CRÔNICA DE UMA DERROTA ANUNCIADA
A queda da seleção espetacular mercantil
O Brasil não jogou direito porque jamais teve um time, uma equipe, neste triste campeonato espetacular e mercantil, que assolou o imaginário do país. Parreira disse que era mais um gerente de talentos do que um treinador. Antecipou o que estava por vir.
Katarina Peixoto
O Brasil saiu da Copa do jeito que entrou. Jogando na contingência, escorado no espetáculo mercantil que transfigurou – mas não transformou – o futebol em slogans imaginários cravados num aglomerado de estrelas milionárias. O que interditou a suposta vingança, contra a França? Isso, um time inexistente, porque time de futebol é coisa que ainda não está, exatamente, à venda. Vendem-se e compram-se craques, técnicos, equipe técnica, narradores esportivos, comentaristas (por encomenda), repórteres festivos.
Time de futebol, sobretudo numa copa do mundo, não se reduz ao espetáculo mercantil. Pelo menos não completamente, ou não exatamente. Dinheiro, confiança, aposta, tudo isso importa, mas não é o que determina a formação de um time, num campeonato em que gol é o milagre do detalhe buscado ou faltado. É no detalhe e na medida do que soçobra como detalhe, diante da cortina de fumaça da pressão espetacular e mercantil, que se faz aparecer a realidade do que é ou deixa de ser – ou nunca foi – um time.
Time de futebol é um conjunto, desses que não se faz com a mera soma das partes, ou de estrelas. Tanto é assim que quadrado mágico ficou só na mágica e não ganhou nunca a prerrogativa de realidade. Por que? Porque futebol só é mágica depois de ser real. Futebol é na realidade um esporte coletivo, algo que acontece no confronto entre dois times. O Brasil não jogou direito porque jamais houve um time, neste triste campeonato espetacular e mercantil, que assolou o imaginário e as expectativas do país.
Dez de cada dez comerciais evocam o futebol brasileiro, nas tevês, rádios e jornais. A sexta estrela é celebrada do comercial da cerveja ao da loja de eletrodomésticos. Alguns jogadores brasileiros não vendem apenas tênis e bolas, mas desodorantes, refrigerantes, contas bancárias, celulares, sonhos de crianças pobres num universo onírico e fascinante.
Nada nesse poder imagético tem qualquer realidade e nisso talvez resida alguma lição importante e algo a levarmos para as nossas tripas doloridas com essa derrota justa.
O ensinamento que fica não depende das elucubrações a respeito do que não nos é dado a pensar pela joint-venture espetacular que assola a cobertura dos jogos. Não depende, tampouco, dos raros comentaristas críticos e devidamente paranóicos, com os tristes desempenhos da seleção que não houve. É um ensinamento que só pode ser percebido e levado a sério se conseguirmos responder a algumas perguntas.
Por que não se formou um time em momento algum? Podem objetar que o espetáculo mercantil é algo que assola o futebol mundial, uma das grandes indústrias fetichistas do financismo, e não apenas o brasileiro. Certo, mas a Alemanha tem um time de futebol jogando em campo, assim como tinha a Argentina, que perdeu por estupidez de um técnico irresponsável e em pânico.
Uma outra pergunta talvez mais delicada é esta: por que os jogadores, salvo raras e valorosas exceções, não disputaram qualquer bola dividida contra a França? Por que deixaram Zidane dançar em campo, apresentando o seu primoroso, categórico, límpido, futebol? Uma maneira covarde de responder a isso é dizendo que a França não deixou o Brasil jogar. É verdade. A covardia fica por conta de um detalhe: por que diabos o Brasil não quis jogar?
É importante e necessário dizer que Lúcio, Zé Roberto, Juan e o goleiro Dida foram os únicos, desde o início do campeonato, que estavam inteiros ali, em campo. Lúcio foi o único que manteve em contas claras, nítidas, desde o início e ininterruptamente, o compromisso com o futebol, com a seleção e com o desejo de um time. Ele é o grande jogador do Brasil, o mais honrado e o mais bravo, o mais vigoroso e compromissado.
É um paradoxo aparente o de que quatro jogadores tenham querido tanto fazer um time e que todo o resto não possa ser responsabilizado totalmente pela derrota justa para uma França inteira em campo. Como se pode destacar alguns, nomear os grandes, sustentando que não é de estrelas que se faz um time para vencer? Não é porque para elogiar a singularidade vale e para criticar, não. É porque aquilo que os bons jogadores brasileiros nessa copa assumiram e incorporaram para si não é algo que depende exclusivamente deles, mas da confiança e aposta integral num time.
Apesar da abundância de revelações mágicas sobre os bastidores a nós inalcançáveis, a respeito das mesquinharias mercantis imaginárias; apesar das possíveis e prováveis operações escusas a serem reveladas pelos heróis da resistência à joint-venture do grande monopólio e da CBF; apesar da desconcertante perplexidade de nossos jogadores, que não parecem entender a razão da derrota a partir da própria seleção – que não há, daí a incompreensão esperada; apesar de tudo isso, o que resta de ensinamento numa justa derrota é a evidência que ela deixa a todos os que se dispuserem a ver.
Essa evidência é a de que o desejo e a formação de um time não são mensuráveis financeiramente. Tudo o que se mede segundo o espetáculo mercantil é refém da sua medida, é dele dependente e completamente submisso.
Time de futebol não é algo que depende apenas de um contrato. Que fique clara a importância da afirmação do técnico Parreira, responsável direto – ainda que não exclusivamente – pela justa derrota, logo no início da copa.
A afirmação espetacular era a de que ele não passava de um administrador de talentos. Gerente de um aglomerado, portanto não técnico de um time. Uma afirmação que antecipou o que estava por vir.
Não é patriotismo o que está em jogo, por outro aparente lado, porque não precisa ser. Não são o caráter dos jogadores e da equipe técnica, tampouco os interesses dos conglomerados financeiros, que patrocinam esse espetáculo mercantil, o que decepciona nessa justa derrota.
O declínio e a queda da seleção brasileira é o declínio e a queda de um universo paralelo absolutamente alheio à realidade e mesmo avesso às suas exigências. É o declínio da formação de um time, de uma coletividade orgânica, inteira, conjunta; é a queda a verdadeira impossibilidade de completude e finalização de uma jogada, que aparece em bolas ao vento e caras e bocas para as câmeras, que soçobram em faltas cavadas com todo o vazio da falta de compromisso, exatamente aquilo que Lúcio, Zé Roberto, Juan e Dida demonstraram, em seus desejos, disputas e compromissos, desmentindo o gerente do universo espetacular e mercantil, que não pode e não deve ser unicamente responsabilizado pelo fracasso necessário de um time fictício.
O ensinamento desse declínio e dessa queda seja o aprendizado de que no futebol, como na vida, a realidade exige respeito, e sem bola dividida não é só a graça que falta. Sem o engajamento e o compromisso que o respeito pela realidade, pelos outros, pela formação de um time, traz consigo, a queda é inevitável. E necessária.
Não foi atitude, esse fetiche bobalhão, o que faltou. Foi respeito, compromisso, engajamento. Faltou o senso elementar num time de que um time não é a soma de seus componentes individuais, portanto não é algo que um gerente possa resolver; faltou o respeito ao adversário, esse mesmo, que não admitiu a soberba e disputou tudo, inclusive aquilo que não se vende. Faltou, precisamente, o inegociável. Faltou o que jamais cairá, porque nunca será mensurável pelo espetáculo mercantil.
Um bom começo esteja na justeza dessa derrota. E os bons e devidamente paranóicos combates, sejam feitos pelos altivos críticos da joint-venture do obscurantismo no nosso futebol.
Salve Lúcio, Zé Roberto, Juan e Dida. Salve Lúcio, o quase único jogador de um time que não saiu de seu compromisso inegociado e que, exatamente por isso, garantiu-lhe o respeito e a honra, nesse triste e ao mesmo tempo necessário declínio e queda, da seleção que não existiu.
é doutoranda em Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
E-mail: katarinapeixoto@hotmail.com
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