quinta-feira, dezembro 01, 2011

Occupy [a revista] Foreign Affairs
29/11/2011, John Feffer, Foreign Policy in Focus, vol. 6, n. 47http://www.fpif.org/articles/occupy_foreign_affairs

O que mais realmente surpreende não é o tema do recente ensaio de George Packer[1]. A desigualdade, diz ele, está minando a democracia. Vários progressistas martelam essa ideia também dentro dos EUA há anos, se não há décadas. Nem chega a surpreender, tampouco, a decisão de publicar.

Foreign Affairs é a publicação baluarte da elite norte-americana que comanda a política exterior dos EUA. Mas já não é a velha publicação exclusivamente de centro-direita dos anos da Guerra Fria. Afinal de contas, tem publicado material de autores como Michael Klare
[2] e Julia Sweig[3], todos oriundos do Institute for Policy Studies, e também de John Gershman[4], que me antecedeu nessa Foreign Policy In Focus. Não. O que mais chama a atenção não é que a revista tenha publicado do ensaio de Packer. É o destaque que a revista deu àquele ensaio: é o ensaio de fundo da edição nov./dez.-2011 da revista, exposto já na capa, onde se lê, em letras negritadas “Acabou-se a América?” [Is America Over?[5]]

Quando a revista Foreign Affairs põe a desigualdade na capa, provoca discussão pública
[6] – e leva o debate para dentro dos aristocráticos gabinetes do Conselho de Relações Exteriores – não há dúvida: o movimento Occupy Wall Street alcançou importantíssima vitória, que supera, de longe, a ‘simpatia’ que recebeu de bastiões do liberalismo como The New York Times, The New York Review of Books, and The New Yorker. É sinal, também, de que a elite norte-americana das ‘relações internacionais’ nos EUA está tomada hoje de profunda ansiedade. A questão é: por que os mandarins da política exterior dos EUA estão à beira de um ataque de nervos? Ou, dito de outro modo: por que a revista Foreign Affairs passa a desejar, de repente, que seus leitores concentrem-se com seriedade na questão da desigualdade?

Packer argumenta que a economia dos EUA descarrilou no final dos anos 1970s, quando o 1% mais rico deixou de pensar nos interesses nacionais e concentrou-se absolutamente em preservar o próprio poder econômico e político. Lobbystas poderosos, políticos da oposição política de direita e uma Wall Street recentemente desregulada, todos, uniram forças para promover a riqueza dos muitos ricos, deixando para trás toda a população. Embora a globalização e a tecnologia tenha acelerado aquelas tendências, elas resultaram de escolhas fundamentalmente políticas feitas por governos eleitos ( movidos pelos poderosos interesses que os ajudaram a eleger-se).

“Temos recursos para upgrade de telefones celulares, mas não temos recursos para consertar estradas ou pontes” – escreve Packer, como exemplo do projeto econômico daqueles anos. “Inventamos a banda larga, mas não cuidamos de estendê-la nem a 35% do público consumidor. Carregamos 300 canais de televisão no iPad, mas, na última década, 20 jornais fecharam as sucursais em outros países.”

Em outras palavras, o interesse público sofreu grave deterioração nas últimas duas décadas, apesar de o interesse privado continuar a prometer velocidades máximas, ‘inovação’ e novidades sem fim. Para piorar, essa é uma dinâmica que se retroalimenta. “Quanto mais a riqueza se concentra em poucas mãos no topo da pirâmide, mais influência e poder-de-favor acumula-se do lado dos ricos e dos conectados aos ricos, o que torna cada vez mais fácil para os ricos prosseguir nos projetos que excluem, sem que, por isso, tenham de pagar o preço final” – continua Packer. “Isso, simultaneamente libera os ricos para que se dediquem a acumular cada vez mais riqueza, até que já não se possa distinguir o que é causa e o que é efeito”.

Tudo isso faz perfeito sentido para mim e meus colegas do Institute for Policy Studies que tanto estudamos o problema da desigualdade ao longo da última década. O que não faz ainda perfeito sentido é por que a revista Foreign Affairs, de repente, decide chamar a atenção para a mesma questão. A edição de nov.-dez./2011 traz publicidade da Shell na pág. 2 da capa e do Grupo Goldman Sachs no verso: nem um nem outro podem ser ditos, precisamente, simpáticos ao movimento Occupy Wall Street. O Conselho de Relações Exteriores, que publica a revista Foreign Affairs, tem longo e intenso relacionamento com Wall Street e figurões como David Rockefeller e Peter Peterson. A primeira impressão é que Foreign Affairs mordeu a mão que a alimenta.

Aqui vão três possíveis razões para o súbito interesse por questões de desigualdade, na revista Foreign Affairs.

Os empregos continuam a desaparecer: Muitos dos jovens que estão hoje à frente do Movimento Occupy Wall Street fizeram tudo que lhe disseram que fizessem: foram à universidade, assumiram empréstimos-gigantes para pagar os cursos e, mesmo assim, não encontram empregos decentes. No início dos anos 1970s, Adam Davidson escreveu na revista The New York Times Magazine, “menos de 11% da população adulta era formada em cursos superiores e a maioria deles conseguia bons empregos. Hoje quase 1/3 da população tem formação superior e porcentagem muito mais alta frequenta universidades de segunda linha.” E os empregos, simplesmente, não existem.

A mensagem de Occupy Wall Street ecoa alta e clara também nos estratos dominantes da sociedade nos EUA – e em publicações como a revista Foreign Affairs –, porque os pais e mães de classe média alta estão hoje muito agudamente conscientes das dificuldades que os filhos encontrarão à frente. Claro que a desigualdade já há muito tempo afeta duramente os operários e os afro-norte-americanos. Mas a elite agora está obrigada a ver que jovens brancos, que saem das melhores universidades do país já curvados sob o peso da enorme dívida que assumiram para estudar, são o equivalente funcional dentro dos EUA da desigualdade que, antes, se associava aos países do Terceiro Mundo.

EUA perdem competitividade: Os que defendem mercados livres têm, tradicionalmente, resposta pronta à ideia de que os EUA já não são globalmente competitivos. Mesmo com tantos empregos transferidos para o exterior, dizem eles, os EUA continuam a ser a nação líder da ‘inovação’: iPhones, sequenciamento de genes, os mais complexos instrumentos financeiros. Apesar de o sistema público de saúde ser visível fracasso, nossos recursos para medicina de alta complexidade continuam a ser os melhores do mundo, e a elite global continua a acorrer aos nossos hospitais, em busca dos tratamentos mais sofisticados. Apesar de nosso complexo militar-industrial ser o horror quase absoluto, o mundo inteiro faz fila para comprar nossos jatos de combate. Mas, digam o que disserem, a verdade nua e crua é que, por todos os padrões objetivos, os EUA já ficaram para trás. No mais recente Índice de Competitividade Global do Fórum Econômico Mundial, os EUA caíram pelo terceiro ano consecutivo e chegam agora ao 5º lugar. Nos primeiros lugares estão países europeus: Suíça, Finlândia, Suécia. Apesar de todos os problemas da zona do euro, há 11 países nos 20 primeiros lugares de países mais competitivos. Embora a desigualdade não seja item considerado diretamente para construir essa lista, ela influencia indiretamente os resultados, porque pesa nos itens de infraestrutura pública e Produto Interno Bruto per capita. In The Atlantic, Richard Florida,
[7] especialista em estudos urbanos, destaca a relação inversa que há entre desigualdade e competitividade, para mostrar que a criatividade pode, sim, andar de mãos dadas com a igualdade de oportunidades. Todos podemos comer do biscoito fino e, simultaneamente, distribuí-lo para muitos.

Já não se trata só, hoje, do Sul Global: A Primavera Árabe seguiu o padrão clássico de classe econômica emergente, que vê suas ambições capadas por estados esclerosados na Tunísia e no Egito. Quando as ondas de pós-choque da Primavera Árabe atingiram o clube da OECD de países economicamente avançados, o foco, rapidamente, foi direcionado para questões da desigualdade. Nesse verão, por exemplo, Israel conheceu os maiores protestos de toda sua história. Nada tiveram a ver com Palestinos ou colônias ilegais em territórios ocupados, nem com as questões que, em geral, empurram Israel para as manchetes. Antes de aparecerem as tendas no Parque Zuccotti em New York City, apareceram nas ruas de Telavive, sob o slogan “Queremos um estado de bem-estar”. O “milagre econômico” de Israel, inventado em larga medida por um boom tecnológico, só beneficiou pequena parcela da população. Como Eyal Press observou, na The New York Review of Books, Israel é o quinto país em termos de alta desigualdade na classificação da OECD e está vendo crescer a faixa de pobreza extrema. Mesmo nos países elogiados pela capacidade de surfar a onda da ‘inovação’, as classes médias estão perdendo espaço. Segundo a OECD, a desigualdade aumentou dramaticamente na maioria dos países de economia mais avançada do mundo. Uma coisa é a desigualdade minar a democracia – efeito que jamais tirou o sono dos mandarins da política exterior dos EUA. Mas outra coisa, muito diferente, é a desigualdade já estar minando a estabilidade e o contexto geral dos investimentos: então, sim, os papas de Foreign Affairs resolveram se mexer.

Tudo isso implica, ao que parece, que os mandarins da política exterior dos EUA começam, aos poucos a perceber que a ressaca de seus anos Bush vinha não com apenas um, mas dois graves sintomas. As invasões militares e violações das leis internacionais continuaram a causar terríveis dores de cabeça. E o furor desregulatório e cortes de impostos para os ricos causavam também graves perturbações na digestão. A palavra então passou a ser “prudência”. A corrida à caça do lucro e o impulso da ganância desenfreada são sempre bem-vindos, para essa gente. Mas quando as coisas começam a aproximar-se do ponto de risco máximo, é preciso introduzir correções de rota. A decisão de publicar e promover o ensaio de Packer é o equivalente de pais que aparecem no auge da festa dos filhos, para ordenar que baixem o som, antes de os vizinhos chamarem a polícia.

Ronald Reagan costumava dizer, bem arrogantemente, que os Democratas tinham ido tão para a esquerda, que acabaram por cair para fora do país. Hoje, a política exterior começa a ver que os Republicanos moveram-se tanto para a direita, que saíram dos trilhos, de vez. O Partido Republicano foi tão furiosamente extremo na defesa do 1% – hoje, de fato, já não passam de 0,1%, como Paul Krugman já lembrou – que de fato esqueceram os interesses do país e criaram um confederação de cupidez. Essa confederação só consegue ver a busca de poder e privilégios. Por mais aliados que ainda sejam, de Wall Street, os enfatuados da revista Foreign Affairs já sabem que essa não é aliança que lhes interesse defender. (...)

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[1] “Inequality and American Decline. The Broken Contract” [Desigualdade e declínio americano. O contrato quebrado], George Packer, Foreign Affairs, nov,-dez.2011, em http://www.foreignaffairs.com/articles/136402/george-packer/the-broken-contract
[6] A revista promoveu um painel de discussões, que pôde ser acompanhado ao vivo pelo Twitter (http://www.foreignaffairs.com/discussions/news-and-events/occupy-foreign-affairs) [NTs]