quarta-feira, novembro 16, 2005


foto montagem na capa golpista 7.9.2005

As máscaras vão caindo...
Carta a Mangabeira Unger, de Haroldo Lima
Rio de Janeiro, 15 de novembro de 2005.


Professor Mangabeira Unger:
Acabo de ler seu artigo de hoje na Folha de São Paulo. Acostumado a apreciar a defesa que sempre faz de um projeto nacional desenvolvimentista para nosso país, confesso que, hoje, fiquei chocado com o que escreveu. E não ficaria, se tudo que lá está, tivesse sido assinado pelo senador Bornhausen, ou pelo senador Artur Virgílio, ou pelo deputado ACM Neto. O que me chocou é que o professor, a quem tanto respeito, lavrou um texto que pode ser assinado por uma dessas pessoas.
Logo de início, com a contundência que lhe é própria, o senhor apresenta seu primeiro “afirmo” dizendo que “o governo Lula é o mais corrupto de nossa história nacional!!” Curioso como não se deu ao trabalho de qualquer esforço comprobatório do que afirma. Nem uma frase indicativa elaborou sobre como chegou a essa conclusão crucial. E, contudo, uma investigação sobre o assunto exige cautela.
Estive na Câmara Federal de 1983 até a legislatura passada, por vinte anos consecutivos. Nessa minha extensa vida parlamentar, que se desenvolveu todavia num curto período da história nacional, convivi com muita notícia de corrupção. Se bem que sempre achei serem outros os graves problemas nacionais, nunca, entretanto, deixei de batalhar pela apuração de qualquer corrupção suscitada com indícios sérios.
Quando na Câmara cheguei, a ditadura ainda estava de pé, de uma de suas prisões eu tinha saído na Anistia, e falava-se muito de como a corrupção que existia se beneficiava do sufoco das liberdades. Nunca foi possível aquilatar o tamanho da corrupção que ali teria havido. As denúncias de corrupção no governo Collor levaram à constituição de uma CPI em setembro de 1992, que levantou numerosos fatos de corrupção, a partir do que a população brasileira se mobilizou e o Presidente renunciou. Nem um ano havia passado e graves acusações atingem 23 deputados e senadores, seis ministros e três governadores que estariam fraudando o Orçamento Federal. Nova CPI, uma porção de corrupção identificada, indignação da opinião pública, oito parlamentares cassados em janeiro de 1993. Mais à frente, em janeiro de 1997, por ocasião da aprovação da Emenda da Reeleição, que favoreceu diretamente ao presidente Fernando Henrique , denúncias espetaculares explodem, degravações são publicadas em páginas inteiras da Folha de São Paulo, dando conta de que votos de parlamentares foram comprados a R$200 cada, com nomes completos de alguns deles, cinco ou seis, com indicações precisas de quem no governo operava o esquema, dando o dinheiro, de quem na Câmara encaminhava os deputados para recebê-lo. Todos muito conhecidos. Um clamor nacional se levantou exigindo a apuração dos fatos. O governo de FHC, lançando mão de todos os meios de “convencimento” dos parlamentares, impediu que apuração fosse feita.
Se tivesse ficado só por aí, professor, já seria muito difícil, dizer, responsavelmente, que “o governo Lula foi o mais corrupto da história nacional”. Mas não foi só. Houve o caso do Banco Central no governo passado favorecendo aos bancos Marka e FonteCidam numa transação que envolveu prejuízos para o erário da ordem de R$1,5 bilhão, em 1999. E finalmente há, segundo alguns, o maior de todos os casos de corrupção do período recente do Brasil, o das privatizações, onde até gravação apareceu com a voz do Presidente Fernando Henrique , e que, a despeito disto, e talvez por isso mesmo, não foi apurado.
Como provavelmente o senhor não estivesse pelo Brasil em todo esse período, é possível que não tenha acompanhado o noticiário sobre tantos escândalos. De qualquer maneira, o seu “afirmo” carece de base.
Mesmo por curiosidade, professor, seria proveitosa uma leitura da matéria de capa do número 426 da revista Isto É-Dinheiro, de 9 de novembro passado, que conta como vive, hoje, a família de Lula. E aí constata-se que alguns dos familiares mais próximos do chefe do governo que seria “o mais corrupto da história” passam necessidades: um irmão “vive de aposentadoria”, outra, é “auxiliar de merendeira em uma escola municipal”, outro mais velho, de 68 anos, “ainda trabalha como metalúrgico”, etc.
Sei da seriedade com que o senhor analisa as questões do Brasil, mas a surpreendente precipitação do seu “afirmo” suscita uma reflexão. É que senadores e deputados, há pouco, ameaçaram dar “surra” em Lula e eu nunca vi ninguém ameaçar dar surra em algum general-ditador, ou empresário-presidente, ou sociólogo-presidente. E na verdade, também nunca vi alguém começar um artigo dizendo, sem indicar prova alguma e sem esforço em provar nada, que o governo tal é “o mais corrupto da história”. A reflexão que fica é a seguinte: não será a origem operária do Presidente Lula, sua trajetória de retirante nordestino, suas marcas plebéias, que levam alguns setores a tratarem Lula sem o respeito e sem o cuidado investigativo que dispensam a todos os que não têm essas marcas?
Com base exclusivamente na conclusão sem base a que chegou, o senhor funda sua proposta de “pôr fim ao governo Lula”, mesmo reconhecendo que “as provas acumuladas de seu envolvimento em crimes de responsabilidade podem ainda não bastar para assegurar sua condenação em juízo”.Agrega, depois, alguns ataques ao Presidente, tipo “avesso ao trabalho e ao estudo, desatento aos negócios do Estado, fugidio de tudo o que lhe traga dificuldade ou dissabor e orgulhoso de sua própria ignorância”. Quem conhece Lula de perto não tem dele essa impressão, pelo contrário. Essas afirmativas soam assim, surpreendentemente, gratuitas. E por último o senhor adverte aos que “deixassem de exigir (esse) impedimento”: “descumpririam seu juramento constitucional e demonstrariam deslealdade para com a República”.
Como brasileiro teria direito a perguntar: tirar um Presidente, sem provas, sem apoio em qualquer clamor popular, não seria desrespeitar as decisões das eleições? E para botar quem no lugar? O senhor declara descartar alguém do PSDB mas, em processo tão deformado, não seria isso uma ingenuidade do professor? Afinal, não é a direita que está tramando pôr fim ao governo de Lula? Lamentavelmente, nesse episódio, o senhor, homem de esquerda, encontrou-se com a direita.
Seu artigo critica ainda o governo Lula, por ter supostamente promovido o “achincalhamento dos partidos políticos”. Sem dúvida o professor, nesse infeliz artigo, resvalou freqüentes vezes para a generalização que confunde. Embora práticas espúrias, como algumas já identificadas, levam ao “achincalhamento” de setores parlamentares, outros setores e direções partidárias diversas, à esquerda e à direita, não se consideram achincalhadas e nem foram. O PC do Brasil, por exemplo, meu partido, não foi achincalhado, nem de longe, ao contrário, está unido, passando por uma fase de crescimento, de revitalização ideológica, defendendo a apuração da corrupção e punição dos culpados, mas estando antes de tudo solidário com o governo Lula, defendendo aí mudanças já feitas, pelejando por mudanças que devem ser feitas, no quadro de uma política macroeconômica vigorante da qual diverge.
O estilo de seu artigo lembra o famoso “J'Accuse”, de Emile Zola, publicado no L'Aurore, em janeiro de 1898, na França, posicionando-se no caso do capitão Alfred Dreyfus. Zola iniciou vários parágrafos de sua carta com o “acuso”, seu artigo faz o mesmo com o “afirmo”. Na própria França, outro intelectual de proa, Voltaire, no século XVIII, já se notabilizara por colocar sua pena e seu intelecto a serviço de outra causa. Voltaire batia-se pela revisão de um erro jurídico cometido em decorrência de fanatismo religioso. Zola levantou-se em defesa do capitão Dreyfus, que era alvo dos conservadores na França. A tradição que vem daí é da intelectualidade perfilar-se sempre, em meio aos embates políticos, do lado das forças renovadoras e progressistas da sociedade, como neste caso, seu artigo, lamentavelmente não fez.

Com os respeitos de Haroldo Lima
(Haroldo Lima é membro do Comitê Central do PCdoB)

O artigo de Roberto Mangabeira Unger publicado na seção "FolhaOpinião" da Folha de S. Paulo de 15 de novembro, pode ser acessado abaixo:
ROBERTO MANGABEIRA UNGER: Pôr fim ao governo Lula

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