quinta-feira, julho 20, 2006

Entrevista

Maria da Conceição Tavares

Sem o garote do FMI

Mauricio Dias para a Carta Capital

Impulsiva, vibrante, ágil no raciocínio. Maria da Conceição Tavares fala aos jorros sem perder a coerência, o brilho e a coragem como se verá nesta entrevista a CartaCapital, na qual ela defende as ações de Lula com emoção, mas, também, com uma qualidade de argumentação incomum em muitos integrantes do governo. Um dos pontos que afirma é o de que o governo Lula não repete a política econômica de Fernando Henrique Cardoso. Ela dá uma importância fundamental a uma diferença: o pagamento de US$ 15 bilhões ao Fundo Monetário Internacional. Isso teria livrado o País, pelos próximos dez anos, do garrote internacional. Ela mostra outros pontos de divergência. Lembra, por exemplo, que Lula barrou o andamento do neoliberalismo, estancou as privatizações, reestrutura o Estado brasileiro e não vocaliza a política de Washington. Satisfeita com muitas das ações do governo em defesa da população "de baixo", no entanto, reclama: "Não é o governo dos nossos sonhos". Aos 75 anos ela, não desanima e nem vacila quando pensa na eleição de 2006: "Espero que não ganhe a visão dos tucanos neoliberais. Tudo, com eles, regredirá. Esse capitalismo que pregam é violentamente regressivo tanto nas relações com o trabalho, quanto na relação do Estado com o capital e com a cidadania. Eles só querem apagar direitos. Se possível, todos aqueles conquistados no século XX". Nem a ditadura militar tentou fazer isso. Mas ela não duvida que os economistas tucanos façam, pois já pregam as reformas de segunda geração. Por isso, ela se põe a favor da reeleição de Lula. Quer que ele mesmo "impeça o desmonte do que já conseguiu conquistar". Abaixo os trechos principais da entrevista. CartaCapital: O governo fechará o ano com a antecipação do pagamento de US$ 15 bilhões ao FMI. Por que os brasileiros, além dos economistas, devem comemorar esse resultado? Maria da Conceição Tavares: Ao pagarmos o Fundo Monetário chegaremos a uma relação "dívida externa e PIB" que, finalmente, apagou o que o governo do Fernando Henrique fez. Isso é espantoso: é a melhor relação dívida externa versus Produto Interno Bruto dos últimos 40 ou 50 anos. Conseguimos sair do atoleiro, da fragilidade da crise cambial. Ou seja, crise cambial mata. A crise fiscal, no entanto, esfola. CC: Quem é esfolado no momento? MCT: No momento a crise fiscal está esfolando o povo, a classe média e os construtores. CC: E os juros? Por que está todo mundo indignado com a taxa? MCT: Tem muita gente ganhando com a taxa alta. As grandes empresas protegem-se com aplicações financeiras. CC: Então, por que a reclamação? MCT: Porque não há investimento público. Isso quer dizer que vários dos grupos tradicionais de poder não levam nada. A classe média não leva nada. Quem tem levado é o pessoal "de baixo". Mesmo em 2003, o ano de crescimento zero, tivemos um aumento do mínimo acima do PIB per capita. Em 2004, aconteceu o mesmo e esse ano também. Seguramente, em 2006 será assim. É a primeira vez que, de uma maneira contínua, um governo sobe o salário mínimo com regras. Regras a favor do mínimo. É a primeira vez, também, que se faz um esforço de formalização do mercado de trabalho, depois de mais uma década de informalização, terceirização etc. Há três boas notícias trazidas pela PNAD: a reversão do salário dos "de baixo"; a reversão do desemprego e da renda também dos "de baixo". CC: À custa dos ricos, acusam... MCT: Os ricos somos nós, a classe média. À custa da classe média que, aliás, mantinha uma frente grande dos salários menores. Em resumo, é a distribuição melhor dos salários, que no Brasil ainda é pérfida. Então, agora, pagou a turma de cima. E reclamam que o emprego gerado foi para os "de baixo" e não para os filhos da classe média alta. Alguém esperava que o governo Lula fosse gerar prioritariamente emprego para o pessoal da classe média alta dos Jardins, em São Paulo? Estão brincando, não? Os "de baixo" nunca levaram colher de chá. Os empregos de agora foram gerados para assalariados que ganham em torno de um salário mínimo ou que têm o salário mínimo como referência. Isso é fundamental para melhorar a pirâmide dos salários. Isso foi prometido e feito sem nenhum entendimento das autoridades econômicas. CC: Como assim? MCT: Eles atiram no que vêem e acertam o que não vêem. Porque, evidentemente, aqueles meninos do Banco Central continuam com aquele modelito ridículo que todo mundo já criticou. Por que é que não se perguntou, na prática, para o que é que serviu essa taxa de câmbio valorizado. CC: Há quem acredite que se trata de populismo cambial. MCT: Mentira. CC: Qual a diferença do que foi feito no governo FHC? MCT: Aquele era populismo cambial porque com aquele câmbio ele conseguia dar uma cesta mais barata. Arrebentou, por isso, com a agricultura de exportação, arrebentou com a indústria. Enfim, arrebentou com a estrutura produtiva. E nos pespegou uma dívida interna e externa numa rapidez colossal. Estourou os endividamentos interno e externo. E tudo o que ele trazia de capital para fechar o balanço de pagamentos era para importar bens de consumo. Foi aquele delírio de consumo. Aquilo era populismo. CC: Um populismo que a classe média adorava... MCT: Exatamente. Para a classe média. Até que teve de reverter e fazer a desvalorização. E nos deixou quebrados. Sabe qual era a relação "dívida externa e exportações"? Era três vezes maior. Hoje é só 1,1 vez maior. Sabe qual era quando nós quebramos em 1999? Era de 3,97%. Isso é praticamente 4%. Com essa relação, os países quebram. Só se tem reserva, de fato, quando se diminui o endividamento. Reserva com endividamento crescente, como no governo FHC, não quer dizer nada. Agora, sim. Olha como os governos não se parecem, ao contrário do que alguns dizem por aí. Há, hoje, reservas internacionais líquidas de US$ 52 bilhões. Há uma queda na dívida externa, pública e privada, enorme. CC: No capítulo de investimento público a coisa parece muito igual. MCT: Agora também é quase nada. O arrocho fiscal de agora é mais violento do que antes. Isso ocorre porque a taxa de juros está lá em cima. Não ao ponto que o governo FHC tinha elevado. Dever ao Fundo, como se devia, é uma desgraça. Agora pagamos e há reservas de US$ 52 bilhões e uma dívida externa reduzida em mais de 40%. Há uma política conseqüente. Resolvida essa dívida de curto prazo, a estrutura da dívida externa está perfeitamente "o.k." para os próximos dez anos. CC: Por que não "batem lata" para isso? Esqueceram a dívida externa? MCT: Porque não têm sensibilidade. Por que é que em nenhuma ata do Copom isso está relacionado? Fala-se sempre da inflação. São uns beócios. Agora, se não baixar os juros eles serão umas toupeiras. Aí o presidente Lula vai ter de dar uma chicotada. Eles eram dependentes do mercado e agora o mercado sinalizou. CC: O mote deles é a inflação... MCT: Inflação, taxa de juros e câmbio. Não conseguem ver além disso. Mas o que aconteceu com o endividamento externo? Eu continuo não crendo que esse modelo não vai fazer bem ao presidente principalmente no ano da eleição. Não creio. Abriu-se agora um novo período. CC: A partir do pagamento ao FMI? MCT: Sim. Isso significa que a restrição externa que vem lá de trás, desde o começo dos anos 1980, está equacionada. Agora, sim, dá para desmontar uma das patas da armadilha macroeconômica. Dá para baixar, a sério, a taxa de juros. Agora, sim, temos condições de retomar o crescimento. Mas, um pequeno detalhe, como o crescimento até agora era um miniciclo de consumo e, no caso do governo Lula, miniciclo de consumo e de exportações no ano passado que soltaram o crédito para o povão... CC: Mas dizem que o povão estava endividado. MCT: O povão já estava endividado. Só que na Casas Bahia e, portanto, pagava um juro indescritível. Hoje ele já pode comprar a televisão, a geladeira, em módicas prestações com o crédito de outra maneira. O Mário Henrique Simonsen me contava que cansou de explicar para a mãe dele duas coisas que ela jamais entendeu: a tal da correção monetária e a porcaria da taxa de juros. Economista não consegue explicar certas coisas nem para a própria mãe. Para o povão, quando abaixa a prestação, aumenta o número delas e ainda pode descontar em folha está ótimo. Nesse sentido, o governo fez outras coisas, como a Previdência generalizada para os velhinhos. Altamente distributivo. Para valer. O maior programa distributivo do País é a Previdência Social dos aposentados que dá uma renda enorme. Principalmente no Nordeste... CC: No Nordeste? MCT: Seguramente. Onde é que deu renda maior nesses programas sociais todos? No Nordeste. Onde a Bolsa Família é mais importante? No Nordeste. Onde é que Lula está pensando em retomar os projetos estruturantes? Na região mais atrasada. No Nordeste. É o caso da ferrovia e da interligação das bacias que o pessoal fica dizendo que é a transposição do São Francisco? Não é transposição, é ligação das bacias para que não haja sobra de água de um lado e seca do outro. Enfim, o de sempre. Espero que ninguém interrompa esses projetos. Não se pode interromper os projetos estruturantes e, também, os projetos sul-americanos de integração que Lula fez graças às boas relações que ele tem tanto com o Kirchner quanto com o venezuelano (Chávez). CC: A senhora também cobrava, antes, a retomada do crescimento. MCT: Cobrava antes porque era miniciclo. Era vôo de galinha. Eu sempre disse que com aquela política era vôo de galinha. Neste último ano, como sobrou liquidez no mundo e nós reestruturamos a dívida externa, a coisa mudou. Mas não se esqueça que eu estou em silêncio há muito. Só falei uma coisinha aqui e outra ali. CC: A hora de retomar o crescimento chega no ano eleitoral. Coincidência? MCT: Não. Azar. Ninguém vai perceber porque isso não é eleitoral. Esse é o problema. Isto é uma política de reestruturação. Está se reestruturando o setor público. Pararam as privatizações. Está se tentando reestruturar o setor elétrico. Tudo isso, com exceção dos programas diretamente populares, é invisível. Você acha que o povão dá conta do que eu estou falando? CC: Qual a importância que a senhora vê no fato de, após tantos anos, a moeda brasileira, o real, estar cotada na Bloomberg? Por que isso? MCT: Havia alguma cotação no tempo do "real forte" do governo FHC? Não. Porque não era forte coisa nenhuma. Tudo o que eu disse sobre aquele plano que, aliás, me custou bastante pancada dentro do partido... Eu e o Mercadante levamos muita pancada porque, depois, deu certo... deu certo a curto prazo. A questão é avaliar a herança pesada que deixou. Estamos metidos numa herança, essa é a verdadeira "herança maldita". Por isso, vem um e diz que está continuando a política do Fernando Henrique. Há até ministros nossos, de direita, na área econômica, que não entendem nada do que estão falando, assumiram esse papo. Continuamos nada. CC: Explique melhor, por favor. MCT: As razões pelas quais foi necessária essa valorização foi para comprar reservas baratas, pagar a dívida externa privada, reestruturar a dívida pública e contratá-la em melhor situação. Em 2004 crescemos, exportamos como gigantes. O salário cresce, o emprego cresce e não batia nada com o diagnóstico. Evidente que o PIB caiu por ser um miniciclo. CC: Mas o PIB caiu. Pode crescer mais em 2006? MCT: O PIB caiu por ser um miniciclo. Não sei o quanto o PIB pode crescer. Vamos ver. Pode chegar a 4%. Não é o que a gente quer, mas é que ainda não estão postas as condições internas de retomada do crescimento. Que é, basicamente, o investimento público. Para isso é preciso baixar os juros para que eles não comam o investimento. Não há mais argumento para manter o câmbio tão valorizado. Diminuímos a dívida interna, dolarizada, radicalmente. E para manter estável a relação da dívida interna com o PIB tivemos de mandar o pau no superávit. Foi preciso. Mas tanto eles não entendem que propuseram aquela estupidez do superávit crescente para 5% nos próximos dez anos. CC: Isso aconteceu, então, apesar deles. MCT: Não é apesar de... Há muitos operadores ainda bons que são do ramo. Apesar dos ministros, das declarações que dão, dos "Delfins Nettos". Fico pasma. Por que se está emitindo títulos em real? É porque todo mundo supõe que não vai desvalorizar. Ou vai ser desvalorizado de forma insignificante. Dado, no entanto, que emitimos a juros de 12,5% em dólar. Isso significa que a taxa não deverá ficar muito abaixo de 14%. Esse é o problema. Mas ela está em 18%. Portanto, há folga. E essa folga para as contas públicas é essencial. Veja a contradição: como é que se critica a política monetária e o juro e, depois, se propõe os 5% permanentes do PIB? Ora, isso é o que empurra a taxa de juros para o patamar que está. Essa armadilha tem de ser discutida com toda a seriedade. Incluindo, agora, essa liberdade adquirida quanto à restrição externa e o que Lula fez para melhorar a situação dos mais pobres e dos assalariados em torno do mínimo. É o grosso da população. CC: A classe média alta está pagando a conta. MCT: Eles pagaram o pato agora. Achatou-se os de cima e puxou-se os de baixo. Foi achatado o leque de salários que, no caso brasileiro, é um escândalo. CC: Por que chegou a esse ponto? MCT: Porque deixaram o salário mínimo cair a níveis inacreditáveis. O doutor Getúlio deve estar se removendo na tumba. CC: Agora, no entanto, ele deve estar um pouco mais feliz. MCT: Pelo menos isto. É a primeira vez que os sindicatos dos trabalhadores conseguem negociações coletivas acima da inflação. Há anos que isso não acontecia. Estão melhorando as condições do trabalho. Isso é inegável. Agora vem a ameaça dos homens das Casas das Garças com as reformas de segunda geração. Que é o Banco Central independente, flexibilização da legislação trabalhista, a última flexibilização possível para comércio e movimento de capitais. E, finalmente, retomar as privatizações. CC: Qual o alvo nas privatizações? MCT: No primeiro acordo com o Fundo que o Fernando Henrique fez, eu estava na Câmara, eles queriam privatizar o Banco do Brasil, o BNDES e a Caixa Econômica. Acha que eles deixaram de querer? Coisa nenhuma. Eles consideram que esses bancos públicos competem com eles. Quando, na verdade, os bancos públicos são os que permitem alavancar recursos para financiar o crescimento. O primeiro requerimento do crescimento sustentável que era afastar a restrição externa. CC: É possível, de fato, retomar o crescimento? MCT: Agora, sim. Essa era a primeira barreira. Mas o governo tem, também, de continuar puxando a renda dos "de baixo" porque, como ainda está, não diminuiremos a heterogeneidade social. Nosso quadro exige primeiro emprego e renda para os "de baixo". Evidentemente, enquanto isso se faz políticas sociais compensatórias. A terceira barreira é a falta de investimento público. Isso só se supera baixando os juros e livrando os bancos públicos das restrições impostas pelo Banco Central. CC: A senhora é contra a exposição da divergência entre os ministros? MCT: Mas como não haver divergência pública se alguns estão se metendo onde não são chamados? E todos eles vêm argumentar a favor dessa interferência, todos eles, começando pelos economistas da PUC que se reúnem na Casa das Garças. Esse Pérsio Arida, essa gente toda, que no Cruzado tinham boas intenções, depois que viraram banqueiro estão, claro, com péssimas intenções. CC: A senhora já pôs as mãos no fogo por alguns deles na época do Cruzado. MCT: E queimei. Não ponho mais as mãos no fogo por ninguém, como pus para esses meninos. O Pérsio Arida, o André Lara Resende e o Mendonça de Barros. No caso do Malan (Pedro) eu queimei as mãos e o coração. Eu gostava muito dele. Todos viraram banqueiros. Isso faz, evidentemente, que eles digam o contrário da gente. Estão defendendo os interesses deles ao contrário da gente, é óbvio. CC: Mudando de assunto. As exportações vão continuar subindo? MCT: Vamos continuar subindo, mas, como disse o próprio ministro Rodrigues, muito mais devagar. Crescemos mais que a economia mundial. Outra coisa que ninguém se dá conta é a idiotice do primeiro quadriênio do Fernando Henrique. Ele abriu a economia do ponto de vista micro, estourou as empresas, e do ponto de vista macro fechou. Não exportávamos nada por causa da taxa de câmbio populista. Em resumo: o que fizemos nos últimos dois anos foi recuperar o País da situação que aqueles infelizes montaram de 1994 em diante. Pelo menos do ponto de vista do comércio exterior, inserção internacional e dívida externa nós nos recuperamos da monstruosa trapalhada que foi feita.