terça-feira, julho 18, 2006

Entrevista: Antonio Negri e Giuseppe Cocco



Longe do paraíso

Os italianos Antonio Negri e Giuseppe Cocco filosofam em dueto: as conquistas dos trabalhadores provocam o capital a criar novos meios de exploração; que provocam novas formas de organização; e assim por diante...

Entrevista a Cláudia Motta, Eduardo Souza, Krishma Carreira e Paulo Donizetti de Souza

Dos primeiros passos na Juventude Italiana de Ação Católica, ainda na adolescência, aos dias de hoje, o filósofo italiano Antonio Negri acompanhou as transformações do século 20 dos mais diversos ângulos. Acusado de liderar ações “extremistas” da organização Autonomia Operária e das Brigadas Vermelhas, nos anos 70, ficou preso por mais de 10 anos e exilado por 14. É autor de livros críticos à globalização, entre eles Império (2000), Multidão (2004) e, mais recentemente, Glob(AL): Biopoder e a luta em uma América Latina globalizada. Este último foi escrito em parceria com o cientista político Giuseppe Cocco, italiano radicado no Brasil, coordenador do Laboratório Território e Comunicação da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.Negri e Cocco assinalam que a América Latina vive um momento de ruptura em relação às dimensões do comando mundial. E consideram que a precarização do trabalho impulsiona um novo ciclo social, em que as lutas trabalhistas rompem as fronteiras das empresas e se incorporam à luta pela cidadania, tendo como base as necessidades locais onde estão inseridas. Negri e Cocco falaram com a equipe da Revista do Brasil momentos antes de palestra da dupla no último Congresso da CUT, no Anhembi, no dia 6 de junho. Leia os principais trechos.Qual é a importância das transformações políticas que ocorrem no Brasil e na América Latina e como movimentos sociais, sindicatos e governos podem atuar de maneira interdependente nesse processo? Antonio Negri – O que é fundamental, de uma perspectiva democrática, é que organizações sociais mantenham sob pressão o governo. As decisões de governo serão frutos de compromissos lançados em respeito às relações de força da sociedade. Se a precarização do trabalho inibe a reação coletiva dos trabalhadores, como ter organizações fortes e atuantes nesse ambiente? Negri – Há uma grande dificuldade. O sindicato tradicional nasce quando há pleno emprego e, numa situação onde a flexibilização, a mobilidade, a precarização tornam-se problemas centrais, não há políticas de desenvolvimento para contrastar com essa situação. Mas não podemos pensar que isso é algo decisivo. É algo que deve começar a mudar porque a própria idéia de trabalho está mudando. O trabalho não é mais simplesmente autoral, feito em fábrica, mas sim uma atividade social organizada. Por exemplo, na França, depois dos conflitos (de março) – ainda que as ideologias que os provocaram sejam muito antigas – o problema dos direitos do cidadão se tornaram fundamentais.Giuseppe Cocco – O verdadeiro desafio é pensar o trabalho para além da questão emprego/desemprego. Por exemplo, o que estava acontecendo no ABC paulista nos anos 90, e que continua hoje, é uma transformação na base produtiva. Em dez anos, o emprego industrial passou de 50% para algo como 24% na região. Só que grande parte desse setor de serviços, ainda é vinculada à produção. Há uma nova contradição: de um lado está o medo do desemprego, da precariedade – que fragmenta as comunidades, os coletivos operários e se transforma quase numa nova forma de escravidão; de outro, criam-se novas singularidades produtivas que não passam necessariamente pela subordinação salarial. Assim, a organização das pessoas por melhor qualidade de vida rompe as questões reivindicatórias, trabalhistas? Cocco – O Celso Daniel (ex-prefeito de Santo André) foi genial na criação da Agência de Desenvolvimento do Grande ABC – no meio da pior crise de emprego dos anos 90. Ele associou a hegemonia social e política constituinte dos sindicatos a um projeto territorial de desenvolvimento, algo mais avançado do que o orçamento participativo. O orçamento participativo pega o fundo público, produzido pela relação de capital, e tenta discutir como gastar parte desse fundo. Na proposta do Celso Daniel, a partir da mobilização regional com base na hegemonia sindical, você vai discutir como produzir o fundo público, não apenas como gastá-lo. Esse avanço na organização social não está sendo acompanhado, contraditoriamente, de retrocessos no mundo do trabalho? Por exemplo, um trabalhador que conquistou leis e acordos trabalhistas é impelido a se transformar em prestador de serviço em condições inferiores.Cocco – Esse tipo de empreendedorismo não pode ser visto como uma alternativa aceitável, pois corresponde à ideologia neoliberal, segundo a qual cada um é o empreendedor dele mesmo. Essa ideologia propõe que o Estado de bem-estar social não funcione, propõe o mercado com outro padrão de distribuição de direitos, por meio da competição dos indivíduos empreendedores. Para isso funcionar, todo mundo tem de ser produtivo sem estar dentro da relação salarial, precisa ser precarizado. Não existe conflito de trabalho que não leve a crise? Negri – A Volkswagen jogava aqui o que tinha de mais obsoleto na Europa, porque as relações de força eram melhores para ela. O que a obriga a mudar, e o que obrigou o Brasil a mudar – abrir o mercado e fazer uma política neoliberal –, foram as lutas operárias. O ABC, por exemplo, paraíso para as multinacionais, tornou-se problemático – do ponto de vista das empresas. Elas reencontraram lá lutas operárias como as que já haviam experimentado em seus países de origem. Essa dinâmica forte entre lutas e desenvolvimento – nos Estados Unidos, antes da Segunda Guerra, e na Europa, depois – não tira o fato de que a crise desse sistema vem das lutas operárias. A autonomia operária destruiu o sistema disciplinar que sustentava esse mecanismo nos países centrais. O pessoal lutava contra a fábrica. Desejar que o trabalho seja um meio para se chegar à qualidade de vida, ao bem-estar, e não um fim em si mesmo, é pecado? É lutar contra a fábrica? Cocco – Quem luta contra o trabalho assalariado? São os sindicatos dos operários. Por que os sindicalistas nunca voltam para a fábrica? Porque o trabalho assalariado é uma prisão, é uma forma de subordinação. Lembra o filme A Classe Operária Vai ao Paraíso (Itália, 1971, de Elio Petri), em que o personagem principal, Lulu, perde um dedo? (risos) É um clássico! Mostra que os operários lutavam para diminuir o trabalho e contra a disciplina. Depois da luta, eles continuavam ali dentro da fábrica, mas a disciplina não funcionava mais. Então, a crise da relação salarial não é desenhada pelo capital, é desenhada pelas lutas. O capital vai se reorganizando e tentando impor um sistema adequado ao fato de que agora ele não controla mais as fábricas. Então, ele transforma as fábricas, e passa a exigir a mobilização de toda a sociedade. Nisso, você tem retrocessos, como o relativo enfraquecimento da dinâmica sindical, mas você tem também uma nova potencialidade ilimitada. Então, o retrocesso – a deterioração do trabalho assalariado – seria decorrente do avanço das lutas operárias? Cocco – A questão não é raciocinar em termos de retrocessos ou avanços, mas qual é o tipo de conflito. Não adianta a gente pensar que a Volkswagen vai empregar de novo milhões de pessoas e que vai, junto com a Fiat, criar o pleno emprego e o Estado de bem-estar. Isso não funciona mais nem nos países em que o pleno emprego existia. No Brasil nunca existiu. É um impasse: houve uma evolução, conquista de direitos e agora as empresas querem usar isso para punir os trabalhadores. Negri – É uma situação terrível. Faz um mês eu estava no Canadá, próximo ao lago Ontário, onde tem uma siderúrgica que já teve 130 mil operários e hoje, 5 mil. As cidades estavam destruídas, mortas, não se via mais ninguém. A resposta não pode ser outra: educação e transformação da cabeça das pessoas. Deve-se estar atento para isso. Em Paris, por exemplo, o partido fascista francês estimula o racismo institucional em grande parte da classe operária. Do ponto de vista sindical, a organização por ramo de atividade pode ser uma saída para que os trabalhadores consigam se organizar mesmo com terceirizações e transferências de atividades para prestadoras de serviços. Negri – Eu acredito que isso já está profundamente ultrapassado. Cocco – Eu estava na Itália, em 1975, quando houve a primeira grande ofensiva da reestruturação. Como os sindicatos na Itália estavam organizados em bases territoriais, a gente – estudantes, associações de bairro, moradores etc. – ia para o sindicato organizar a luta em torno dos serviços que atendiam a região. Recusávamos o aumento das tarifas dos serviços de transporte, água, luz, telefone, e não pagávamos as faturas e o sindicato pagava só o preço que você achava correto, depositava numa conta. Isso, dentro do sindicato. E o que dizer das redes de trabalhadores que tentam se articular internacionalmente? Negri – As articulações internacionais seguem a iniciativa capitalista da globalização, participam, tentam acompanhar esse tipo de desenvolvimento. São, portanto, necessárias, mas não são decisivas. Na Europa, os operários do setor de transportes já conseguem ter uma articulação continental, mas ela está associada a questões locais e a reivindicações associadas a regimes públicos, formas de cooperação. Quando se trata das grandes multinacionais de nível global, isso é quase impossível. Cocco – Durante o governo Lula, a CUT realizou duas marchas muito importantes em favor do salário mínimo. Eu acho que essa é uma experiência interessante. Foi uma mobilização cidadã. Eu acho que isso foi uma experiência interessante. O fato de haver essa outra perspectiva já é um avanço importante. Parar de pensar o Bolsa Família como uma coisa legal, mas não a ideal. Tem que pensar uma saída para essas famílias, que no Brasil nunca entraram em lugar nenhum. Tem que ter Bolsa Família para mais gente, muito maior e de maneira estável. Distribuir renda é a questão fundamental. Negri – Um outro elemento da onda latino-americana seria juntar a dinâmica dos governos à dinâmica dos imigrantes hispânicos e brasileiros nos Estados Unidos. É uma onda única, no coração do imperialismo. O Chávez, em parte, é isso. De certa maneira, não deixa de ser uma articulação internacional? Cocco – Ele faz isso na medida em que tem política de distribuição do petróleo dentro dos Estados Unidos para regiões mais pobres, ele se articula diretamente com essas comunidades. Então é uma política pós-nacional. Negri – Aliás, a participação dos movimentos populares na Venezuela é fundamental. Cocco – Eles organizam ao mesmo tempo a alfabetização, a milícia territorial, a organização popular, a saúde. Há uma reconstrução do Estado e de uma história democrática. De um modo geral, o Chávez entendeu que, para sobrevivência da experiência bolivariana, a Venezuela é membro fundamental do processo de integração continental. Quanto mais integração, quanto mais interdependência na América Latina, menor será o risco de um curto-circuito de uma agressão militar. É uma perspectiva pós-nacional. Falando em pós-nacional, o mundo está preparado para a fase de crescimento em que se encontra a China, por exemplo, do ponto de vista ambiental e econômico? Negri – Os chineses estão crescendo a um ritmo tão intenso que, se aumentarem, os que estão dentro do esquema de desenvolvimento terão que comer os que permanecem fora. Seria bom se os chineses aumentassem um pouco o crescimento e distribuíssem o resultado. Primeiro, internamente. Eles terão que começar a discutir isso, mas não sei se eles conseguirão manter esse ritmo de desenvolvimento. Os governos de esquerda da América Latina têm conseguido se comunicar com a sociedade e furar a mídia convencional? Negri – A América Latina está vivendo o momento de uma ruptura que ainda está por se anunciar. Uma ruptura em relação às dimensões do comando mundial. É um momento excepcional. Qualquer forma de governo popular tem necessidade absoluta da comunicação como elemento fundamental. Não consegui compreender porque em todo esse longo período de governo Lula não foi realizada uma alternativa ao centro da comunicação. Cocco – A comunicação tende estar entre os projetos que fazem parte da dinâmica de integração – tanto quanto as questões de infra-estrutura, energéticas e das relações internacionais. O combate à fome foi considerado prioridade no início do atual governo. Hoje, em algumas regiões, em 95% das famílias que recebem o Bolsa Família as crianças estão fazendo três refeições por dia. E parte da mídia vê esse tema apenas como “trunfo eleitoral”. Os meios de comunicação estão sendo superados pela realidade? Negri – Eu diria que a comunicação política venceu. No processo democrático, de forma positiva, o resultado das ações de governo tem sido mais eficiente do que a desinformação ou a pretensão de configurar a opinião pública. A aprovação do governo e a possibilidade de reeleição de Lula viriam, então, do segmento menos suscetível a essa desinformação, ou seja, a população mais excluída? Negri – Na eleição anterior, o Lula não foi eleito pelos excluídos, mas majoritariamente pelas classes médias. Agora o voto do primeiro turno vai ser dos pobres, os que estão menos excluídos do que estavam antes e que são mais indiferentes a esse debate entre juros e inflação e mais atentos à questão de ter acesso à universidade, ao ProUni, ao Pronaf, ao Bolsa Família e a um salário mínimo mais valorizado.


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