov/news/newsarticle.aspx?id=45289]

Está sendo aplicada agora, depois da “Primavera Árabe”. E é inacreditável que ninguém, absolutamente, fale sobre isso. Todos se puseram a falar de uma “Primavera Árabe”, que é termo impreciso, porque faz crer que os árabes tenham estado adormecidos ao longo dos últimos cem anos, e estivessem ‘despertando’ – o que não é verdade. A palavra “Primavera” não é a palavra certa. Eu diria que estamos assistindo a um processo de maior consciência das classes trabalhadoras e classes médias na Tunísia, no Egito, no Bahrain e também em outras partes do Oriente Médio.

E, em seguida, veio a contrarrevolução, e esse processo contrarrevolucionário está levando diretamente à implantação de outras etapas da doutrina da “Dominação de Pleno Espectro”. Adiante, podemos voltar a falar sobre isso.

O que estou querendo dizer, basicamente, é que a contrarrevolução, orquestrada pelos EUA e, especialmente, pela Casa de Saud, reinstrumentalizou o que aconteceu na Tunísia e no Egito. Dispararam a contrarrevolução no Golfo Persa e hoje tentam subornar a ditadura militar no Egito para mantê-la lá como ditadura militar. Já deram quase 4 bilhões de dólares à junta militar chefiada por Tantawi, e mais dinheiro virá da Arábia Saudita. Enquanto isso, os EUA, na Ásia Central, tentam reorganizar-se, porque se deram conta de que estão perdendo terreno – e para quem seria? – para China e Rússia.

Isso está acontecendo ao ritmo de novos negócios de petróleo e gás que estão sendo construídos entre China e Rússia, entre o Turcomenistão e a China, e também entre todos esses atores e o Irã – Rússia e China já mantêm cooperação bem próxima com o Irã nos campos de petróleo e gás. Então, disseram os americanos, “OK. Como, então, reorganizamos a coisa toda?”

Do modo como o Pentágono vê o mundo, a “Guerra ao Terror” está mais ou menos acabada para todas as suas finalidades práticas. E volta a doutrina da “Dominação de Pleno Espectro”: “os EUA temos de controlar tudo”. Significa controlar o Mar Mediterrâneo como “lago da OTAN”, projeto que já implementaram na Líbia e hoje tentam implementar na Síria; controlar o resto da África, enviar tropas para Uganda, como Obama fez há poucas semanas. Mas não se trata só de Uganda; trata-se de todo o coração da África Central, Uganda, Sudão do Sul, República Centro-Africana e Congo – muito petróleo, muitos minérios, muitas terras raras, todos esses recursos extremamente valiosos.

O Ocidente não pode estar ausente, e os EUA têm de manter-se no controle (“esqueçam a China”). Tudo isso implica ampliar o Comando dos EUA na África (AFRICOM), cuja sede está ainda em Stuttgart, Alemanha, mas logo, provavelmente, será transferida para Benghazi, Líbia.

Há poucos dias, conversei com gente da União Europeia em Bruxelas, dissidentes inteligentes que não concordam com o que está sendo feito lá. Disseram-me off the record que, sim, haverá uma base militar na Líbia; e que o plano sempre foi esse, desde o início.

Haverá muitos ‘coturnos em terra’, coturnos europeus, turcos, do Qatar, dos Emirados Árabes Unidos, aqueles mercenários que estão sendo treinados pela empresa Blackwater – hoje, empresa Xe – nos Emirados Árabes Unidos. Todos esses farão parte daquela base, que será a base que a OTAN e o AFRICOM desejavam implantar no norte da África.

Na minha opinião, a principal resposta à sua pergunta é: a “Guerra ao Terror” foi cortina de fumaça que durou mais ou menos dez anos. Hoje, todos eles – o Pentágono, a CIA, o FBI, a Agência de Segurança Nacional, o governo Obama, todos eles – já dizem aos quatro ventos: “a al-Qaeda está operacionalmente desativada” (palavras deles).

Praticamente morreram todos, exceto al-Zawahiri e o novo chefe nomeado para o comando militar, mas nem lembro seu nome, e muda a cada semana. Morreram praticamente todos, já não estão no Afeganistão, têm poucos instrutores nas áreas tribais nos Waziristões, não estão operativos no resto do mundo. Mas, sim, estão no poder, hoje, em Trípoli, porque foram usados pelo ocidente. O pessoal de Benghazi foi treinado num campo militar ao norte de Kabul.

Estive lá no início de 2001; havia muitos líbios. E, sim, aqueles líbios são o Grupo de Combatentes Líbios Islâmicos [orig. Libyan Islamic Fighting Group, LIFG]. Foram treinados naquele campo ao norte de Kabul (e nem foi difícil chegar até lá). Hoje, estão no poder na Líbia. O comandante militar de Trípoli, Abdelhakim Belhadj, e seus homens, muito bem armados, militarmente muito bem treinados, não arredarão pé de lá. Esses jihadis ligados à al-Qaeda deixaram-se manipular pelo ocidente, sem oferecer qualquer resistência.

Você diria que a al-Qaeda, hoje um fantasma da força real que teve ‘nos bons velhos tempos’, foi usada como instrumento da política exterior dos EUA?

Pepe Escobar: Sim, sem dúvida foi! Foi a desculpa perfeita, porque não se afastaram do plano para tentar implementar a doutrina da “Dominação de Pleno Espectro” em todos os pontos nos quais conseguissem implementá-la. Estiveram muito ativos na Ásia Central – até há cerca de dois anos –, desde o governo Bush.

Não esqueça que Cheney visitava a Ásia Central a cada dois, três meses, naquela época. Os EUA tentaram negociar diretamente com os cazaques, com os turcomanos e, especialmente, com o Azerbaijão – a elite do Azerbaijão tem muitos laços com os Republicanos nos EUA. Dick Cheney esteve lá muitas vezes.

E o embaixador especial do governo Bush, que ainda trabalha para o governo Obama, Richard Morningstar, ‘embaixador do petróleo’, a serviço de Washington na Ásia Central, conhece muito bem todos os personagens. Os EUA tentaram pressioná-los para que não negociassem com os russos, nem com a China, para que deixassem de lado o Irã e negociassem com os norte-americanos. E está acontecendo o quê? Eles negociaram com a Rússia, negociaram com a China, não deixaram de lado o Irã e absolutamente não estão negociando com os EUA.

Em geral, as pessoas esperam, se você faz guerra, que você deseje vencer a guerra. Mas não é o que se vê na Ásia Central, cenário de guerras perpétuas. Manter esse cenário naquela região traria algumas vantagens para o “complexo petróleo-militar” (expressão do economista James K. Galbraith), em relação a China e Rússia?
[Sobre a expressão “complexo petróleo-militar”, ver GALBRAITH, James K., “Unbearable Costs of Empire”, orig. The American Prospect magazine, Nov. 2002, inThird World Travelor, http://www.thirdworldtraveler.com/American_Empire/Unbearable_Costs_Empire.html].
Pepe Escobar: Sim, mas o problema é que o ‘complexo’ não conhece os atores com os quais está lidando. O ‘complexo’ não considera fatores culturais, esquece, por exemplo, que os turcomanos são muito independentes e sempre preferirão negociar com interlocutores que falem a língua deles – o russo. Se Medvedev vai a Ashgabat, para conversar com o presidente Berdimuhamedov, e fala russo, a probabilidade de que se fechem negócios é muito maior.

Quanto aos chineses, vão a Ashgabat e dizem: construiremos qualquer coisa que vocês queiram que seja construída; construímos, nós mesmos, os gasodutos e oleodutos. Façam-nos um bom preço pelo gás de vocês e amanhã nós construiremos esse gasoduto, do leste do Turcomenistão ao oeste da China. Foi exatamente o que já fizeram e, há dois anos, o gasoduto já foi inaugurado. Aplica-se também aos africanos: a China negocia sem pré-condições e sem qualquer interferência na política interna dos outros países.

Durante algum tempo, os norte-americanos tentaram essa via, como com o Uzbequistão e aquele presidente que cozinha o próprio povo, Islam Karimov. Estiveram em negociações bem íntimas, com o governo Bush, e os EUA tiveram uma base militar em Karimabad, cidade próxima da fronteira afegã, e que foi muito útil para os norte-americanos. Mas depois se puseram a criticar os direitos humanos no Uzbequistão. O que disseram os uzbeques? Adeus base militar! Os uzbeques são parte do óleo-gasoduto que vai do Turcomenistão à China, via Uzbequistão. Os EUA mudaram um pouco de tática, mas, no fim, perderam a disputa.

Até que, afinal, os EUA começaram a perceber que perderam terreno para a Rússia e para a China, para ambos os países, na Ásia Central. Então trataram de se reposicionar no Golfo Persa, no norte da África e também dentro da África. A Líbia terá grande serventia para novas explorações de gás e petróleo. Os líbios dizem que manterão os contratos vigentes com os italianos – há um oleoduto do norte da Líbia até a Sicília, e há o óleo exportado para a Itália. Mas os novos contratos irão todos para a empresa Total, para a British Petroleum (BP) e para os norte-americanos, não para russos e chineses.

A Líbia foi, é e continuará a ser muito lucrativa para as majors ocidentais, as empresas ocidentais gigantes da energia. Na Ásia Central, a única esperança das majors é o Azerbaijão, porque as majors mais ou menos controlam os negócios de energia no Azerbaijão e, como já disse, as elites do Azerbaijão operam, basicamente, como satrapias de Washington. O problema é que as majors não controlam o Turcomenistão.

Estão pressionando o Turcomenistão, para construir o oleogasoduto Nabucco. Mas Nabucco custará uma fortuna, cerca de 20 bilhões de euros, e ninguém sabe de onde virá esse dinheiro, sobretudo agora, com a crise europeia.

Os turcomanos dizem que podem fornecer gás suficiente, mas ninguém sabe se eles têm de fato todo esse gás, porque estão fornecendo gás ao Irã, vendem muito gás para a China e continuam a vender gás pelo velho gasoduto soviético. Nabucco precisará de muito gás, e ninguém sabe se o Turcomenistão terá tanto gás. E os turcomanos dizem: vocês têm de provar que já reuniram os financiamentos necessários para o gasoduto, que pode ser construído nos próximos três ou quatro anos; enquanto não mostrarem o dinheiro, não podemos comprometer, nesse gasoduto, as nossas reservas de gás.

Isso significa que, se o Turcomenistão não tiver gás suficiente, os europeus terão de buscar o gás noutro lugar, e não poderá ser no Azerbaijão, a menos que gastem mais de 22 bilhões de dólares em novos investimentos.

Enquanto todos estão emperrados em negociações difíceis, os russos já construíram dois oleogasodutos: o North Stream e o South Stream. Putin está vencendo a guerra contra o projeto Nabucco, porque começou antes e negociou antes com os governos de Gerhard Schröder na Alemanha, para a construção do North Stream; e com o governo de Silvio Berlusconi na Itália, para a construção do South Stream. Esses dois oleogasodutos, um no norte e outro no sul, estão derrotando o projeto Nabucco, para o qual o dinheiro ainda não apareceu; não se sabe de onde poderá vir; não se sabe se o projeto encontrará todo o gás de que precisa para ser comercialmente rentável; e não se sabe onde encontrarão esse gás, se não for nem no Turcomenistão nem no Azerbaijão. A Turquia também quer para ela boa parte do gás, além dos impostos que poderá arrecadar pelo trânsito do gás por território turco. A confusão é completa, por ali.

Continuo a ler os pronunciamentos oficiais sobre Nabucco (o consórcio tem sede em Viena). A cada um, dois meses, aparece novo comunicado: que vai começar, que já têm os 20 bilhões de euros, que estará construído em 2017, a construção começará no próximo ano –, mas é o mesmo que dizem há cinco anos, se não me engano com as datas.

Outro problema central é o tráfico de ópio/heroína no Afeganistão. O que você tem observado, o que pensa desse problema? Quem são os principais players desse comércio? Você também entende que todo esse caso é uma vergonha para o ocidente?
Pepe Escobar: Ah, sim. Um dos principais players nesse comércio sempre foi Ahmed Ali Karzai, irmão do presidente Hamid Karzai do Afeganistão. Encontrei-o depois do 11/9 em Quetta – ele sempre viveu em Quetta, sua base perfeita. Quetta é cidade fascinante. Costumo dizer que é a capital do contrabando e do tráfico de drogas de todo o oriente – e não é dizer pouco, porque Quetta compete com Hong Kong; de fato, compete com todos, com os russos, com a máfia ucraniana.

Em Quetta há uma máfia de transportes, uma máfia de heroína, e, a partir de Quetta todas aquelas redes começam a diversificar-se. Uma rede atravessa o norte do Paquistão e chega ao Tadjiquistão; outra rede bifurca-se no Tadjiquistão e avança na direção da Ásia Central e, dali, avança até a Turquia.

E há as redes do ópio paquistanesas/afegãs e outra rede no Tadjiquistão que só cuida do refino. Todos, na região, sabem que essa é a rede da CIA. O que ainda não se conhece precisamente é o traçado, a trajetória, dessa rede. O mais provável é que parta do Afeganistão pelo Uzbequistão para chegar à Turquia, ou, talvez parta do Uzbequistão. Naquela parte do mundo, cada grupo tem sua rede de tráfico.

Que eu saiba, as máfias chinesas não têm rede no Afeganistão, mas, provavelmente, logo terão. Mas esse já é um problema terrível para os russos. Se se pergunta a funcionários russos qual o principal problema em relação ao Afeganistão, todos dizem a mesma coisa: a droga está em guerra contra nós; a origem dessa guerra é o ópio afegão. O número de russos mortos por causas associadas à heroína já é maior que as baixas que os russos sofreram na guerra do Afeganistão, nos anos 1980s.
Pepe Escobar: Você tem toda a razão. Os russos falam muito sobre isso na Organização de Cooperação de Xangai. Não se trata só de manter as bases norte-americanas fora daquela área – como os chineses também desejam manter. Os russos precisam também encontrar um modo de desmontar essas máfias do ópio, de drogas. É grave problema para a Rússia – como, aliás, também é grave problema para o Irã.

Para o Irã, por causa dos refugiados afegãos. Os refugiados afegãos moveram-se para o leste do Irã, basicamente. Se você vai a Mashhad, no leste do Irã, e visita os subúrbios de Mashhad... Ali é o centro do ópio; é o centro do contrabando do ópio. Atravessam o Afeganistão, via Herat, de Herat a Mashhad, hoje as estradas são excelentes, uma viagem de no máximo sete horas; e de Mashhad distribuem o ópio por todo o Irã. O problema das drogas também é grave no Irã. O Irã já é membro observador da Organização de Cooperação de Xangai, e uma das principais razões pelas quais o Irã interessou-se pela OCX é tentar criar um mecanismo regional capaz de combater eficazmente o tráfico de drogas, uma real guerra ao tráfico naquela região. Aqueles países estão sofrendo terrivelmente.

Sendo assim, a heroína já está sendo processada no Afeganistão, não apenas plantada e colhida ali. Uma pergunta que sempre faço a mim mesmo: e quem fornece os materiais químicos necessários ao refino e processamento? Que eu saiba, não há fábricas de anidrido acético no Afeganistão, há?

Pepe Escobar: Honestamente, não sei. Mas acho que, sim, pode haver, provavelmente há, ajuda externa envolvida nessa produção. É verdade. No Afeganistão o refino é simplesmente impossível. As refinarias costumavam ser instaladas no Tadjiquistão ou no Paquistão, em Quetta, por exemplo, ou em Dushanbe no Tadjiquistão. O povo do vale do Panjshir tem contato com o tráfico, tudo está concentrado em Dushanbe, 40 minutos ao norte do Afeganistão, por helicóptero (e eles têm seus próprios helicópteros). Portanto, sim, eu diria que recebem ajuda externa. E, claro, a especulação sempre aparece: o ocidente estará ali, ajudando o tráfico?

Não é acaso, que tantos especulem na mesma direção: onde há recursos energéticos e/ou tráfico de drogas ilícitas (p.ex. América do Sul, Ásia Central, Sudeste Asiático), os militares e a inteligência dos EUA nunca estão longe...
Pepe Escobar: É, estão, sim, por toda a parte. Embora, hoje, já não possam andar como antes pela América do Sul, em função do que acontece por lá, digamos, desde 2002.

Foi um terremoto geopolítico, de fato: os sul-americanos, pela primeira vez na história do continente (depois da eleição, primeiro do presidente Chávez na Venezuela, e depois do presidente Lula no Brasil em 2002, depois no Equador e até no Uruguai e até com a eleição de Kirschner na Argentina), afinal decidiram. “OK. Agora, vamos agir juntos, agora que tantos governos eleitos por aqui são de centro-esquerda ou são, pelo menos nominalmente, governos progressistas.

Vamos pôr ordem na casa”, disseram os sul-americanos; “vamos nos organizar através da Unasul, por exemplo, a União dos Países Sul-Americanos; e do Mercosul, que é uma união de trocas e comércio regional. E vamos tentar resistir diretamente à interferência dos norte-americanos”. E isso, precisamente, é o que hoje se vê. Lembre que, em 2002, o presidente Chávez da Venezuela escapou de um golpe, organizado diretamente de Washington (e há muitas provas disso, até na Internet. Eva Golinger, advogada venezuelana-norte-americana, escreveu livros excelentes sobre aquele golpe). Em 2007, os EUA tentaram desestabilizar a Bolívia; e houve mais um golpe fracassado no Equador, há pouco mais de um ano.

Quero dizer: não está acontecendo como acontecia antes na América do Sul, porque agora, ali, há unidade política, econômica e geopolítica.

Mas que ninguém duvide: se o Pentágono encontrar uma abertura pela qual possa outra vez tentar intervir diretamente na Venezuela, eles tentarão de novo. O problema é que, agora, há especialistas russos na Venezuela, há empresários e especialistas chineses, e iranianos com interesses locais, na Venezuela. A Venezuela deixou de ser país que só negociava na América do Sul, embora, sim, tenham muitos negócios com Brasil, Argentina etc. Mas hoje a Venezuela vende também ao outro lado do mundo; e negocia diretamente com os dois principais concorrentes estratégicos dos EUA, além de o presidente Chávez ser amigo muito ativo da nêmesis dos EUA, o Irã. São mudanças muito significativas, que explicam muita coisa.

Desde 2002, a América do Sul está transformada em problema gigante para o Pentágono. Não surpreende que aqueles doidos que disputam a indicação a candidato dos Republicanos, tenham dito, no último debate televisionado, que o Hamás e o Hezbollah estão infiltrados por todos os cantos na América do Sul; que os EUA têm de precaver-se contra a América do Sul, porque os EUA já esqueceram que há muitos comunistas e terroristas na América do Sul. Mas o quadro mudou muito na América Latina, e não há nada de novo no que os EUA dizem. [Continua]

Alteram-se as tendências, na disputa por recursos vitais (2/3)

27/12/2011, Pepe Escobar (entrevistado por Lars Schall), Consortium News
Lars Schall: Mas você diria que é coincidência, essa conexão histórica entre recursos energéticos e drogas ilícitas? Por exemplo, na guerra do Vietnã.
Pepe Escobar: É verdade, com a Air America. A Air America não estava só defendendo civis no Laos e no Vietnã. Basicamente, foi uma operação de contrabando de heroína, que a CIA dirigia. – Mas a coisa não é necessariamente assim.

Eu lembraria o caso da Colômbia, que foi completamente diferente. A Colômbia foi um caso de cartéis locais, que lutavam entre eles, pelo monopólio de exportar cocaína para os EUA. Nesse caso, eu diria que havia poucos interesses norte-americanos envolvidos nisso – vender equipamento e armas, sim, mas os norte-americanos não estavam à frente da batalha contra os cartéis. E quando os cartéis se fragmentaram, espalharam-se por todos os cantos. Agora, nos últimos três ou quatro anos, são peruanos que controlam a distribuição de cocaína na América do Sul, já não são os colombianos.

Deslocalizaram-se, por exemplo, também para o Brasil, como centro de refino e de exportação. Eu diria que, semana a semana, aumenta a apreensão de cocaína no Aeroporto Internacional de São Paulo, por exemplo. Se você multiplica isso pelo que realmente entra por ali, é incrível. Hoje, o aeroporto de São Paulo é um dos principais portos de embarque de cocaína para a América do Norte e para a Europa. Antes, foi a heroína que vinha da Ásia Central via Europa, e que desembarcava também no Brasil.
Engraçado: houve um tempo, nos anos 1980s, lembro bem, que havia uma conexão italiana: as pessoas traziam heroína de Milão para São Paulo, e levavam cocaína de São Paulo para Milão (risos). Isso, há quase trinta anos.

O caso da Colômbia é muito diferente. Não há relação direta entre drogas e energia. E o mesmo acontece na Venezuela: ali, o único jogo em andamento tem a ver com energia: é uma batalha por energia. Hugo Chávez – e pense-se o que se pensar sobre ele – tem agido com muita inteligência, porque [pensou ele]... OK. Minha saída é negociar com outros players. E a Venezuela fez logo negócio gigante com a China. Hoje, são um dos maiores fornecedores de petróleo para a China.

Em breve estarão vendendo 1 milhão de barris de petróleo por dia, à China. E podem aumentar para dois milhões, facilmente, se os chineses investirem na região do Orenoco, explorando novos campos, o que os chineses farão. Não é prioridade agora, porque, no momento, os chineses estão concentrados na Sibéria, Ásia Central e África. Mas os chineses ainda têm esse plano C ou D para eles: a Venezuela.

E contam com o Brasil, como exportador de petróleo?

Pepe Escobar: Sim, com toda a certeza, por causa dos depósitos do pré-sal, no Brasil, que são uma espécie de ‘benção’ complexa, de fato. A Petrobrás é vista em todo o mundo como das mais competentes empresas estatais de petróleo. O problema é que a Petrobrás tem de desenvolver tecnologia específica para perfurar a camada de sal, para extrair o petróleo. É operação extremamente complexa e extremamente cara. Dizem que a extração começará em 2017, mas duvido.

O último número que vi, em termos do investimento necessário, faz alguns meses, era algo como 220 a 240 bilhões de dólares de investimentos ao longo de poucos anos, para começar a extrair o petróleo do pré-sal. Todos querem participar. A Chevron já está lá, a Exxon Mobil, a Gazprom quer vir e, claro, os chineses. E tenho certeza de que, quando os brasileiros começarem a lançar projetos, os chineses estarão na primeira fila, com todas as suas empresas, CNPC, CNOOC, todas elas.

Mas é projeto de longo prazo para os chineses, é claro, porque, se se analisa a coisa com realismo, não haverá petróleo do pré-sal antes de 2019/2020. Os chineses estão pensando à frente.

Ouvimos falar muito dos BRICS. Você entende que seja só um bom nome, inventado por Goldman Sachs, ou há mais sob esse nome, uma estratégia abrangente, alguma coisa desse tipo?

Pepe Escobar:
Ainda não há uma estratégia abrangente. Foi só um bom nome, em 2001/2002. Agora já é mais que isso, porque eles se reúnem com regularidade, não só no encontro oficial anual, mas os ministros de Relações Exteriores trabalham juntos, os vice-ministros encontram-se, como encontraram-se recentemente em São Petersburgo. Todos têm interesses semelhantes. Para Rússia e China, trata-se de manter os EUA longe de seus quintais, quer dizer, basicamente, longe da Ásia Central e das ex-repúblicas soviéticas.

Ao Brasil, o que interessa é manter os norte-americanos fora da América do Sul, o mais que seja humanamente possível, considerando que Brasil e EUA mantêm relações muito, muito próximas, e os EUA ainda veem o Brasil como aliado-chave na América Latina. O jogo das relações exteriores entre Brasil e EUA é extremamente complicado.

À Índia, o que interessa é manter-se no mesmo grupo das demais nações emergentes, sem antagonizar demais os EUA. A Índia também tem de jogar um jogo difícil.

A África do Sul só foi incluída, basicamente, porque os demais precisavam dar um salto continental, queriam estar representados em três continentes. Do ponto de vista dos BRICS, eu diria – e, de fato, já discutiram isso em Brasília, no ano passado – que o quinto BRIC seria a Turquia, seria o grupo BRICT. Mas, no último momento, incluíram a África do Sul. Entenderam que precisavam acrescentar ao grupo a maior economia da África, e porque Brasil, África do Sul e Índia já comerciavam entre eles, muito mais, nos últimos quatro anos, que nos 400 anos anteriores. Brasil e África do Sul estão-se integrando muito bem. E a África do Sul é a ponte entre o Brasil e a Índia. Encaixava-se bem aos outros três players.

Mas acho que, em breve, os BRICS talvez incluam – digo “talvez”, porque começaram a discutir, mas ainda não sabem como fazer, em termos formais – a Turquia, a Indonésia e a Coreia do Sul. Que são candidatos naturais, não há dúvidas. Dois na Ásia e um no Oriente Médio, na intersecção entre Europa e Ásia.

Começaram a conversar sobre maior integração em termos das suas economias, trocas culturais, todo esse blá-blá-blá. Agora, estão pensando: OK. Temos de dar um soco no mesa, mesmo que, no começo, seja um soco soft. Já agiram juntos no caso da Líbia, quando se abstiveram de votar a Resolução UN 1.973 – o que já foi um grande passo. Foram condenados por isso, mas sem alarido, por europeus e pelos EUA. Mas raciocinaram que aquela não podia ser uma linha vermelha; no máximo uma suave linha amarela. Nenhum deles pode antagonizar muito os EUA.

Depois, veio a mais recente proposta para que o Conselho de Segurança da ONU votasse o caso da Síria. Os BRICS imediatamente perceberam que “não, não, isso não pode ser: aí está a linha vermelha”. E isso, por várias razões. Porque Rússia e China têm muitos bons negócios com a Síria. Brasil e Síria são muito próximos. Milhões de sírios vivem no Brasil, além de sírio-libaneses. No Brasil se diz sírio-libaneses. São quase indistinguíveis para muitos brasileiros, porque começaram a chegar nos anos 1920s, 1930s e também depois da II Guerra Mundial. Todos vivem perfeitamente integrados na sociedade brasileira, e há muitos negócios entre Brasil e Síria. Essas razões são algumas das que explicam também porque todos aqueles países têm posição comum.

Quanto à África do Sul, é evidente. Na primeira votação, da Resolução da ONU, foram pressionados por Obama. Obama telefonou ao presidente Zuma, falaram por duas horas, e Obama disse: você tem de votar conosco, ou vão ter problemas. Zuma votou contra vontade. Adiante, participou da delegação da União Africana para tentar negociar a paz entre Gaddafi e os ‘rebeldes’. Gaddafi aceitou tudo; os ‘rebeldes’ disseram não. Por quê? Porque a OTAN mandou que dissessem não. Quer dizer, a África do Sul também tinha seus motivos.

A Síria é a linha vermelha. Por isso estão agora começando a organizar a abordagem conjunta, do grupo, em relação ao ocidente atlanticista, de modo muito mais bem coordenado. E em termos econômicos, estão pressionando o Fundo Monetário Internacional, para que dê mais peso aos votos do Brasil e da China.

O FMI tem três nomes na posição de diretores regionais com direito a voto, e China e Brasil dizem, há anos, que precisam de mais diretores, para que seus votos pesem mais. Tudo isso está em discussão. Lembre que o ministro das finanças do Brasil disse ‘e se, talvez, encontrássemos um meio para ajudar as economias europeias?’ Foi como dizer: ‘O problema é do FMI. Nós queremos participar, queremos ter mais votos, mais peso nas votações. Depois, decidiremos se vamos ajudar ou não. Mas terá de ser feito pelo mecanismo do FMI’.

Não há dúvidas de que, sim, estão agindo de modo muito mais coordenado do que há, digamos, dois anos. Não demorará, e os BRICS serão BRICTS, BRICTIISS, BRICS expandidos. Mas hoje o grupo está configurado como um contrapoder, em termos geopolíticos, em termos de atrair o mundo em desenvolvimento; porque os BRICS exercem enorme fascínio sobre o Movimento dos Não Alinhados [orig. Non-Aligned Movement, NAM], por exemplo; e sobre outros países latino-americanos, vários países do Oriente Médio, vários países do Sudeste Asiático, um fascínio imenso... E contra uma ‘liga’ atlanticista, EUA-OTAN (é praticamente uma coisa só, porque os EUA controlam a OTAN).

A OTAN aliou-se às monarquias do Golfo Persa, ultrarreacionárias e ultrarrepressivas. O realinhamento do tabuleiro de xadrez é algo hoje muito suspeito, porque hoje esses países, especialmente o Qatar e os Emirados Árabes Unidos são subseitas da OTAN. Escrevi recentemente que começava a considerar a possibilidade de falar sempre de OTANCCG ou CCGOTAN. CCG é o Conselho de Cooperação do Golfo, que costumo chamar de Clube Contrarrevolucionário do Golfo, porque é o que o que é.
[23/11/2011, Pepe Escobar, “A pedregosa estrada de Damasco” (Asia Times Online), em português em http://redecastorphoto.blogspot.com/2011/11/pepe-escobar-pedregosa-estrada-de.html].

De fato, a fusão entre OTAN e CCG já é total, hoje. Se se inclui a fusão entre o complexo industrial-militar ocidental nos EUA, e o sistema de defesa dos sauditas, que também já é fusão total, pode-se dizer que o Pentágono e o CCG já são uma e a mesma coisa.

Os BRICS veem tudo isso. E para alguns daqueles países é extremamente complicado. Para a China, por exemplo, porque seu principal fornecedor de petróleo é a Arábia Saudita. Atualmente, a Arábia Saudita está ultrapassando Angola. A Venezuela já está entre os cinco maiores. A Líbia não estava entre esses cinco maiores fornecedores, motivo pelo qual disseram ‘OK, agora, não. Quem sabe, adiante.’ Mas como eles organizam o relacionamento entre Pequim e Riad? Os chineses veem que Riad está completamente alinhada com a agenda do Pentágono. E, ao mesmo tempo, os chineses dependem do petróleo dos sauditas. Isso explica, dentre outros fatores, por que os chineses estão tão ansiosos para conseguir depender cada vez menos no petróleo do Oriente Médio.

Tudo isso implica mais negócios com o Irã. Meu palpite, mais ou menos bem informado, é que, em breve, os chineses irão a Teerã e perguntarão: ‘De quanto dinheiro vocês precisam para ampliar muito suas instalações de gás e petróleo? Nós pagamos, desde que vocês negociem conosco.’

Isso explica o oleogasoduto do Turcomenistão à China; isso explica os dois oleogasodutos da Sibéria à China; e isso explica a China estar em Angola e também na África Central; e isso explicará que a China chegue ao Brasil e diga: De quanto dinheiro vocês precisam? A relação sauditas-China é muito complicada para Pequim, o que significa que, por hora, a China não pode antagonizar a Arábia Saudita em nenhum campo.

Ainda sobre os BRICS: você observou o fato de que os bancos centrais da Rússia, da China e da Índia, e também alguns bancos centrais da América do Sul, estão comprando muito ouro?

Pepe Escobar: Sim, claro! Estão agora comprando ouro, e ainda têm o Plano B, que é uma cesta de moedas, em termos de um sistema internacional de moedas. Os russos e chineses querem, os brasileiros querem, e a cesta incluirá provavelmente o dólar, o euro, o yuan, talvez o rublo e também o real, talvez o yen, mas os japoneses não entraram, até agora, na conversa. Por enquanto, se trata, é claro, de comprar ouro, inclusive os que não estão no jogo, mas estão conectados a ele, como a Venezuela. Não esqueça que a Venezuela está repatriando todo o ouro que o país tinha depositado em bancos europeus. Uma primeira remessa de ouro repatriado já está em Caracas.

Você acredita que possa vir a haver algum tipo de conexão, entre a cotação do petróleo e do ouro, no futuro próximo?

Pepe Escobar: Sinceramente, não sei. E sabe por quê? Eu diria que essa conexão dependerá de um movimento ligado a abandonar o petrodólar. É movimento que já começou há alguns anos. O Irã quer muito fazer, hoje como antes. A Rússia já disse que quer. A Venezuela já disse, na América do Sul, sim, nós também queremos. Mas acho que é solução ‘bomba atômica’. Pergunto: você consegue imaginar o dia em que os grandes produtores de petróleo dentro da OPEP digam: ‘Chega de petrodólar. A partir de agora negociaremos com nossas próprias moedas ou com as moedas de uma cesta de moedas’? Basicamente, é o fim da hegemonia dos EUA.

O país que tentar, estará frito.

Pepe Escobar: É. O mundo todo estará frito. Vejo essa opção como opção ‘bomba atômica’. Há poucos anos, quando o Irã estava implantando uma Bolsa de Energia, de fato, a ideia já estava presente lá, desde 2008.
[“Oil Bourse Opens in Kish”, Fars News Agency, 18/2/2008, http://english.farsnews.com/newstext.php?nn=8611290655]

Pepe Escobar: Lembro que, em 2005, entrevistei o sujeito encarregado de organizar e implantar essa Bolsa de Energia em Teerã. Foi uma entrevista fantástica. E, logo depois, tive uma briga terrível com o então editor de Asia Times, porque ele disse “Se publicarmos isso, amanhã os EUA bombardeiam nosso website.

Os iranianos disseram: é nosso primeiro passo, para que as pessoas comecem a comprar contratos de petróleo aqui, na nossa Bolsa, não em New York ou em Londres. E eu disse a ele: E vocês sabem o que estão fazendo, se a coisa evoluir? Dia seguinte os EUA bombardeiam Teerã. E ele me disse: “Sabemos dos riscos. O homem que está construindo esse mecanismo para nós é um ex-corretor que operava em Londres.” Foi negócio extremamente complicado, essa é a verdade.

Depois da minha entrevista, ainda se passaram três anos. Como você disse, a Bolsa só foi implantada em 2008. É uma Bolsa muito pequena, mas, do ponto de vista dos iranianos, é só um começo. Eles gostam dessa Bolsa. Começaram só com petroquímicos e querem, no futuro, negociar petróleo e gás. Estavam especialmente interessados em atrair compradores do mundo em desenvolvimento, além de Rússia e China, que poderão comprar produtos da energia iraniana diretamente do Irã. Tenho certeza de que Rússia e China também adoraram a ideia. Mas, no momento, é só um embrião de algo muito maior, que virá depois.

Você usa as expressões “Oleodutostão do Grande Oriente Médio” e “Grande Jogo 2.0” na Ásia Central. É útil conhecer o bom velho Halford Mackinder (geógrafo britânico, chamado de ‘o pai da geopolítica’), para pensar o “Oleodutostão”?

Pepe Escobar: Não. Quem conhece bem Mackinder é a turma de Brzeziński e o pessoal das agências de segurança nacional em Washington. Só eles acham que podem ‘aplicar’ Mackinder e vencer (risos). Os russos e os chineses diriam: “Não na nossa região, caríssimos. Aqui, a coisa é diferente. Nós temos os recursos. A Rússia é potência continental. A China, sozinha, é um reino e uma civilização. Aqui não admitimos interferência externa, vocês nunca controlarão nossa parte da Eurásia. Podem controlar a parte ‘euro’ da Eurásia, mas ela acaba no Bósforo. À direita do Bósforo, a Turquia tem ambições regionais, o Irã tem ambições regionais, nós temos nossas ex-repúblicas soviéticas, que ainda vemos como nossos satélites.”

O sudeste da Ásia está hoje ligado à China, em termos de comércio, negócios. Eu diria até que partes do sudeste da Ásia já se estão convertendo em subseitas da China.

Lembre que, durante o Milagre Asiático, quando o Banco Mundial lançou aquele famoso livro, em 1993, O Milagre Asiático, o Japão estava à frente, com os quatro tigres asiáticos atrás, depois os subtigres, e a China estava muito atrás, na fila. Hoje, em 2011, a coisa inverteu-se completamente: a China vem à frente, imensíssima, e atrás da China vêm os ‘sub’, tentando manter o passo e obter negócios. A diáspora chinesa é essencial em todos aqueles países.

Eles controlam a maior parte da economia na Indonésia, controlam quase toda a economia na Tailândia, casamentos mistos, tai-chineses, controlam quase toda a economia nas Filipinas, controlam grande parte da economia na Malásia, controlam toda a economia em Cingapura. Tigres? Não. Minigansos. A coisa está completamente invertida.

Por tudo isso, não vejo como se possa ‘aplicar’ Mackinder. Pensaram nisso, no governo Bush, tomado de húbris, e porque diziam, lembra-se, diziam isso dia sim, dia também: “Nós criamos nossa própria realidade e vocês, resto do mundo, que nos acompanhem.” Supuseram que conseguiriam implementar sua estratégia de grande jogo na Ásia Central, construindo aquele oleogasoduto no Afeganistão, o TAPI – Turcomenistão, Afeganistão, Paquistão, Índia, contornando o Irã, a Rússia e a China.

Supuseram que pudessem forçar os turcomanos a vender gás a empresas ocidentais, não à China, ou a ligarem-se à rede russa de oleogasodutos. Estavam ainda embriagados pelo sucesso que obtiveram com o oleogasoduto BTC (Baku-Tbilisi-Ceyhan) e diziam que seria o começo de vários dutos que contornariam o Irã.

Mas tudo isso foi no começo do governo Bush até 2003/2004, depois do ‘sucesso’ da guerra do Iraque. Hoje, poucos anos depois, como já conversamos, os americanos já não conseguem ganhar coisa alguma. De fato, a Organização de Cooperação de Xangai, que é mecanismo para conter essa proliferação de iniciativas dos EUA na Ásia Central, fortalece-se dia a dia.

Em termos de negócios de energia, a Rússia, o Irã, a China, o Turcomenistão, todos estão negociando entre eles. Obviamente, há espaço com a Europa, mas eles não podem negociar com a Europa, no caso do Irã, por causa das sanções; e no caso do Turcomenistão, porque construir um oleogasoduto como Nabucco, de mais de 20 bilhões de dólares, é inexequível. Para dar-lhe uma ideia, o custo do BTC, 4,5 bilhões de dólares naquele tempo, e naquele tempo todos diziam: é ridículo construir um oleogasoduto como esse, quando podemos ter rota mais curta a partir do Irã, que custará dez vezes menos que aquilo. E constroem, mesmo assim. Hoje, já é 500% mais caro que o BTC.

Verdade é que os EUA não estão vencendo coisa alguma; no Afeganistão, estão atirando no próprio pé, porque agora já antagonizaram não só o Paquistão, o que fizeram ao bombardear o país, nos últimos anos, na guerra dos drones; já antagonizaram os próprios afegãos, que realmente queriam acertar alguma coisa com os americanos. Os líderes tribais já diziam ‘vamos conversar com os norte-americanos sobre o tipo de base que querem depois que se retirarem, em 2014’. Queriam discutir o assunto.

Hoje? Esqueça, porque o Paquistão não quer mais discutir, estão fartos; e o Paquistão e a China estão cada vez mais próximos, mais próximos. Os chineses vão explorar essa ravina entre Washington e Islamabad. No Afeganistão, a confusão será total. Eles não querem saber de bases norte-americanas, tenho certeza, depois de 2014. O Pentágono, assim, tem de impor as bases, contra o Afeganistão; não se conhece ainda o mapa do caminho, tampouco, para fazer isso.

Assim sendo, se você analisa em termos de sucessos do novo grande jogo ao estilo dos EUA na Eurásia, já depois de quatro ou cinco anos, não se vê grande coisa (risos).

Se consideramos a questão: “Por que as guerras acontecem?”, você diria que o fato de os bancos estarem no topo da lista dos que se beneficiam com as guerras é parte importante da resposta, por exemplo, até agora?
[Nota do editor: para conhecer o contexto, ver J.S. Kim: “Inside The Illusory Empire Of The Banking Commodity Con Game“, in The Underground Investor, 19/10/ 2010 (http://www.theundergroundinvestor.com/2010/10/inside-the-illusory-empire-of-the-banking-commodity-con-game/): “O Federal Reserve dos EUA cria dinheiro para financiar a guerra e empresta o mesmo dinheiro ao governo americano. O governo americano, por sua vez, tem de pagar juros pelo dinheiro que toma emprestado do Banco Central para custear a guerra. Quanto maior as apropriações de guerra, maior os lucros dos banqueiros.”]

Pepe Escobar: Concordo, mas só se houvesse grandes apropriações de guerra, se o butim fosse alto. No Iraque não foi. O butim a ganhar no Iraque seria o petróleo que pagaria a guerra e, mais que isso, garantiria fornecimento de petróleo para os EUA pelos próximos mil anos, o novo Reich Americano, baseado no petróleo do Iraque. Não funcionou.

O que aconteceu no Iraque foi uma fascinante lição histórica. No começo, os neoconservadores pensavam, obviamente, porque nada sabem, absolutamente nada, sobre o Oriente Médio, sequer viajam, não conhecem; mas pensaram: ‘Ora, vai-nos custar praticamente nada; faremos os iraquianos pagar por tudo; e depois, quando o petróleo começar a chegar, pagarão o que não tiverem pagado antes’. Lembre-se do que diziam: “Somos a nova OPEC”. Isso, no final de 2002, começo de 2003. Também não funcionou.

Hoje, vemos uma variante, digamos, do modelo: guerras pagas por potências estrangeiras. A China está financiando as guerras no Iraque, no Afeganistão, parte da guerra na Líbia (não custou muito, mas, de qualquer modo, sim, a guerra na Líbia), a guerra na Somália, a guerra no Iêmen, a próxima guerra em Uganda ou no Sudão, que os EUA resolvam começar. Basicamente, todas essas guerras são financiadas pelos chineses, quando compram bônus do Tesouro americano. É uma variante do modelo.

Em artigo para a al-Jazeera
[“Why the US won't leave Afghanistan“, Al Jazeera, 12/7/2011, http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2011/07/2011711121720939655.html], você citou um estudo sobre o custo da Guerra ao Terror, publicado pelo projeto Eisenhower da Brown University. Lembra?

Pepe Escobar: Sim, lembro.

E o custo era quatro bilhões?

Pepe Escobar: Era, dependendo das variáveis do cálculo, dependendo dos custos médicos para tratar nos EUA os veteranos feridos, que só aumenta, e aumenta sempre, porque eles ainda têm de pagar pensões a eles. O custo varia hoje entre quatro e seis trilhões de dólares. Quer dizer: o que os EUA ganharam desses de quatro a seis trilhões de dólares, até agora? Até agora, pode-se dizer, só ganharam a Líbia, que não é, exatamente, prioridade para os EUA.

Era parte do plano original dos neoconservadores – começaria com o Iraque, depois Líbano, Síria, especialmente o Irã. Mas, até aqui, só ganharam a Líbia.

Por isso, precisamente, a Síria é tão importante: porque a Síria é passagem para o Irã, e isso ainda é o mesmo que diziam os neoconservadores em 2002, e ainda é parte da doutrina da Dominação de Pleno Espectro. Volta-se sempre aos mesmos temas, porque esses são os temas básicos do que vemos hoje. [Continua]

Alteram-se as tendências, na disputa por recursos vitais (3/3)

27/12/2011, Pepe Escobar (entrevistado por Lars Schall), Consortium News

Lars Schall: Você acha que a guerra na Líbia deve ser incluída entre as Guerras por Recursos, não só por causa do petróleo e, talvez, também, por causa da moeda-ouro que Gaddafi queria lançar, mas também por causa do projeto Grande Rio Feito pelo Homem [orig. Great Man Made River]?

Pepe Escobar: Sim, sim, eu ia falar exatamente sobre isso. Já é Guerra pela Água. Já é. Há alguns meses, comecei a escrever uma longa matéria sobre as futuras guerras pela água. Mas vi que já não são ‘futuras guerras’: já estão aí, já são presentes. Se se examina bem, a guerra da Líbia foi a primeira grande guerra pela água. Haverá muitas outras no Oriente Médio, no sul da Turquia, Israel-Palestina. Mas a guerra da Líbia foi a primeira. E é terrível, por causa do Projeto Great Man Made River – mais de 20 bilhões de dólares, financiados integralmente pelo estado líbio de Gaddafi, com muita tecnologia canadense.

E nem um vintém do Fundo Monetário Internacional.

Pepe Escobar: Isso, sobretudo! Nem um vintém do FMI, nem um vintém daqueles esquemas do Banco Mundial, pelos quais você é condenado a pagar juros até morrer, vezes três. Gaddafi construiu o projeto com recursos líbios, importou toda a tecnologia de que precisou, e os dutos lá estão, enterrados no subsolo do deserto do sul, para levar a água, do subsolo do deserto, até as áreas habitadas no litoral da Líbia. É projeto e realização absolutamente fantásticos, porque há reservas gigantescas de água potável no subsolo do sul do deserto líbio, suficiente para mil anos, segundo estimativas. Mil anos de água potável. Imagine!

O projeto não está totalmente completo; mas acho que 80% já está pronto. As três gigantes da água no planeta são empresas francesas. Em minha opinião, aí estão 99% dos motivos pelos quais os franceses envolveram-se na guerra da Líbia: querem privatizar, só para eles, aqueles mil anos de água potável e, depois, revenderão a água. E lá estão Sarkozy e os interesses do complexo industrial-militar francês: queremos mais gás e mais petróleo para a Total. Eles reclamam há muito tempo. Sempre quiseram a parte do leão das exportações de energia da Líbia.

Há uma aliança entre o Qatar, o complexo industrial-militar na França e Sarkozy – que não passa de lacaio; e o Qatar queria sua parte nos negócios e no comércio no norte da África. E havia também os interesses da OTAN e do AFRICOM, que queriam fixar uma cabeça de praia. Havia ali muitos interesses! Gaddafi não teve qualquer chance de vencer, em disputa contra tantos interesses, o eixo do Pentágono, a OTAN, países europeus chaves, França e Inglaterra, as monarquias do Qatar, Emirados Árabes Unidos e a Casa de Saud... que também queriam derrubar Gaddafi, de fato, desde 2002, quando Gaddafi e o rei Abdullah desentenderam, antes da invasão do Iraque.

Gaddafi não teria meios para derrotar todas essas forças, todos esses poderosos interesses que se mobilizaram contra ele. Queriam renegociar contratos, queriam novos contratos de gás e petróleo, só para as empresas europeias e norte-americanas, talvez também algumas empresas turcas, e absolutamente nada para os países BRICS. Gaddafi foi entrevistado por jornalistas alemães dois ou três dias antes da resolução ‘humanitária’ ser aprovada. E disse claramente: “Se vocês nos atacarem, todos os futuros contratos irão para os países BRICS”. Resultado? Três dias depois, a Líbia foi atacada. Resultado óbvio.

Você também citou, também muito importante: o dinar de ouro, de Gaddafi. Porque o dinar de ouro poderia vir a ser uma moeda africana, poderia financiar projetos de desenvolvimento na África Subsaariana. Gaddafi já estava trabalhando nisso, financiando muitos projetos em países subsaarianos. E já deixara para trás, completamente, o sistema de Bretton Woods. Do ponto de vista de Washington, do Banco Internacional de Compensações [Bank of International Settlements], essa gangue toda... Decidiram que nada daquilo era admissível. Gaddafi foi condenado ali. E não esqueçamos que Saddam também já estava vendendo petróleo em euros no Iraque, no final de 2002. Essa foi das principais causas da invasão do Iraque.

Você acha que os ‘rebeldes’ de Benghazi acertaram, ao criar um banco central em harmonia com os bancos centrais ocidentais?

Pepe Escobar: Era o que queriam fazer. Aquele pessoal do Conselho Nacional de Transição, de fato um saco de gatos – oportunistas, ex-funcionários de Gaddafi, islamistas ligados à al-Qaeda da Cirenaica, exilados que viviam no estado de Virginia, nos EUA. Tenham a santa paciência! Aquilo lá é uma trágica, sangrenta piada. E, claro, desde o início houve uma conexão-Qatar: um dos conselheiros de Sheika Moza, esposa do Emir do Qatar, fazia a ligação entre o Qatar e o Conselho Nacional de Transição.

Por isso o Qatar conseguiu esse banco central independente em Benghazi. Claro que houve influência do Qatar, porque queriam pôr um pé no sistema financeiro no norte da África: estão expandindo seus negócios. O Qatar é um mini-império em rápida expansão. É muito, muito impressionante. Lembro de Doha, há dez anos, era outra coisa. Lembro muito bem. Costumava ir ao Iraque, via Qatar. Vi o Qatar crescer, ano após ano. Hoje, quando se chega em Doha, é como chegar a uma mini Hong Kong.

E estenderam seus tentáculos por todo mundo: na Europa, nos EUA, no Oriente Médio e, claro, também no norte da África, e comerciam pesado com a Ásia. Hoje, já lançam seus olhos para o Brasil. É muito impressionante. O avanço do Qatar no norte da África é muito impressionante. Já estão no norte da África e, em pouco tempo, como esperam, estarão em toda a África: ‘queremos comerciar com todos, temos ótimo sistema bancário, vendemos gás a quem queira comprar’. Mini império em formação.

O que se deve esperar, no próximo ano, em relação a Síria e Irã? São aliados, não são?

Pepe Escobar: São. E essa é a pergunta de multitrilhões de dólares. Tenho planos de ir ao Irã, logo que seja possível. O difícil é conseguir o visto de jornalista. Desde o Movimento Verde, em 2009, está muito difícil. Esse visto de jornalista é indispensável, porque, sem ele, não se consegue falar, por exemplo, com militares do Corpo dos Guardas Revolucionários Islâmicos, nem com gente do governo. Vou tentar novamente, porque quero muito conversar com comandantes dos Guardas Revolucionários, com gente da indústria do petróleo e, claro, quero falar também com iranianos médios, com ‘a rua’, como sempre fiz, porque gosto de fazer.

Ao norte de Teerã, você pensa que está na Califórnia. Ao sul de Teerã, você volta ao ‘núcleo duro’ do Oriente Médio. Há dois universos, na mesma cidade e é espantosa a amplidão do espectro de opiniões que se recolhe, numa corrida de táxi de 40 minutos. Fala-se com gente que diz que esfolaria Rafsanjani no instante em que se encontrem; e gente que defende apaixonadamente os aiatolás mais duros; e gente que acredita que, sem o Movimento Verde, o mundo se acaba. Teerã é um universo.

Os ecos que recebo de amigos que vivem lá, e de iranianos que me mandam notícias e comentários são claros: as pessoas continuam consumindo, vivendo a vida normalmente, a inflação aumenta, os preços subiram muito, mas todos querem sair, tentar comprar seus iPads contrabandeados da China, querem o melhor carro europeu novo que consigam comprar, querem continuar a comer carne – o que é engraçado, porque a carne que importam do Brasil é mais barata, nos açougues em Teerã, que a carne iraniana, veja só!

Mas, ao mesmo tempo, eles sabem que alguma coisa está para acontecer. Pode acontecer de Israel atacar o país. Talvez o ataque venha de EUA-Israel. Há risco de as instalações nucleares serem atacadas. Mas muita gente teme que o ataque vise também a infra-estrutura civil. “Vejam o que aconteceu no Iraque”, dizem vários deles. No Iraque, atacaram instalações e prédios civis. É verdade. Vi lá, eu mesmo, que a infra-estrutura civil do país foi reduzida a ruínas.

As pessoas estão esperando o pior. Tentam manter a atitude, mas todos logo reconhecem que há uma disputa de poder dentro do regime, entre o grupo de Ahmadinejad e o grupo ultra linha-dura dos guardas revolucionários, que se opõem a Ahmadinejad, porque Ahmadinejad não se opõe a algum tipo de entendimento com o ocidente. O pessoal da Guarda Revolucionária quer o confronto.

É situação potencialmente muito perigosa. Por quê? Porque o Supremo Líder, o aiatolá Khameinei, apóia os Guardas Revolucionários, contra Ahmadinejad. O aiatolá quer que o Irã seja respeitado pelo que é – República Democrática Islâmica. Pode-se concluir que não se opõe ao confronto. É situação extremamente perigosa, porque qualquer incidente que haja por lá pode ser imediatamente usado como casus belli e resultar em ataque israelense-anglo-americano, digamos assim.

Os iranianos estão bem cientes desse risco, e preocupam-se com essa disputa dentro da cúpula do regime. Ao mesmo tempo, em 2012 haverá eleições parlamentares; e em 2013, eleição presidencial. Até o momento, pelo menos, o candidato favorito dos eleitores é Larijani, ex-negociador da questão nuclear, amigo íntimo e protegido de Khamenei. Tudo isso sugere que os linha-dura estão firmes no poder. Por incrível que pareça, Ahmadinejad, nesse momento, está mais ou menos marginalizado. Os linha-dura o veem como moderado, excessivamente conciliador, na relação com o ocidente.

Por tudo isso, a situação interna no Irã é muito preocupante. E eles sabem o que pode acontecer na Síria; sabem que a Síria é uma espécie de atalho, o caminho mais curto até o Irã. Mas, ao mesmo tempo, dizem, segundo a avaliação feita pela linha mais dura do regime, que a Síria não será atacada. O que dizem é que o ocidente não precisa do ‘atalho’ sírio: podem perfeitamente atacar diretamente o Irã. Por isso, preparam-se para enfrentar essa ameaça. Tudo, ali, é extremamente preocupante.

Você vê quadro semelhante também em Israel?

Pepe Escobar: Não sei. Tenho muitos amigos judeus na América do Sul, nos EUA, na Europa, que vão e vêm, visitam Israel muito frequentemente, e, quando voltam, dizem: as pessoas estão desorientadas, em Israel. Não sabem como lidar com a Primavera Árabe, o governo não sabe o que fazer com a Primavera Árabe, não sabem sequer o que fazer com a não-primavera na Síria. Parece que em Israel as pessoas temem que o que venha depois de Assad seja ainda pior do que o que se vê hoje. Por exemplo, um governo da Fraternidade Muçulmana na Síria. Israel está numa situação de não-não.

Preferem continuar a enfrentar o demônio conhecido, que é demônio hoje enfraquecido, o regime Assad. Há movimento da sociedade civil em Israel, considerável, contra a corrupção, a inflação, a carestia, e movimento também antiguerra e antigoverno.

Além disso, Israel está sendo governado por um grupo que é refém daquele terrível lobby de colonos fundamentalistas. São de extrema direita, imigrantes ucranianos à Lieberman, são horríveis. Há uma esquerda progressista em Israel, ouve-se falar deles, vez ou outra, pela imprensa, mas estão marginalizados. Mesmo dentro dos EUA: os judeus progressistas nos EUA também estão mais ou menos marginalizados, porque todos os discursos são controlados pelo AIPAC.

Se se ouve rádio, se se leem os jornais da mídia dominante, ou pela televisão, é um release do AIPAC depois do outro. Não se ouve uma voz de judeu progressista que diga “o que vocês estão fazendo é loucura. Temos de sentar e conversar sobre a Palestina, sobre as colinas do Golan, sobre o Irã.” Essa posição é absolutamente minoritária.

E a maioria é apoiada também pelos evangélicos e cristãos novos, nos EUA, que temem o Armaggedon.

Pepe Escobar: Exatamente. A maioria do establishment quer um Eretz Israel, uma Israel maior. E há os religiosos doidos, que dizem: ‘OK. Para apressar o Armaggedon, a melhor solução é declarar guerra a todos os vizinhos.’

Os doidos administram o hospício.

Pepe Escobar: É uma loucura. Eu diria que, digamos, desde o início da Primavera Árabe, o ano de 2011 foi o ano em que os doidos assumiram completamente a administração do hospício. E por isso, acho eu, 2012 será ano realmente terrível em todo aquele arco: norte da África, Oriente Médio e Ásia Central. Na Ásia Central, basicamente o Af-Pak, porque a situação ali, no Af-Pak tem tudo para degenerar completamente, muito depressa.

Qual sua avaliação do recente ataque ao Paquistão, pelas tropas da OTAN?
[Ver “'Mistakes made': Pentagon 'regrets' slaughter of 24 Pakistani troops“, in Russia Today, 22/12/2011, em http://rt.com/news/us-regret-pakistan-airstrike-drone-449/]

Pepe Escobar: Essa questão é extremamente complexa, porque acho que há algum motivo oculto, por trás daquele ataque, que ainda não sabemos qual seja. Talvez o ataque tenha sido provocado por algum paquistanês, talvez a própria OTAN tenha criado uma provocação, para ter melhor pretexto para aprofundar a campanha de demonização do Paquistão, tentar provocar um golpe militar, e conseguir pôr no poder, no Paquistão, a facção dos generais pró-EUA. A situação ali ainda está muito nebulosa.

Seja como for, há pelo menos um detalhe, por trás daquele ataque, que não faz sentido algum: a OTAN conhece perfeitamente a localização de todos os pontos de passagem que os paquistaneses controlam nas áreas tribais. A OTAN tem todos os mapas, todas as coordenadas. É absolutamente inverossímil que bombardeiem um posto paquistanês de fronteira, porque sabem exatamente onde está cada posto. A situação ali é completamente diferente de bombardearem, por erro, um casamento pashtun, numa casa de tijolos de barro, que não está perfeitamente mapeada. Nessas circunstâncias, o satélite vê uma casa, e a inteligência diz “casa cheia de al-Qaedas”, e o drone, bum!, põe abaixo a casa. No ataque da OTAN ao posto paquistanês, a situação foi completamente diferente. Nossos contatos e jornalistas na Índia e no Paquistão absolutamente não estão convencidos da veracidade da versão oficial. Mas não há ainda como afirmar que é falsa. Essa história terá de ser mais bem contada.

Mas é problema, porque Paquistão e China já mantêm relações as mais amistosas.

Pepe Escobar:
Sim, e qualquer coisa que aconteça no Paquistão, daqui em diante, empurra Islamabad cada vez para mais perto de Pequim, o que é absolutamente inevitável. A opinião pública paquistanesa está absolutamente farta da interferência dos EUA. Estão fartos daquela incansável guerra dos drones e de agressões à soberania do Paquistão, se é que, algum dia, o Paquistão foi estado soberano.

Os chineses, claro, reagem à moda chinesa: mantiveram-se calados, não se moveram, à espera de que o comando político de Islamabad corra até Pequim e peça ajuda. Talvez nem demore muito, se os EUA continuarem a agir como têm agido até aqui. Washington só faz reafirmar, todos os dias, que ‘se fodam’ os civis paquistaneses – e perdoe-me a expressão. Washington só sabe pensar na “Guerra ao Terror”, para exterminar a al-Qaeda.

Hoje dizem abertamente e on the record, que, morto bin Laden, a al-Qaeda foi desmantelada – se era bin Laden ou não, é questão ainda aberta a especulações, mas, para Washington, mataram a al-Qaeda. Assim sendo... O que estão fazendo, ainda, no Af-Pak? Ah, mas há um problema, o Paquistão é muito instável, é hoje o coração do movimento terrorista no mundo, não é mais o Afeganistão... E se as armas atômicas do Paquistão caírem em mãos de terroristas?

Só isso interessa. Farão de tudo para encontrar um pretexto para intervir no Paquistão e pôr as mãos no arsenal nuclear do Paquistão. É objetivo ainda distante, é claro, mas é o que o Pentágono quer poder fazer. Essa é a agenda do Pentágono.

No Paquistão, toda a elite política é corrupta – exceto, eu diria, Imran Khan. Imran Khan não é corrupto, e tem reunido centenas de milhares de pessoas, cada vez que fala publicamente, no Paquistão, porque começa a ser visto como alternativa. O que ele diz? “Vamos nos livrar dos norte-americanos, vamos nos livrar dessa elite corrupta, que os militares voltem aos quartéis, queremos autêntico governo civil, queremos desenvolvimento, para combater a desigualdade social”. É cada dia mais popular, por isso. E, sim, pode vencer as próximas eleições. Mas, basicamente, a sociedade civil paquistanesa está farta de tudo, do atual estado de coisas.

Para os norte-americanos, é péssima notícia, porque tudo o que desejam é manter o controle sobre os militares, que continuem a fazer o que o Pentágono os mande fazer. E que deixem os norte-americanos continuar a fazer a tal “Guerra ao Terror”, como bem entendam, nas bases norte-americanas em território do Paquistão, como na base Samsi, no Baloquistão, e tocar como bem entendam a sua guerra de drones nos Waziristões.

Minha opinião é que isso tudo acabou. As coisas ali nunca mais serão como antes. Os chineses estão só esperando. Acho que o Paquistão será admitido como membro da Organização de Cooperação de Xangai, pode acontecer no próximo ano. Com isso, o Paquistão já estará incluído num mecanismo que implica cooperação militar com a China.

O problema é que os militares paquistaneses não são organização monolítica, há camadas, gente indicada por Musharraf, vários pashtuns no oficialato de nível médio que são simpáticos aos Talibã no Paquistão, e, alguns, simpáticos à al-Qaeda; e há fissuras em toda essa construção. Acho que, hoje, o relacionamento entre os militares paquistaneses e o Pentágono complica-se cada vez mais, dia a dia, sobretudo depois do último ataque da OTAN. Afinal, dessa vez, a OTAN atacou o próprio exército paquistanês – atacaram um posto militar. Até para os mais fiéis aliados do Pentágono, já foi um pouco demais.

O antiamericanismo está crescendo em todo o mundo.

Pepe Escobar:
Só não cresce no Golfo Persa (risos).

Não lhe parece trágico, se se pensa na cordialidade do povo, dos norte-americanos comuns?

Pepe Escobar:
É verdade. Viajo desde menino, vai e volta, aos EUA. Conheço bem, no mínimo, 40 estados. Já morei nas duas costas, tenho muitos amigos nos EUA, muita gente que lê meus artigos e sabe que sou brasileiro. Mas também tenho muitos leitores que me acusam de ser Talibã-comunista-apocalíptico-antiamericano blá-blá-blá – o discurso completo. Continuam sem entender.

Uma coisa é gostar do país, da cultura norte-americana pop, dos mestres norte-americanos do entertainment, dos gênios norte-americanos na música, na literatura, no cinema, na arquitetura, na arte etc. E outra coisa é ver e criticar a política exterior dos EUA. Quem, como eu, foi criado no Brasil e na Europa durante os anos 1960-70s, não esquece que a ditadura militar que se instalou no Brasil em 1964 (eu tinha dez anos), foi golpe construído pelos EUA.

É verdade.

Pepe Escobar:
Aqui na América do Sul, aprendemos sem que ninguém precisasse ensinar o que significa viver sob uma ditadura militar patrocinada pelos EUA. Quando falamos, sabemos do que falamos. Evidentemente, os povos do Oriente Médio também sabem do que falam. Na Ásia, alguns também sabem do que falam, os sul-coreanos, por exemplo, também viveram sob regime militar apoiado pelos EUA, antes de alcançarem a democracia.

É trágico, também, que, mesmo depois da Primavera Árabe, tanta gente no Golfo Persa ainda não consiga ver que, ali, vivem sobre regimes extremamente autoritários, autocráticos, que vivem como vassalos, satrapias do império norte-americano, que não vejam que, de fato, não contam com os próprios governos, de fato, para nada, nem para defender alguma mínima soberania.

Quando se veem movimentos pró-democracia autóctones no Bahrain ou na região leste da Arábia Saudita, veem-se respostas. No Egito, onde dizem ‘afinal, temos de nos livrar de todo esse sistema, de uma vez por todas –, ainda não se livraram do sistema, a serpente continua lá. E a serpente está sendo mantida viva com financiamentos da Arábia Saudita.

Ainda não houve revolução no Egito. Só começará, talvez, se se livrarem da junta Tantawi. Isso é o que querem as massas na Praça Tahrir, a geração Google e os trabalhadores no Egito. Mas o problema, ali, é o exército que, no Egito, controla toda a economia. Os números variam, mas alguma coisa ente 25% e 40% da economia egípcia é controlada por militares e famílias da alta hierarquia do exército. Eles não vão desistir disso tudo. Só sairão de lá se forem arrancados de lá, por revolução será fatalmente sangrenta. E os EUA não querem que aqueles militares saiam de onde estão.

Como analista de geopolítica, você diria que o futuro da Alemanha está no leste da Eurásia (Rússia e China) mais do que em New York e Londres?

Pepe Escobar:
Aí está uma pergunta que eu adoraria que você me respondesse! Meu palpite é que a Alemanha deseja integrar-se mais com os russos.

Sim. Mas... as elites econômicas e políticas aqui [na Alemanha] continuam alinhadas com os EUA.

Pepe Escobar:
É. É isso.

Esse ano, Angela Merkel, chanceler, recebeu a mais alta condecoração civil dos EUA, em Washington DC, a “Medalha da Liberdade”. Pelo menos, já tem alguma coisa em comum com Duke Ellington, condecorado em 1969. Mas é evento significativo.

Pepe Escobar:
É. O problema da Alemanha é que é atlanticista, mas não sabe o que o futuro lhe reserva em termos de matérias primas e commodities de que o país carece. E que pode obter da Rússia. O mundo inteiro pode ser mercado para o que a Alemanha produz, e já é. Mas a Alemanha é uma fabulosa potência exportadora, que não precisa deixar subjugar-se, limitar-se, pela aliança ocidental. É claro que não precisa. Mas você disse corretamente: as elites em Berlin e Frankfurt ainda são muito americanizadas.

Gostei de saber, como jornalista e como alemão, que você conhece bem o meu alemão favorito de todos os tempos, Heinrich Heine…

Pepe Escobar:
Heine!

…que também foi jornalista.

Pepe Escobar:
Infelizmente, só o leio em inglês e espanhol, traduções maravilhosas. Não leio alemão, mas meus amigos alemães dizem que o alemão de Heine é fantástico.

É. Heine é o máximo, como Nietzsche, Schopenhauer e Goethe.

Pepe Escobar:
Fui fã apaixonado de Nietzsche durante alguns anos. Um dos meus melhores professores de filosofia, um francês, Gerard Lebrun, era especialista em Nietzsche. Foi dos grandes especialistas franceses em Nietzsche. Aprendi muito com ele. Nietzsche, para mim, ainda é boa companhia

E também foi fã da poesia de Heine.

Pepe Escobar:
É. Gostava da poesia de Heine, é verdade.

De um ponto de vista jornalístico, você acha que o jornalismo está em profunda crise no ocidente?

Pepe Escobar:
Ah, está. Dou-lhe dois exemplos pessoais. Uma das razões pelas quais quis ser jornalista foi Watergate. Estava na universidade, tinha 19 anos, e ainda não decidira o que queria fazer. Pensava em artes plásticas, e sempre gostei muito de literatura, mas achava que não conseguiria ganhar a vida com literatura.

Depois, decidi ser jornalista, e Watergate foi como um modelo para a profissão. Depois, antes do jornalismo digital, trabalhei para grandes jornais nacionais impressos. E vi como opera a indústria jornalística. Um grande jornal nacional é uma grande empresa e todas as grandes empresas jornalísticas operam mais ou menos do mesmo modo, em todo o mundo.

Rapidamente, a coisa começou a me desencantar. No início, foi desencanto. A coisa virou horror, mesmo, do jornalismo que há, só depois do início da “Guerra ao Terror” e antes da invasão do Iraque, porque aí, sim, a imprensa dominante em todo o mundo, perdeu completamente toda a credibilidade.

Se se vê o New York Times exibindo mentiras em manchete de primeira página, todos os dias, durante meses, para mim, aquilo foi o fim do jornalismo-empresa que é, hoje, a imprensa dominante no mundo. E o Le Monde, que eu lia sempre, desde o ginásio, convertido em cópia mal feita, americanizada, do New York Times e, às vezes, até mais reacionário. Pena que eu não conheça jornais alemães, porque, pelo menos as seções culturais, ainda são as melhores do mundo.

O moderno “Feuilleton” alemão foi, mais ou menos, inventado por Heinrich Heine…

Pepe Escobar:
Eu lia muito jornais ingleses, mas às vezes já não se pode mais acreditar nem no ‘padrão ouro’ da imprensa inglesa, como o Guardian ou o Independent, que, historicamente, foram jornais do centro ‘forte’, de esquerda, progressistas. Na última década, afinal, meu desencanto tornou-se total. É preciso recorrer à internet, se você quer informação que realmente faça sentido, em que os pontos se liguem. Hoje, só a internet. A imprensa-empresa dominante em todo o mundo, já não oferece isso. E meus amigos que ainda trabalham em grandes jornais, me contam que é impossível discutir com os editores, sobre o que se deve e não se deve publicar. Isso acabou.

Você acha que o modo como se trataram todas as questões relacionadas ao 11/9 ajudou a impulsionar a mídia alternativa?

Pepe Escobar:
Ajudou, porque se, depois do 11/9, você quisesse saber o que realmente estava acontecendo... só se esquecesse todos os jornais e televisões empresas, em todo o planeta. Só se encontrava informação confiável na internet – observadores e analistas independentes, que se davam o trabalho de investigar, pesquisar, localizar documentos. Na mídia dominante, não se achava nada.

Atualmente, alguns desses observadores e analistas também já estão sendo filtrados, mas ainda se encontra alguma coisa, aqui e ali, fagulhas. Todo o discurso dominante, o próprio discurso, já é monolítico. Não há alternativa. E realmente não há alternativa, porque só se ouvem as vozes de repetição, de gente que diz exatamente a mesma coisa, há décadas.

É. E a maioria dos especialistas e os veículos juntam-se todos em mesas redondas como o Royal Institute of International Affairs, o Council on Foreign Relations, a Trilateral Commission, o Clube Bilderberg…
Pepe Escobar: Exatamente. Todos trabalham para os mesmos think tanks. E outros veículos também têm problemas de credibilidade. Recorre-se ao canal chinês em inglês, CCTV9, porque se precisa de, pelo menos, um mínimo de debate, mas não há debate algum. Gosto do que faz o canal RT, Russia Today. Trabalho com eles. Mas eles não criticam a Rússia. Problema grave.

Trabalho também para a rede al-Jazeera, o que é ótimo, porque tenho meios para chegar a pessoas e obter respostas que, sem a rede, não conseguiria alcançar, por exemplo, na África. Mas também tem grave problema de credibilidade, pelo modo como cobriram a Tunísia, o Egito e a Líbia, comparado à cobertura do que se passa no Golfo Persa. Não podem criticar eles mesmos e absolutamente não podem – esqueça, é totalmente proibido – criticar a Casa de Saud, por causa das íntimas relações que ligam a Casa de Saud e o Emir do Qatar. Tudo é muito complicado, se se navega nesse universo.

Vivemos muito felizes, todos nós, que trabalhamos e escrevemos para o Asia Times porque é realmente independente e todos somos respeitados por isso. O jornal publica opinião dos sionistas, da extrema direita, da extrema esquerda, mostramos o meio, falam os iranianos, os paquistaneses, os russos, os chineses. Temos até um norte-coreano que escreve para nós. Estão todos lá.

Não temos linha editorial especificada, não, o jornal é aberto a todos. Por isso, exatamente, todos nos respeitam. Mas é jornal muito raro. E enfrentamos terríveis problemas financeiros. Tive de trabalhar nisso nos últimos meses e foi uma dor de cabeça. Queremos crescer, mas não queremos perder o controle do jornal. É equação difícil de acertar.

Desejo-lhe sucesso nessa empreitada!

Pepe Escobar:
Obrigado!

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Pepe Escobar nasceu em 1954 no Brasil, e desde 1985 trabalha como correspondente estrangeiro. Trabalhou em Londres, Milão, Los Angeles, Paris, Cingapura e Bangkok. A partir do final dos anos 1990s, passou a cobrir questões geopolíticas do Oriente Médio à Ásia Central, escrevendo do Afeganistão, Paquistão, Iraque, Irã, repúblicas da Ásia Central, EUA e China. Atualmente, trabalha para o jornal Asia Times que tem sedes em Hong Kong/Tailândia, como “The Roving Eye”; é analista-comentarista do canal de televisão The Real News, em Washington DC, e colaborador das redes Russia Today e Al Jazeera. É autor de três livros: Globalistan. How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Red Zone Blues: a snapshot of Baghdad during the surge e Obama does Globalistan.

quinta-feira, dezembro 29, 2011

Contra a força é necessária a astúcia.

Um ano de Dilma e a ascensão do Brasil

Lula foi astuto na escolha de sua sucessora e protegeu o país do retrocesso neoliberal. E a presidenta, com sua própria liderança, tem superado desaforos e dificuldades
Por: Mauro Santayana
Os críticos mais à esquerda podem condenar a atitude de Lula, em sua primeira campanha e na condução dos dois governos, mas os resultados é que contam. Como dizia Marx, o critério da verdade é a prática. As concessões aos neoconservadores deram ao presidente espaço e tempo para trabalhar no seu objetivo maior. Lula trazia, com seu passado, o compromisso quase obsessivo de lutar contra a miséria. Nos primeiros anos, talvez supusesse que isso fosse possível a ferro e fogo. Pouco a pouco, aprendeu o jogo necessário da política: contra a força é necessária a astúcia.
Foi assim que, na busca de seu projeto, fez as alianças indicadas pelas circunstâncias. Como líder sindical, não fazia distinção entre os patrões, fossem nacionais, fossem estrangeiros; como líder de um partido, compreendeu que era preciso moderar o discurso. A isso foi aconselhado pela própria experiência, mas possivelmente também influenciado pela ala mais pragmática de seu grupo. Foi assim que Lula decidiu firmar documento assumindo o compromisso de respeitar todos os acordos assumidos anteriormente em nome do Estado, entre eles o das privatizações.
Ao convocar o empresário e político José Alencar, além de situar-se bem com os setores industriais, sempre inconformados com a voracidade do sistema financeiro, teve a sabedoria de ter um mineiro, com suas qualidades, como companheiro de chapa. Para sossegar os banqueiros, que temiam perder o controle do Banco Central, entregou o órgão a Henrique Meirelles. Trouxe ainda os empresários para o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, no qual puderam, e podem, defender interesses específicos de classe. E reduziu, embora não tenha eliminado, a sua ação conspiratória contra o governo chefiado por um proletário autêntico.
O primeiro passo foi retirar os pobres da miséria absoluta e secular, mediante a política direta de ajuda às famílias assoladas pela fome. Não foi difícil a ele chegar à equação singela: mais dinheiro na mão dos pobres significa mais consumo; mais consumo, mais emprego; mais emprego, mais consumo e mais empregos: enfim, o desenvolvimento geral da economia. O resultado é que todos ganharam, e muitos empresários perceberam que seus lucros crescem à medida que a renda nacional é mais bem distribuída e o mercado interno aumenta.
Ao mesmo tempo, Lula usou a plenitude da sabedoria nas viagens ao exterior. Como todos os meninos pobres e inteligentes, teve de negociar desde cedo, com os outros e com as circunstâncias: com irmãos mais velhos, com companheiros de trabalho e chefes, com os patrões. A virtude obtida na adversidade levou-o a quebrar a resistência dos governantes mundiais – ao contrário de Fernando Henrique, que pretendia conquistar os donos do mundo com a subserviência de sua diplomacia. Lula estava poupado, por exemplo, de citar Weber.
Dilma herdou um projeto contundente de combate à pobreza e às desigualdades, mas também um ambiente de difícil relação com o Parlamento
Comunicava-se com alma. Não tinha por que se curvar. O povo, ao elegê-lo, fizera-o igual a qualquer outro governante do mundo e permitia-lhe até, sem faltar à elegância, substituir os ritos rígidos do protocolo pela afetividade de quem respeita no outro alguém igual a si mesmo.

Reconhecimento

Foi um Brasil novo, menos desigual no plano interno e mais respeitado no plano externo, que Lula entregou a Dilma Rousseff, moça da classe média de Belo Horizonte, já combatente contra a ditadura em um tempo em que Lula, dois anos mais velho, ainda não se interessava pela política. Dilma manteve todos os compromissos de Lula, mas é certo que não se trata de um clone do antecessor. Ela é senhora de ideias próprias e de biografia bem diferente, sobretudo no que se refere à atuação política. Exilada de Minas no Rio Grande do Sul, optou por seguir Leonel Brizola e se inscreveu no PDT, fez carreira na Prefeitura de Porto Alegre antes de participar do governo do estado – e de entrar para o Partido dos Trabalhadores.
Na escolha de Dilma, houve outro ato sábio de Lula. Só uma figura nova, de seu núcleo pessoal de confiança, provada como boa administradora e firme no comando, poderia unir, como uniu, o partido. Ao evitar expor a sucessão a riscos de dissidências internas, viabilizou a vitória que não permitiu o retrocesso neoliberal.
Dilma herdou de Lula as dificuldades para a manutenção do apoio parlamentar, necessário aos atos de governo. Sem partidos com programas ideológicos definidos, a verdadeira representação parlamentar é corporativa. As corporações – como a Febraban (federação dos bancos) e as multinacionais, nisso as mais ativas – trabalham primeiro para situar seus delegados na hierarquia dos partidos, na relatoria dos projetos mais importantes e no domínio das comissões do Congresso para, em seguida, fazê-los, mediante os partidos, ministros de Estado.
Ao assumir o governo, Dilma procurou manter a equipe de Lula quase integralmente. Foi então que enfrentou a primeira crise, no caso do ministro Antonio Palocci, que a substituíra na chefia da Casa Civil. Não havia como preservá-lo, depois de suas infelizes explicações públicas. A partir de então, intensificaram-se as denúncias contra outros ministros. Ela agiu com prudência, dando aos acusados a oportunidade de se explicar. Com Nelson Jobim, ela atuou rapidamente, porque, não estando acusado de nenhum ato ilícito – embora o Ministério da Defesa não esteja livre de suspeitas a serem investigadas –, o político gaúcho desafiara, com desaforo, a autoridade de seu governo. Essa autoridade da presidenta é reconhecida nos setores lúcidos da oposição.
No plano externo ela vem mantendo a nossa independência de julgamento e a aliança com os países que se encontram em situação semelhante à nossa, como China, Rússia, Índia, África do Sul e, mais recentemente, Turquia. É provável que a sua percepção de estratégia econômica seja mais acentuada. Ela já deu sinais nesse sentido, ao propor novo estatuto para a defesa das empresas realmente nacionais.
Na América do Sul, desenvolve o projeto da unificação política do continente, tendo o Mercosul como o instrumento de ação. O Brasil vem enfrentando, com êxito crescente, a crise mundial, que é política, embora se expresse na economia. É preciso registrar que o nosso país, sob Dilma, elevou sua posição, interna e externa, conforme registram os indicadores nacionais e internacionais.
As dificuldades que a presidenta venceu este ano a preparam para a reestruturação do governo no início do novo ano, de eleições municipais das quais dependerá o pleito presidencial de 2014. Dilma, ao que os fatos assinalam, irá conduzir o país no mesmo rumo, mas com sua própria forma de ver e entender o mundo, e isso se verá na composição de seu novo ministério.