sexta-feira, julho 21, 2006

Para os conservadores, o problema é o povo

Rastreando o pensamento conservador no Brasil [leituras de fundo]

Há tempos já, ando preocupada com o 'vazio' de conteúdos históricos no que temos escrito a favor de reeleger o presidente Lula e contra a elite canalha que está aí, a toda.

Eles vêm com pesquisa... e nós respondemos com números. São bons números, são números que mostram que a desigualdade está diminuindo, sim, mas são SÓ números.

Eles vêm com propaganda de DES-DEMOCRATIZAÇÃO ... e nós respondemos com 'ética na política'... quando o que importa, como ensinou a Marilena Chauí é aprendermos sobre a ética DA política.

"Ética na política" e merda, "pra mim é a mesma coisa" -- como diria, sobre ética na política -- o negão naquele filme "O dia que não-me-lembro-o-nome-do-negão encarou a guarda."

Pode haver ética burguesa NA política. Pode haver ética proletária NA política. Pode haver até ética-de-PCC e ética-de-Bornhausen (parecidíssimas!) NA política.

Dizer "ética na política", assim, no geralzão é NÃO DIZER COISA ALGUMA. O que interessa aprender, conhecer e praticar é a ética DA política.

Quem não entender direito esse negócio de "ética NA política" versus "ética DA política", tem de ler mais, mais e mais o que a Marilena Chauí está trabalhando pra ensinar.

PENSANDO em tudo isso -- e pensando sobretudo o quanto nos falta de conteúdos HISTÓRICOS, nos nossos discursos-de-resposta -- comecei a procurar coisas e achei coisas ótimas, que dão uma boa articulada em muita coisa do que temos intuído, mas que não sabemos ainda 'recompor' em etapas contínuas, passo a passo, de 1964 até hoje.

Dentre as coisas que encontrei, pra começar a 'costurar' as etapas e personagens que levam, DIRETAMENTE, do golpe de 64 aos editoriais do Clóvis Rossi e do tal-de-Valdo (e a praticamente TUDO que os jornalões têm publicado), achei o texto que aí vai.

Para quem não veja aqui, o texto, do José Carlos Ruy, historiador, comunista e meu amigo, está em http://www.vermelho.org.br/museu/principios/anteriores.asp?edicao=53&cod_not=430.
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Para os conservadores, o problema é o povo[1]

Visões da história
(Segunda parte)

José Carlos Ruy

Com Oliveira Viana, a interpretação elitista da história do Brasil degenera em mera apologia, que justificou as ditaduras do Estado Novo e de 1964.

Antes de entrar propriamente na análise das concepções dos escritores que surgiram após 1930, cujas idéias hoje são hegemônicas entre os historiadores, é conveniente olhar em detalhe o rumo tomado pela interpretação conservadora, em reação às mudanças preconizadas por homens como Capistrano de Abreu, Euclides da Cunha, Silvio Romero, e os demais que, a seu tempo, enfrentaram a tarefa de reconciliar a arte de escrever a história do Brasil com o povo e o país.

Além de reagir aos avanços teóricos que estes escritores representavam, essa interpretação refletia também a reação ideológica dos setores conservadores às mudanças sociais que ocorriam no país, e que ameaçavam o domínio exclusivo da oligarquia agro-mercantil.

O ponto de vista conservador não fora completamente derrotado, e manifestou-se principalmente na obra de Francisco José de Oliveira Viana, cujas concepções atravessaram o século, inspirando as ditaduras do Estado Novo (1937/1945) e dos generais presidentes (após 1964).

Influíram nas idéias do principal ideólogo do golpe militar de 1964 e dos governos que o seguiram, Golbery do Couto e Silva, e continuam vivas na mente de grande parte da elite brasileira. A interpretação conservadora seguiu, para sobreviver, trajetória inversa ao rumo apontado por aquela geração renovadora, e degenerou em apologia aberta da oligarquia latifundiária.

O ponto de vista elitista, herdado de Varnhagen, modificou-se, adaptou-se aos novos tempos da República, mantendo seu traço essencial: o culto da razão de Estado e da ação das classes dominantes como principais agentes das transformações sociais e políticas. Embalado pela sociologia da época, pelas idéias racistas que eram apresentadas como ciência, Oliveira Viana produziu uma extensa obra que procura fundamentar, em bases políticas, econômicas e sociais, a história da sociedade brasileira, e apresentar o domínio da oligarquia latifundiária como “natural”.

Dando ênfase ao patriarcalismo, ressaltou e defendeu a ação da classe dominante, da cúpula da burocracia estatal e das elites urbanas, na formação social brasileira. E, embora fosse ele próprio mulato, considerava defeituosa e indequada a formação racial de nosso povo, devido à enorme presença nela do negro, do índio e dos mestiços.

Oliveira Viana defendeu um Brasil fictício, onde a elite branca, “ariana”, era tudo, e o povo, descendente do cruzamento da minoria européia com índios e africanos, era o problema. Mas, de maneira perversa, Oliveira Viana era otimista e – ao contrário da imensa maioria dos pensadores de seu tempo – pensava que os problemas do Brasil seriam resolvidos se duas condições fossem satisfeitas: primeira, que a elite, tendo sido educada para isso, cumpra seu papel civilizatório; segundo, que no processo de mestiçagem, os mestiços “superiores” assimilassem os valores culturais do segmento branco, e os negros, índios e mestiços “inferiores” fossem, naturalmente, eliminados.

Pensando que a ciência social deve estar ligada à atividade política, Oliveira Viana escreveu em Evolução do Povo Brasileiro, publicado em 1922, que somente o estudo do “nosso povo, em todos os seus aspectos”, pode fornecer os dados concretos “para um programa nacional de reformas políticas e sociais, sobre cujo êxito poderemos contar com segurança” (Viana, 1933).

Ele promete uma análise científica, mas o resultado é a apologia das elites e dos direitos do segmento da população de pele clara ao domínio sobre os demais. Os valores e dados concretos de nosso povo, a que se refere, revelam-se, em seu estudo, como os preconceitos de classe e de raça da elite brasileira, preconceitos que ele apresenta como os traços específicos que distinguem os brasileiros dos demais povos.

Após 1930, Oliveira Viana teve a chance de colocar em prática suas idéias; foi consultor do Ministério do Trabalho (1932 a 1940), tendo enorme influência na legislação trabalhista, previdenciária e sindical elaborada por Getúlio Vargas.

Considerado por alguns como “liberal autoritário” e por outros como inspirador de um autoritarismo instrumental, Oliveira Viana está, em nosso tempo, em grande parte desacreditado pelos cientistas sociais.

Mas, apesar do anacronismo de sua obra, muitas de suas idéias continuam vivas. A principal delas diz que, devido à natureza intrinsecamente patriarcal e oligárquica de nossa sociedade, a democracia liberal não pode desenvolver-se aqui. É necessária então a intervenção autoritária do Estado para modernizar as oligarquias e criar as condições que levem ao aparecimento, na sociedade, do conjunto de interesses diversificados que formam a base da democracia.

Ao Estado e à elite, tornada “esclarecida”, cabem então a tarefa de “educar” as massas, “despreparadas”, para a democracia.

Ele foi, talvez, o autor de maior prestígio nas primeiras décadas do século XX, sendo sua obra a referência principal para os autores que, a partir dos anos 30, produziram uma revisão radical na maneira de se encarar o passado brasileiro. Entretanto, trata-se de uma obra erigida sobre bases muito frágeis, muitas vezes fantasiosas, claramente anacrônica.

Mas, como ensina Hobsbawn, “o abuso ideológico mais comum da história baseia-se antes em anacronismos que mentiras”, sobre o qual são construídos os mitos e invenções essenciais à política de identidade que permite a distinção, dentro da sociedade, de grupos que se pretendem superiores ou buscam, na história, legitimar seus interesses, privilégios e domínios de classe (Hobsbawn, 1998).

O elitismo de Oliveira Viana é um exemplo desse abuso ideológico. Para elaborar uma visão de mundo adequada à elite latifundiária e mercantil, ele deformou fatos e criou lendas. Diante da ciência social de sua época, diz Dante Moreira Leite, ele foi um “retardatário”, e sua obra “satisfazia os pruridos de nobreza rural de parte da população brasileira” (Leite, 1983).

Ruralista, ele parte da tese de que o “traço fundamental da nossa psicologia nacional” é rural. O brasileiro é, e “sempre se afirma, um homem do campo, à maneira antiga. O instinto urbano não está na sua índole, nem as maneiras e os hábitos urbanos” (Viana, 1973).

Essa falsificação traduziu-se na ficção de que a elite colonial criou, em Pernambuco e São Paulo, pelo menos, um “recanto de corte européia transplantada para o meio da selvageria americana”, marcada por um “fausto espantoso”, “maravilhoso luxo”, “bom tom” e “elegância”.

Caracterizaram-se ainda, aqueles colonizadores, por “bem falar” e “bem escrever” (Viana, 1973).

A mentira desta tese não demorou a ser desmascarada. Já em 1929 foi publicado o livro clássico onde Alcântara Machado, examinando inventários e testemunhos paulistas dos séculos XVII e XVIII, demosntrou a pobreza material e cultural em que se vivia na São Paulo de então (Machado, 1972).

Quanto à civilidade, ao bem falar e bem escrever, há o depoimento do bispo de Pernambuco, D. Francisco de Lima, às vésperas do século XVIII, sobre Domingos Jorge Velho, o capitão de mato paulista que havia destruído o Quilombo de Palmares. É “um dos maiores selvagens com que tenho topado”, “que nem falar sabe”, diz o prelado, declarando que precisou de “língua” (isto é, intérprete) para falar com aquele cabo de guerra (Ennes, 1938).

Embora o bispo possa ter exagerado (mesmo porque existem documentos de próprio cunho de Domingos Jorge Velho, escritos em português e transcritos por Ernesto Ennes), esse depoimento revela o conceito que se tinha então dos paulistas, cujos hábitos, comportamento e a própria língua que falavam (não se pode esclarecer que o idioma dominante em São Paulo até meados do século XVIII era o nheengatu, derivado do tupi) desmentem a imagem idílica criada por Oliveira Viana para descrever a elite colonial.

O principal fundamento do elitismo de Oliveira Viana era o culto à raça branca, a idéia de que o “ariano” era o tipo humano superior. Assim, ele falsificou até mesmo a descrição física de seus heróis míticos, sendo o autor da tese de que os bandeirantes seriam “arianos” puros, “dólico-louros”, descendentes em linha reta e racialmente pura da nobreza portuguesa que se fixou em São Paulo no século XVI (Viana, 1933 e 1973).

Essa história de ariano, de dólico-louro, é uma bobagem criada pelos teóricos racistas do século XIX e começo do século XX, cujas conseqüências trágicas tiveram o auge na perseguição nazista contra aqueles que eram considerados racialmente inferiores. E que, ainda em nossos dias, encontra seguidores entre os partidários da supremacia das populações de pele e cabelos claros, sobre as demais, de pele e cabelos escuros e cujo crânio, nariz e olhos tem outros formatos.

Quando diz que o bandeirante era ariano, Oliveira Viana adota, em sua tese enganosa, outra mentira, a da pureza étnica da gente paulista, ignorando uma das mais antigas evidências históricas sobre o planalto paulista onde, como em toda a colônia, ocorreu intensa mestiçagem entre europeus e a população autóctone, mestiçagem referida já nas primeiras cartas dos jesuítas, em meados do século XVI.

A defesa radical do arianismo – só compreensível em autor mulato como Oliveira Viana devido à sua posição de abastado latifundiário, exemplo do dito segundo o qual, no Brasil, o dinheiro branqueia – leva-nos ao cerne da visão de Brasil deste autor: a idéia de que o povo é o problema. Seu desprezo pelo povo foi ressaltado por Nelson Werneck Sodré ao relacionar alguns dos adjetivos que empregou para descrevê-lo: “desclassificados”, “massa de mestiços ociosos e inúteis”, “madraçaria perigosa” (Sodré, 1965), cuja predominância na população Viana encara como a razão do atraso do país.

Nosso povo, diz, é formado por duas raças bárbaras, a negra e a vermelha, dominadas por uma “aristocracia de dólicos-louros” (Viana, 1933). E, acredita, os negros, “de facies troglodíticos”, nunca poderão “assimilar completamente a cultura ariana, mesmo os seus exemplos mais elevados”. E o índio tem “capacidade ainda menor” de alcançar aquele ideal de civilização (Viana, 1933).

Conseqüente com essa bobagem, Oliveira Viana condenou a abolição dos escravos por ter desorganizado o povo e retardado a eliminação do negro na população brasileira. A disciplina das senzalas, escreveu, mantinha-os “dentro de certos costumes de moralidade e sociabilidade”, outra falsidade só compreensível nos apologistas que dizem que a escravidão teria sido, no Brasil, benigna, e seu jugo, suave. Com o fim da ordem senhorial, após o 13 de maio, os ex-escravos, “entregues em massa, à sua própria direção”, decaíram, chegando “progressivamente à situação abastardada em que os vemos hoje” (Viana, 1933).

Essa degradação dos antigos escravos, escreveu em O ocaso do Império (de 1925), “mostra que o regime de escravidão não era tão bárbaro e desumano como fizeram crer o romantismo filantrópico dos abolicionistas” (citado por Rodrigues, 1988a). Ele acha que o fim da escravidão foi um prejuízo para o país, levando-o a uma “fase de desorganização profunda e geral, sem paralelo em toda a sua história. Todas as diretrizes da nossa evolução coletiva se acham”, desde então, “completamente quebradas e desviadas” (Viana, 1973).

Outro grande malefício da abolição, em sua opinião, foi retardar o branqueamento da população, imperativo étnico que o leva à tese claramente genocida que desmente a alegação da benignidade da escravidão e completa a insânia pré-nazista com a defesa tranqüila, “científica”, do aniquilamento dos negros e seus descendentes, que ocorria sob a escravidão. “Pode-se dizer”, escreveu, “que a lei da abolição de 1888 concorre para retardar a eliminação do Homo Faber em nosso país – porque, não há dúvida que, conservado em escravidão, ele teria desaparecido mais rapidamente” (Viana, 1933).

Se o problema é o povo, quem o salva é a elite, diz. Repetindo, à sua maneira, a tese de Varnhagen de que a nação brasileira foi uma doação da Casa de Bragança, diz que o desmembramento do país, após a Independência, só foi evitado pelo “acidente feliz da presença, no Rio, de um rei” (Viana, 1973).

A “ação civilizadora” da elite sobre a “ralé”, pensa, se exerceu de maneira suave. A história de nosso país se distingue da das demais nações pelas qualidades dessa elite, cuja bonomia e patriarcalismo tendem à acomodação e não ao conflito ou repressão aguda. Assim, outra tese fundamental de Oliveira Viana diz que, em nossa história, as relações entre as classes sempre foram harmônicas. “Nunca tivemos aristocracia de raça”; “nunca tivemos aristocracia de castas ou de classes”.

Garante, ao contrário, que no Brasil, o lavrador, “nosso despreocupado foreiro”, nunca vê “o grande senhor rural” como “seu inimigo, o seu antagonista, o seu opressor”, mas como “seu protetor” (Viana, 1973). Prosseguindo nessa apologética descrição das relações de poder no Brasil, fala na “singular ausência de tiranos opressores e cruéis”, na “carência de conflito de classes ou de raças”, na “tranquilidade” e na “moderação” que “caracterizou a nossa história política” (Viana, 1973).

Resultado: não há luta de classes no Brasil. E “em nossa história, tais conflitos são raríssimos. Quando surgem, apresentam invariavelmente um caráter efêmero, ocasional ,descontínuo, local” (Viana, 1973).

Em sua fantasiosa reconstrução da formação da elite latifundiária brasileira, em Populações meridionais do Brasil, Oliveira Viana diz que houve uma involução, ao longo dos séculos, e aquela elite culta, rica, letrada, sofisticada e urbana transformou-se – ao se fixar em suas fazendas – em uma oligarquia agrária bronca que, apesar disso, era herdeira dos valores e qualidades “arianas” que a faziam naturalmente superior, e da missão civilizadora de seus antepassados.

Em conseqüência, escreveu em Instituições políticas brasileiras (de 1949), que a única forma de democracia possível no Brasil é o “governo dos melhores” (citado por Tavares, 1979), como na Atenas da antigüidade. O Império brasileiro foi um governo daquele tipo, poderíamos completar – uma democracia de senhores de terras e escravos que subordinava a imensa massa de cativos.

Esta idéia de “governo dos melhores” não foi estranha à ditadura do Estado Novo, regime do qual Oliveira Viana foi ideólogo e funcionário destacado, nem a ditadura militar de 1964, cujo principal ideólogo, Golbery do Couto e Silva era um descendente intelectual de Oliveira Viana, como veremos mais adiante.

Assim, escreveu Oliveira Viana “o problema não é acabar com as oligarquias”, mas “transformá-las, fazendo-as passarem da sua atual condição de oligarquias broncas para uma nova condição – de oligarquias esclarecidas” (citado por Tavares, 1979).

Esta é uma tese de amplo curso na história intelectual do Brasil moderno, influenciando não apenas o pensamento claramente conservador, mas também o pensamento reformista que, como o de Fernando Henrique Cardoso, militou na oposição à ditadura militar de 1964.

Num artigo escrito em 1965 (Cardoso, 1969), ele fala na “permeabilidade das classes dominantes tradicionais aos efeitos da transformação social” e que o fato de a fazenda ter sido, em sua opinião, capitalista desde o início “facilitou a transição da estrutura tradicional para a moderna”, um argumento muito próximo daquele de Oliveira Viana, que pretendia transformar as oligarquias “broncas” em “esclarecidas”.

Quase 30 anos depois de ter escrito aquele artigo, Fernando Henrique Cardoso aliou-se àquelas oligarquias tradicionais, alojadas no Partido da Frente Liberal, transformando em prática aquilo que havia formulado no campo da teoria – e os resultados são os que vemos hoje, com o país em uma crise de profundidade inaudita, com crescimento da miséria, da pobreza e da exclusão social, ao mesmo tempo que aquelas oligarquias se locupletam pilhando o patrimônio público e a submissão ao imperialismo volta a níveis coloniais.

Apesar de anacrônico e claramente superado pela ciência social mais avançada, a avaliação detalhada das idéias de Oliveira Viana justifica-se pela influência que elas tiveram e ainda têm. Ela próprio foi um dos ideólogos da ditadura do Estado Novo (1937-1945), e sua obra, mais tarde, forneceu argumentos teóricos e encontrou seguidores entre ideólogos autoritários, como Golbery do Couto e Silva, mentor do golpe militar de 1964 e da ditadura militar que nasceu dele.

Solidamente enraizado no pensamento conservador de Oliveira Viana, Golbery desenvolveu a noção de que é o Estado que deve capitanear a sociedade agregando a ela o sujeito dessa ação, as Forças Armadas, capazes de evitar que o processo de mudança transborde dos limites considerados seguros pela elite.

Em sua famosa palestra na Escola Superior de Guerra, em julho de 1980, Golbery foi pródigo em elogios a Oliveira Viana: “mestre”, “grande sociólogo e politicólogo”, em cuja “lição magistral”, registrada em Evolução do Povo Brasileiro, baseia sua tese de que a história do Brasil oscila, desde a origem, entre centralização e descentralização – as sístoles e diástoles da pretensiosa metáfora cardíaca que Golbery usou para descrever nossa história política e justificar as ditaduras (Silva, 1981).

No final dos anos 50, o projeto de Golbery para o Brasil era claro: garantir as linhas essencias do desenvolvimento do país seguidas até então, a manutenção do capitalismo e o alinhamento automático com o Ocidente – isto é, os EUA – na política externa.

Em 1967, Golbery reuniu os textos de seus cursos na Escola Superior de Guerra, entre 1952 e 1960, no livro Geopolítica do Brasil, um dos mais influentes no pensamento conservador dos anos do regime militar.

Atento às transformações de classes na sociedade brasileira, viu na crescente urbanização do país a superação das “velhas e orgulhosas aristocracias rurais”, ultrapassadas por “novas elites – a burguesia comercial, os ‘bacharéis’, os barões industriais” - , cujo domínio ainda não se consolidara nem chegara a “firmar-se solidamente no usufruto remansoso das posições conquistadas, em face das pressões novas que lhes chegam de baixo, agressivas e arregimentadas”, tudo isso apontando “no sentido de uma democratização efetiva da vida política nacional”.

Ideólogo da modernização conservadora, autoritária, Golbery preconizava assim o desenvolvimento capitalista do país e sua articulação dependente à zona de influência dos EUA. Esse desenvolvimento precisava ser protegido, e a democracia só poderia surgir depois que o povo fosse “educado” para ela e ficasse imune aos excessos da luta de classes e à influência ideológica do bloco contrário, o bloco soviético.

Adaptando as teses de seus antepassados ideológicos a um período de nossa história onde a presença da classe operária no cenário político era mais nítida e consistente, Golbery compreendia que os conflitos sociais se agravavam no país. Nesse quadro (o texto foi escrito em 1959), identificava ameaças de agudização do “problema social pela cristalização de classes bem diferenciadas e cada vez mais conscientes de sua existência como grupos em oposição ou ferrenha concorrência” (Silva, 1981).

Conservador conseqüente e fiel à sua tradição, Golbery encarava os movimentos sociais de contestação como basicamente inspirados pelos países comunistas, e não decorrentes das contradições sociais presentes no interior da sociedade brasileira. Afinal, acreditava – como seus antepassados ideológicos – que a luta de classes é estranha à alma nacional, e trazida de fora pelos que seguiam a orientação de uma potência estrangeira, no caso a URRS.

Ele registrou, nesse livro, o programa de modernização conservadora que seria seguido pelos generais do regime de 1964, aqueles que, imaginava, serem os “objetivos nacionais permanentes”: a salvaguarda de nossa independência, admitidas autolimitações “em benefício da cooperação e da paz internacionais”; a manutenção da democracia burguesa; garantia das liberdades regionais e da autonomia local; “consolidação da unidade do grupo nacional, através de crescente integração social, com fundamentação nos princípios da justiça social e da moral cristã”; a integração de todo o território nacional; o desenvolvimento equilibrado da economia, “garantindo-se o grau de autosuficiência realmente indispensável ao pleno exercício da própria soberania nacional”; a manutenção do status do Brasil na América do Sul, contra governos ou iniciativas regionais que ameacem a “paz no continente”; solidariedade e cooperação entre os povos das Américas; fortalecimento do prestígio nacional no exterior.

Também define com clareza o nacionalismo da direita militar, para o qual ser nacionalista é sobrepor “a quaisquer interesses outros, individuais ou de facções ou de grupos, a quaisquer vantagens regionalistas ou paroquiais, os verdadeiros interesses da nacionalidade”, é estar sempre pronto a sacrificar qualquer doutrina, teoria, ideologia, sentimentos, paixões, ideais e valores, que se “evidenciem nocivos” e “incompatíveis ante a lealdade suprema que se deve dedicar, sobretudo, à nação”. O nacionalismo, assim, é “um absoluto, em si mesmo um fim último”. Contrapõe essa concepção de nacionalismo ao apregoado, com “virulência” e “desfaçatez”, pelos comunistas – nacionalismo que “se reconhece e proclama a si mesmo muito mais classista” do que nacionalista, “o pseudonacionalismo que, na verdade, é, antes de tudo, muito mais partidista e sectário do que até mesmo classista” (Silva, 1981).

Depois da tomada do poder, em 1964, esse nacionalismo conservador de direita revelou seu verdadeiro caráter ao traduzir-se na ideologia do Brasil Grande dos generais, na doutrina de segurança nacional que tanto males causou à democracia em nosso país, e na doutrina da interdependência que levou ao alinhamento automático e subordinado do Brasil no bloco ocidental liderado pelos EUA.

Golbery baseava seu diagnóstico conservador na identificação de um antagonismo “entre o Ocidente Cristão e o Oriente Comunista” e sua defesa veemente e apaixonada do “Ocidente”: “O Ocidente que se pode de fato distinguir, nitidamente, de tantas outras civilizações e culturas, dotado de uma individualidade própria, original, e marcadamente caracterizada, é para nós o Ocidente como ideal, o Ocidente como propósito, o Ocidente como programa”.

Entre o Ocidente e o Oriente, a convivência era balizada por dois extremos, a guerra fria (“a única paz possível”) e a “guerra no seu máximo de violência”.

Entre estes dois extremos, situou a guerra subversiva ou insurrecional; a guerra localizada, limitada; a guerra localizada, total; a guerra geral. Há, assim, entre os dois blocos, um estado de guerra permanente.

Nessa linha, e aparentemente defendendo a soberania nacional, Golbery diz que – hoje – a limitação da independência do país é inevitável, sob o argumento de que a organização do Estado “vê-se forçada” a “amoldar-se às exigências e às limitações impostas pelo sistema vigente de relações internacionais” (Silva, 1981).

Esse conflito impõe, diz, a necessidade de “conter o expansionismo comunista”, prevenindo a formação no Ocidente – e no Brasil, particularmente – de “novos focos da perniciosa infecção, de extinção muito mais difícil depois”. Nesse quadro, diz, é preferível “sacrificar o Bem Estar em proveito da Segurança”. Encara assim a democracia e a liberdade como meio para obter o consenso social em torno dessa opção. “Há um mínimo de liberdade – escreveu – que é indispensável realmente, e deve ser assegurar à Sociedade”; “a participação é indispensável, para que se possa, realmente, conduzir certas ações que exigem sacrifícios” (Silva, 1981).

Como Oliveira Viana, Golbery foi um ideólogo conservador voltado para a ação, e sua obra reflete isso, não apenas na interpretação da história mas também na proposição de um programa para o país e de uma estratégia para colocá-lo em prática. O cerne desse pensamento é o anti-comunismo extremado, justificação retórica que, adaptada a um tempo de luta de classes aberta e aguda, vai além do racismo pré-nazista de Oliveira Viana e traduz-se em uma ideologia mobilizadora das classes dominantes para impor e manter seu domínio sobre a sociedade.

Segundo esse pensamento, as dificuldades da democracia no Brasil decorrem daquilo que considera como atraso do povo. Isto é, o povo é o problema, agravado – segundo quem pensa assim como ele -, com seu alegado baixo nível de educação. Isto é, a democracia só será possível se houver um povo previamente preparado para ela. Absurdo que, visto de outra forma, mostra que a elite brasileira só aceita como democrático aquele regime em que não se sinta ameaçada nem pressionada por demandas vindas da classe operária, dos demais trabalhadores assalariados e setores que compõem o povo brasileiro.

O pensamento reacionário influenciado por Oliveira Viana esteve no poder, no Brasil, durante boa parte da ditadura de 1964, na pessoa e na influência de Golbery do Couto e Silva.

Hoje, embora confinado a grupos de ideólogos ultrapassados, ainda representa o pensamento muitas vezes não confessado de largos setores da elite. Representa, na esfera da ideologia, a sistematização de uma visão da história do país que, pretendendo ser científica, é mera recompilação dos preconceitos de classe e de raça da elite brasileira.

Bibliografia

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1972: Vida e morte do bandeirante, Livraria Martins Editora, SP, ( 1a. edição: 1929)

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1988: História da História do Brasil, V. II, tomo 2, A metafísica do latifúndio: o ultra reacionário Oliveira Viana, Cia. Editora Nacional, SP.

SILVA, Golbery do Couto e
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TAVARES, José Nilo
1979: Autoritarismo e dependência: Oliveira Viana e Alberto Torres, Achiamé/Socii, RJ.

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1973: Populações Meridionais do Brasil, vol. 1, Paz e Terra, RJ ( 1a. Edição: 1920).
1933: Evolução do povo brasileiro, Cia Editora Nacional, SP, ( 1a. Edição: 1923).
[1] Em http://www.vermelho.org.br/museu/principios/anteriores.asp?edicao=53&cod_not=430 Revista Princípios, n. 53.