segunda-feira, dezembro 05, 2011

24 soldados paquistaneses mortos:‘Névoa da guerra’ ou ataque planejado?3/12/2011, Conn Hallinan, Foreign Policy in Focus
http://www.fpif.org/blog/are_24_pakistani_soldiers_dead_because_of_fog_of_war_or_calculated_strike


Já quase dez dias depois do ataque, pela OTAN, dia 26/11, contra dois postos de fronteira, que matou 24 soldados paquistaneses, o mundo ainda se pergunta se as mortes foram efeito de um incidente provocado pela “névoa da guerra” ou se resultaram de ataque planejado para explodir, com os soldados paquistaneses, também qualquer possibilidade de algum acordo de paz no Afeganistão. Dado que o incidente comprometeu gravemente as relações entre Washington e Islamabad, que atingem hoje o ponto mais crítico em dez anos de guerra no Afeganistão, a resposta àquela questão é vitalmente importante.

Segundo a OTAN, soldados dos EUA e do Afeganistão foram colhidos sob fogo no lado paquistanês da fronteira e retaliaram, em legítima defesa. Altos oficiais dos EUA sugeriram que os Talibã teriam provocado o incidente, para envenenar as relações EUA-Paquistão. Mas vários fatos sugerem que o encontro pode ter sido mais que incidente de “fogo amigo” provocado por inimigo ardiloso, em fronteira mal demarcada e tornada ainda mais fluida no caos dos campos de combate.

O comandante Mullah Samiullah Rahmani dos Talibã no Afeganistão nega que houvesse Talibã na área – e o grupo nunca deixa de reivindicar os créditos por operação militar bem-sucedida, embora seja verdade que, se o grupo estivesse envolvido e não quisesse divulgá-lo, diria exatamente o que disse. De qualquer modo, essa específica região está já ocupada pelo exército paquistanês há vários anos e é considerada oficialmente “limpa” de militantes guerrilheiros.

O incidente não parece ter sido resultado de ataque por aviões-robôs comandados por controle remoto (drones) ou por bombardeiro que tivessem perdido o rumo – que acontece com infeliz frequência. Por mais que a propaganda fale de “armas de precisão” e de “ataques cirúrgicos”, os drones têm causado a morte de centenas de civis, e bombas de 227kg pouco têm a ver com as salas secretas das quais os drones são operados.

Mas, no que se viu no Paquistão, os instrumentos da OTAN eram, dessa vez, helicópteros de combate Apache e, segundo a Associated Press, um avião de combate A-130. O que significa que o ataque em território do Paquistão foi executado por pilotos ‘presentes’ em campo, que identificavam os alvos ‘ao vivo’, do ar, em contato com os comandantes da missão em terra.

Os alvos foram duas fortalezas de fronteira, cuja arquitetura jamais esteve associada a instalações dos Talibã. É verdade que a fronteira entre Paquistão e Afeganistão é porosa e nem sempre claramente demarcada, mas os guerrilheiros afegãos nunca, em toda a história, construíram fortalezas de concreto. Essas “fortalezas” militares são como castelos de areia para os drones e aviões bombardeiros – motivo pelo qual os Talibã sempre preferem cavernas e bunkers subterrâneos.

Claro que os dois lados discordam sobre o que realmente aconteceu. Os EUA dizem que foram atacados da fronteira do Paquistão, combateram durante três horas e, no final, chamaram os helicópteros armados.

Segundo os paquistaneses, não houve nenhum tipo de ataque partido de território paquistanês; que os helicópteros atacaram primeiro, e que houve troca de tiros por menos de três horas. O Paquistão diz também que houve dois ataques, sempre partidos dos helicópteros Apache. O primeiro atingiu o posto de Volcano; quando o outro posto de fronteira próximo, o posto Boulder, atirou contra os helicópteros, o segundo posto também passou a ser atacado. O Paquistão diz que entrou imediatamente em contato com a OTAN, para alertá-los de que aviões da OTAN estavam atacando militares paquistaneses, mas mesmo depois de a OTAN ter sido informada, o fogo continuou. Os helicópteros afinal partiram; mas reapareceram pouco depois e novamente atiraram contra os postos paquistaneses que, então, já haviam reforçado a defesa local.

Pode ter sido havido erro nas informações de inteligência?
Segundo os paquistaneses, Islamabad cuida muito atentamente de identificar todos os postos, de modo que a OTAN os conheça e evitem-se incidentes como o que agora ocorreu. Para o general paquistanês Ashfaq Nadeem, “é absolutamente impossível que a OTAN ignore a localização dos postos paquistaneses”. E o general Ashram Nader definiu o ataque como “ato deliberado de agressão”.

Poderia ter sido “deliberado”? Claro que erros acontecem, mas, nesse caso, o momento em que teria acontecido esse ‘erro’ torna tudo muito suspeito.

O momento não poderia ser mais delicado, com cerca de 50 países preparando-se para a Conferência de Bonn, na Alemanha, que se esperava que encontrasse modo de dar fim à guerra do Afeganistão. O Paquistão é presença necessária – o único país da região que mantém contatos consistentes com vários grupos guerrilheiros. Se os EUA realmente planejam sair do Afeganistão até 2014, a cooperação com o Paquistão é indispensável.

O alto comissário britânico para o Afeganistão, Wajid Shamsul Hasan, disse ao jornal Guardian (UK) que o caso “pode arruinar as relações entre EUA e Paquistão e pode destruir os planos de retirada dos EUA”.

O Paquistão já disse que não comparecerá à conferência em Bonn; e que as relações com os EUA só não pioraram porque sempre foram péssimas. O Paquistão também já fechou duas grandes estradas, parte essencial da rota de suprimentos levados por terra para os soldados que estão no Afeganistão – pelas quais passam 50% de todos os suprimentos necessários à empreitada de guerra dos EUA. E Islamabad ordenou que a CIA feche a base dos drones mantida em Shamsi, no Baluquistão, província do Paquistão, e que todos os agentes deixem o país.

Quem mais ganha com tudo isso?

Não é segredo que muitos militares norte-americanos absolutamente não aprovam qualquer contato para negociação com os Talibã, sobretudo com o grupo considerado seu mais letal aliado – o grupo Haqqani. Há uma cisão não divulgada, mas muito bem demarcada, entre o Departamento de Defesa e o Departamento de Estado: o Departamento de Estado quer bombardear os guerrilheiros e enfraquecê-los, antes de sentarem com eles para negociar; a Defesa não vê vantagem em trocar bombardeios por ‘conversações’. Não é impossível que alguém do lado uniformizado dessa ravina tenha resolvido fazer fracassar o encontro de Bonn ou, no mínimo, dificultar muito qualquer resultado negociado.

Também não é segredo que nem todos, no Afeganistão, desejam a paz, sobretudo se a paz implicar algum acordo com os Talibã. A Aliança do Norte (formada quase toda de tadjiques e uzbeques) não quer contato algum com os Talibã da área pashtun, reunidos principalmente no sul e no leste e nas áreas tribais do Paquistão. Há grande número de tadjiques no exército afegão (são a maioria dos soldados e, além disso, são 70% dos oficiais mais graduados). O presidente Hamid Karzi é pashtun, sempre muito exposto no governo de Kabul dominado pela Aliança do Norte.

E há em jogo, também, amplas questões regionais.

Ninguém se surpreendeu quando a China, imediatamente, saiu em defesa do Paquistão. O ministro das Relações Exteriores da China Yang Jiechu manifestou “profundo choque e grave preocupação” com o incidente. A China não está satisfeita com o deslocamento da OTAN no Afeganistão e menos satisfeita está com a permanência das bases dos EUA naquele país. Em reunião dia 2/11 em Istanbul, China, Paquistão, Irã e Rússia opuseram-se à permanência de longo prazo dos EUA na área.

O Irã está preocupado com a ameaça de forças dos EUA próximas à fronteira; Islamabad teme que quanto mais se prolongue a guerra, maior o risco de o Paquistão ser desestabilizado; e Pequim e Moscou suspeitam de que os EUA estejam de olhos postos, cobiçosos, nos recursos de gás e petróleo da Ásia Central. Rússia e China dependem dos hidrocarbonetos da Ásia Central: a Rússia, para exportar para a Europa; a China, para manter ativadas suas indústrias.

A China também dá sinais de ansiedade com a recente mudança de estratégia do governo Obama, na direção, agora, da Ásia. Os EUA intervieram abertamente em disputas entre a China e seus vizinhos do sudeste da Ásia, no Mar do Sul da China; e recentemente assinaram acordo para deslocar 2.500 Marines para a Austrália. Washington também estreitou laços com a Indonésia e aqueceu relações com Myanmar. Aos olhos da China, tudo isso obriga a pensar em campanha para cercar Pequim com uma muralha de aliados dos EUA, de modo a manter pressionada a jugular da energia chinesa. Cerca de 80% do petróleo chinês viaja pelo Oceano Índico e Mar do Sul da China.

Ingrediente chave em qualquer fórmula para abalar o crescente poder e influência de Pequim na Ásia é, também, a Índia. Tradicionalmente, Nova Delhi mantinha política exterior neutra, mas, desde o governo Bush, vem-se aproximando cada vez mais de Washington. As relações entre China e Índia estão estremecidas desde a guerra de fronteira entre os dois países em 1962, quando a China apoiou o Paquistão, tradicional inimigo da Índia. Reclamos da China, sobre partes da área de fronteira com a Índia, em nada melhoraram as coisas.

A Índia também preferirá ver governo sem Talibãs em Kabul; qualquer coisa que cause incômodos a Islamabad interessa a Nova Delhi. E há elementos nas comunidades militar e diplomática dos EUA que gostariam que Washington mudasse de lado: mais longe do Paquistão e mais próximo da Índia, opinião partilhada por número significativo de indianos.

Até aqui, a Casa Branca recusou-se a desculpar-se. Em vez de pedido de desculpas, o governo Obama vazou para a mídia comentários ‘internos’ em que se diz que, em ano eleitoral, será completamente impossível qualquer ‘amolecimento’ em relação ao Paquistão.

Afinal, os confrontos de fronteira sempre podem ser, mesmo, acidentais, embora nada nesse caso confirme essa possibilidade. Sabe-se que inquéritos conduzidos por militares não se distinguem pelo rigor factual; e, em todos os casos, grande parte da investigação será mantida secreta.

Seja como for, com todas essas linhas de força riscando ao mesmo tempo os céus noturnos no Paquistão, é muito provável que alguém tenha visto uma oportunidade e tenha-se aproveitado do momento. Em certo sentido, não faz muita diferença que o ataque tenha sido acidental ou deliberado: as consequências do que aconteceu permanecerão por muito tempo, com fragmentos que se espalharão, das montanhas e pedras do Paquistão, aos litorais distantes do Oceano Índico e além.