segunda-feira, novembro 28, 2005


Apocalypse Now

O fundamentalismo religioso e o capitalismo canibal destruíram a sexualidade humana de uma grande parcela da humanidade, esse é o preço que essas sociedades estão pagando por sua estupidez...
A mutilação e o horror, são a forma alegórica de expressão da derrota humana, lembro do coronel KURTZ de Apocalypse Now, no filme de Coppola, um filme magistral sobre a derrota humana. AM

mídia e cultura

Violência contra mulher é
entretenimento popular nos EUA

Como pode uma nação que abomina as punições cruéis e inusitadas adorar assistir a toda espécie de violência cruel e inusitada, como forma de distração?
Por Joanne OstrowThe Denver Post
Num dos últimos episódios de "CSI", a série dramática mais popular dos Estados Unidos, a cabeça de uma mulher foi encontrada num caixote de jornais à venda. Ao conferir o estado da vítima, um técnico legista encontrou e arrancou uma cobra lá dentro da boca decapitada.
Ao final de uma hora de programa (no episódio exibido pela primeira vez em janeiro), os detetives localizaram o assassino da mulher através das marcas de pneu sobre o casaco de couro dela, e logo depois a decapitação foi reencenada num flashback.
Mais de 28 milhões de pessoas assistem a "CSI" na CBS americana a cada semana, se emocionando com as perseguições aos criminosos e com os repugnantes efeitos especiais. Até mesmo nas reprises, as reconstituições criminais são líderes de audiência. A contagem de corpos mostra que não faltam vítimas do sexo masculino, mas são as mulheres que recebem o tratamento mais horripilante.
Apesar dos estudos que levantam preocupações quanto aos efeitos da violência produzida pela mídia, e mesmo diante das objeções feitas por vários grupos de interesse, a violência contra as mulheres continua servindo como uma receita infalível no cardápio do entretenimento popular. Nessa atual temporada de estréias americanas, a exibição de cenas de estupro, torturas e assassinato de mulheres tem sido um recurso especialmente popular para a apresentação de episódios de um programa de TV.
Num momento em que os Estados Unidos proclamam seus altos valores morais nos conflitos globais, a televisão manifesta algo de desconfortável sobre a nossa cultura. Como pode uma nação que abomina as punições cruéis e inusitadas adorar assistir a toda espécie de violência cruel e inusitada, como forma de distração?
"A exploração dos perigos vividos pela donzela funciona como ferramenta de marketing --e isso desde Fay Wray (no "King Kong" de 1933), segundo Matthew Felling, do Centro de Estudos de Mídia e Assuntos Públicos, na capital do país, Washington. Ele acredita que os americanos são espectadores mais para guerreiros do que para voyeurs - "Queremos ver o cumprimento da justiça e os malfeitores punidos".
Na diversão em horário nobre, "nós não queremos finais a la Chandra Levy, queremos desfechos a la Elizabeth Smart", diz Felling, se referindo às vítimas de dois casos-obsessões do noticiário nacional propagado pela TV a cabo. (O assassino de Levy nunca foi identificado, enquanto Smart, a abduzida, voltou sã e salva para sua família.)
Em nossa cultura, jamais permitiríamos que uma mulher fosse apedrejada até a morte por ter cometido adultério, mas nós usamos imagens da degradação feminina para vender produtos. (Apesar das constatações de que os espectadores se recordam menos dos comerciais quando esses são justapostos com imagens violentas, os anunciantes chegam a pagar U$ 465.000 --equivalente a mais de R$ 1 milhão-- por um comercial de 30 segundos no intervalo de "CSI", segundo informa a revista AdWeek.)
Violência vende programas-piloto
Grande parte da violência contra a mulher na atual temporada veio nos programas-pilotos exibidos pelas grandes redes, que são usados para vender uma série para os executivos das redes e para os anunciantes, e também para atrair a atenção dos espectadores para um determinado programa.
Os programas da atual temporada começaram com uma explosão de violência contra as mulheres, vítimas de alienígenas, de forças sobrenaturais ou de simples criminosos da raça humana. Inegavelmente, essa foi uma tendência. Mulheres foram abduzidas num automóvel, enclausuradas e torturadas numa caverna ("Criminal Minds" na CBS); retiradas do chuveiro para ter um feto arrancado do útero (na recém-cancelada "NightStalker" na ABC); e atacadas por aranhas desprendidas por um assaltante que depois estupra e mata uma mulher ("Killer Instinct" na Fox).
Uma mulher chegou a pegar fogo espontaneamente depois de ter sido arremessada contra o teto do quarto de seu bebê, numa ação de forças desconhecidas ("Supernatural", na rede WB).
Há algo de errado numa indústria em que os produtores acreditam que devem apelar para descrições de estupros, de atos de tortura ou de assassinatos horripilantes para atraírem a atenção das grandes redes de TV.
"Em termos culturais, estamos num momento muito confuso no que diz respeito à imagem das mulheres", diz a escritora feminista Jennifer Pozner, fundadora e diretora da organização Mulheres na Mídia & Imprensa.
Essa dependência da televisão em relação à violência contra as mulheres não é nenhuma novidade. Em "Law & Order: Special Victims Unit", que agora está em sua sétima temporada, "toda a série está fundamentada em `como podemos estuprar, torturar, assassinar e mutilar mulheres a cada semana?"'
Os críticos acreditam que foi o sucesso de "CSI" que provocou essa nova onda de imagens de violência hedionda.
O motivo pelo qual "CSI" vence seus competidores até mesmo nas reprises, teoriza Felling, é porque a série apresenta uma "justiça perfeitamente empacotada". O público não se importa de ver crimes horrendos, desde que no final os criminosos sejam devidamente capturados.
A explícita "CSI" e suas séries derivadas "CSI: Miami" e "CSI: NY" mostram que esse senso de justiça funciona. Da mesma forma, "Law & Order" é praticamente a série "Gunsmoke" para o novo milênio.
Ponto de virada cultural
Era um outro momento cultural quando, em 1988, Jodie Foster e Kelli McGillis co-estrelaram "Acusados", filme baseado num incidente real sobre uma mulher que foi estuprada por uma gang e que fica indignada com a sentença leve recebida pelos homens que a atacaram, ataque motivado por ela ter sido considerada de "caráter questionável".
A vítima (Foster) exige que uma promotora (McGillis) condene os homens que literalmente se confraternizaram durante o estupro. O filme acende a questão do trauma e dos horrores jurídicos vividos por vítimas de estupro, além de examinar a tendência da sociedade em culpar quem sofre o estupro.
Marcando uma virada na abordagem por parte da cultura-pop, "Acusados" provocou uma observação mais séria a respeito da ocorrência e das causas do estupro. O filme também provocou análises por parte da mídia, quanto à correlação entre o fato de se assistir às cenas de estupro numa tela e a ocorrência de crimes na vida real.
Essa mensagem parece que surgiu com o filme mas depois se perdeu. O estupro cada vez mais figura no centro das tramas, enquanto a televisão procura rivalizar com as imagens violentas exibidas nas salas de cinema.
E outras produções do horário nobre americano seguem a tendência lançada por "CSI". A audiência massacrante e o alto valor do intervalo comercial na CBS estabelecem um padrão para hábitos violentos. Na semana passada, em "CSI: Miami", uma mulher foi morta por um instrumento de solda; essa semana, um assalto a banco terminou em estupro. Mais uma semana, mais um crime sexual hediondo.
O sensacionalismo vende, não é só o sexo que vende, observa a feminista Pozner. Os anunciantes não chegam a se escandalizar com imagens ultrajantes; eles querem tudo o que venha a atrair os olhares para a tela. As redes alegam que dão aos espectadores o que eles querem, argumentando que 28 milhões de pessoas não podem estar enganadas.
Do ponto de vista de Jennifer Pozner, os produtores e as redes tendem a se pronunciar através de códigos. Quando eles dizem "audacioso" querem dizer "sexo e violência".
"Se você aumenta o grau do choque sensacional", ela diz, "você está aumentando o grau de violência contra as mulheres".
Uma teoria sustenta que o aumento da violência na TV é em parte atribuível à reação da censura após o episódio do seio nu instantâneo de Janet Jackson. Os produtores de televisão não podem exibir nudez, então apelam para a violência. "Estamos num período de ataques contra as mulheres e contra o feminismo ", conclui Pozner.
É apenas o crime e seus negócios
Mas, se realmente cresce nos últimos tempos a incidência de violência contra as mulheres na TV, com a exibição de algumas cenas bizarras, outros analistas da indústria se recusam a tirar conclusões mais abrangentes sobre esse propalado anti-feminismo. Eles argumentam que o gênero cresce apenas por causa desse imenso sucesso financeiro. Em outras palavras, são apenas negócios.
"O que observamos é muito menos uma vingança contra o feminismo ou um interesse renovado em colocar as mulheres como objetos em perigo, e muito mais a preponderância desse gênero de série policial de investigações", diz Robert Thompson, guru da cultura pop na Universidade de Syracuse.
Para criar dramas de investigação instigantes ano após ano, os roteiristas elaboram crimes audaciosos o bastante para manter a audiência durante uma hora.
"Assim eles escrevem sobre o que culturalmente é considerado o mais ultrajante dos crimes", segue o guru Thompson , "que é o crime contra mulheres e crianças."
Segundo esse ponto de vista, aumentar o tom da criminalidade nas séries faz com que os roteiristas criem o anseio no público para assistir à punição do crime. E para proporcionar aos programas um ar contemporâneo e manter a atenção dos espectadores, de vez em quando os criminosos se dão bem (o estuprador serial riu por último no episódio de "Law & Order: SVU" exibido na semana retrasada nos EUA).
Seja qual for o motivo, seja por razões financeiras ou seja por motivos enraizados mais profundamente na psique da nação, não há maneiras de evitar o poder brutal das imagens da TV, especialmente nas imagens contra as mulheres.
Jennifer Pozner ainda tem pesadelos provocados por um episódio de "Law & Order: Special Victims Unit", série sobre uma divisão que cuida de vítimas especiais, em que é exibido um estupro no metrô, diante de muitas pessoas. A câmera se detém nos olhos da mulher enquanto um homem cobre a boca da vítima, e aí corta-se para um dos carros do metrô cheio de passageiros, que não tiram olhos de suas leituras.
"Foi a demonstração mais visceral de impotência coletiva desde a cena do estupro sobre o fliperama em 'Acusados'", diz Jennifer Pozner.
Alteração da percepção sobre os desconhecidos
Enquanto as estatísticas provam que os crimes sexuais em sua maioria são cometidos por alguém que a vítima conhece, a televisão freqüentemente sugere o oposto. Os espectadores ficam com a impressão de que as mulheres devem temer os estranhos que surgem no mundo exterior.
"Esses programas estão aí para faturar com o terror contra as mulheres", diz Pozner. "O problema nesses programas é que as mulheres não têm escapatória, existem para ser mutiladas, torturadas, para serem vítimas sexy dos estupros ou para ser as lindas garotas-cadáveres."
Thompson contra-argumenta que uma revisão cuidadosa de certos episódios de séries dramáticas exibidos pelas grandes redes indica que eles são freqüentemente menos explícitos do que imaginam os espectadores. "Grande parte do horror fica subentendido nos diálogos."
Mesmo assim, há muitas cenas explícitas. As pessoas que trabalham com vítimas de violência sexual ficam perplexas e não entendem como o público pode assistir a tantos massacres e encará-los como mera atividade de lazer.
"Há um grande descompasso entre o que as pessoas assistem na televisão e o que elas passam em suas próprias vidas", diz Christina Walsh, do Centro Nacional sobre Violência Sexual e Doméstica, uma organização sem fins lucrativos baseada no estado do Texas. "As pessoas simplesmente dizem, 'Isso é apenas diversão, a vida real não é assim'".
"As pessoas têm um mecanismo de preservação altamente afiado para si mesmas - dizem assim, 'minha vida está segura, esse tipo de crime jamais interromperia a minha vida'", diz Christina Walsh. "Nós funcionamos nessa espécie de bolha. É o nosso instinto, o de olhar a violência na TV como quem olha um acidente de trânsito."
Walsh prefere não assistir. Como tantas pessoas que trabalham na área de saúde mental, ela acha que a violência contra as mulheres na ficção é cortante e afiada demais para ser encarada como uma simples diversão.
A motivação, de acordo com Alan Entin, psicólogo em Richmond, Estado de Virginia, é regida pelas "emoções baratas. Acredito que vários roteiristas são seres raivosos, e especialmente raivosos contra as mulheres".
Sob esse aspecto, a violência na TV simplesmente reflete o fato de que muitas pessoas são violentas em suas próprias vidas, ou têm a violência a flor da pele.
Dessa maneira chegam aos nossos lares raivas e medos num movimento que parece não ter fim --tudo em nome do entretenimento e da diversão.

Fonte: The NYT News Service

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