quarta-feira, agosto 16, 2006

Aqui, e por enquanto, o voto basta



Que a noite passe

O que faz intolerável para a elite a vitória de Lula é a possibilidade de que, em seu segundo mandato, a solidariedade para com os excluídos se amplie e se aprofunde, e da mesma maneira se aprofunde e se amplie a ação policial contra os ladrões do Erário.
Mauro Santayana


BRASÍLIA - Em um de seus melhores contos, El hombre de la esquina rosada, que cito de memória, Jorge Luis Borges faz o personagem ansiar para que aquela noite não houvesse, para estar já no dia seguinte. Ele se referia ao constrangimento de assistir a um homem humilhar e ofender o outro. Angustiado com o que via, e não queria ver, desejava que o presente desaparecesse e viesse o dia com o sol da justiça.Quem examinar a atualidade do mundo e do Brasil sentirá a mesma angústia, diante da humilhação ignominiosa a que estão submetidos os fracos. "La fuerza és el derecho de las béstias", dizia Juan Perón. Tudo se pode dizer do general e de sua emblemática mulher, que foi Eva, menos duvidar de seu patriotismo e de seu interesse pelos pobres. A força continua fazendo o direito nas relações internacionais e na política interna dos países. Diante do que ocorre no Oriente, com a insistência assassina do Exército de Israel, e diante do que ocorre no Brasil, somos levados a pensar como o Homem da Esquina Rosada, e querer que a noite passe logo, que a manhã chegue em seguida.Quem analisar a campanha eleitoral entenderá, rapidamente, que o que incomoda no presidente Lula não são os erros de seu governo – e são muitos – mas os acertos. Pela primeira vez, neste País, os ricos e poderosos não se sentem invulneráveis à lei. E o que faz intolerável a vitória de Lula é a possibilidade de que, em seu segundo mandato, a solidariedade para com os excluídos se amplie e se aprofunde, e da mesma maneira se aprofunde e se amplie a ação policial contra os ladrões do Erário.Toda a retórica de homens como o Sr. Fernando Henrique Cardoso, que acusa Lula de contrapor os pobres às elites, é a escancarada defesa de uma classe – a dos que podem e, podendo, mandam – contra a dos pobres, submetidos a permanente humilhação. Quando ele fala na cisão do país, na hipótese, felizmente improvável, de que seu candidato se eleja, se esquece de que a ele mesmo coube a responsabilidade de aumentar o fosso que divide o país entre pobres e ricos.Quem está buscando a união nacional é exatamente um governo, como o de Lula, que procura combater a desigualdade, e está conseguindo fazê-lo, com os programas assistenciais e com o aumento do nível de emprego. Se os neoliberais puros, como é o caso do ex-governador de São Paulo, chegarem ao poder, será retomada a política de privatizações e de destruição das empresas privadas nacionais, com mais “reengenharia” empresarial com o desemprego em massa, financiado pelo dinheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador, administrado pelo BNDES.Uma testemunha da Revolução Francesa conta o que ouviu de um camponês sobre o movimento: não o incomodavam as dificuldades econômicas impostas pelas guerras, porque ele se sentia, desde que caíram os privilégios feudais, um homem como os outros. “Manteinant, je suis un citoyen ”.Quando um trabalhador, acostumado a ser confundido pela polícia com malfeitores, vê um figurão ser algemado pela Polícia Federal – como ocorreu ao Presidente da Assembléia Legislativa e ao Presidente do Tribunal de Justiça de Rondônia – sente-se redimido. Não são apenas os de sua classe que são submetidos à cadeia. Se não pode igualar-se aos poderosos na renda e nas comodidades da vida, os ricos a ele se igualam, diante da repressão policial. A minha memória de jornalista não registra ter visto, antes, grandes banqueiros, políticos de renome e juizes serem algemados a caminho do xadrez. Enfim estamos cumprindo a Constituição, que assegura a igualdade de todos os brasileiros perante a lei. Há alguns fatos que aborrecem profundamente a elite, sobretudo a elite de São Paulo. Ela não admitiu a ação policial contra a Daslu, templo da alienação e da arrogância diante da penosa situação social do Brasil. As imagens da imensa loja e de suas empresas de fachada sendo invadidas por policiais armados, em busca das provas de sonegação fiscal, fizeram chorar os ricos e poderosos, na solidariedade com os transgressores. Até mesmo o então governador de São Paulo – hoje candidato contra Lula – sentiu-se constrangido com a ação do Ministério Público, da Polícia Federal e do Fisco, e com suas peculiares razões. Senadores conhecidos vociferaram contra a Polícia. Esses que se sentiram incomodados – do outro lado da razão e da ética – com a fiscalização contra os grandes, são os mesmos que pedem a pena de morte contra criminosos comuns e bradam contra as invasões de terras vazias pelos trabalhadores sem terra. Estamos como el hombre de la esquina rosada. Sentimo-nos humilhados com a humilhação a que os fracos são submetidos, aqui e no mundo. Na fábula borgeana, o solidário vai atrás do valentão que tomou a mulher do humilhado, e lhe faz justiça com o punhal, a fim de antecipar o amanhecer. Aqui, e por enquanto, o voto basta.


Mauro Santayana é colunista político do Jornal do Brasil, diário de que foi correspondente na Europa (1968 a 1973). Foi redator-secretário da Ultima Hora (1959), e trabalhou nos principais jornais brasileiros, entre eles, a Folha de S. Paulo (1976-82), de que foi colunista político e correspondente na Península Ibérica e na África do Norte.