terça-feira, novembro 22, 2005


Cesar Maia (não) vai
ao cinema

JOÃO MOREIRA SALLES

É bom o artigo do prefeito Cesar Maia publicado nesta Folha no dia 17/11. Como diretor de "Entreatos", fico lisonjeado com os elogios que ele faz ao filme. Pena que não tenha externado seu entusiasmo na época em que o filme entrou em cartaz. Por que não?
Não consigo creditar esse súbito e irrefreável desejo de rever "Entreatos" à cinefilia do nosso prefeito. Pergunto, um tanto retoricamente: caso o governo Lula estivesse cruzando céus de brigadeiro, será que ele teria tanto afinco em defender os direitos do espectador? Talvez por isso tenha se mantido calado na época em que o filme circulava pelo país. O contexto político relativamente sereno tornava o filme pouco apetitoso.Até pouco tempo, "Entreatos" não servia aos propósitos eleitoreiros de Cesar Maia. Donde o silêncio. E agora, o barulho.Cesar Maia me acusa de censor. Eu estaria proibindo a exibição do filme. Propõe que "Entreatos" volte às salas de cinema por exigência da Justiça. É uma solução original. O grande problema do cinema brasileiro é a distribuição. Criada a boa jurisprudência, será um alento contar com a Justiça para que nossos filmes entrem em cartaz a golpes de medidas cautelares.Enquanto isso não acontece, é preciso que o prefeito saiba que "Entreatos" foi exibido em 24 cidades brasileiras. Foi visto por quem desejou vê-lo, ficou quase oito meses em cartaz e, como todos os filmes do mundo, esgotou seu ciclo de exibição no circuito comercial. Mas continua a ser visto. Somente neste ano, foi exibido em Santa Maria e em Nova Friburgo, em julho; em São Paulo, em agosto e setembro; em Guarapava e Belém, em outubro; em Belo Horizonte, em novembro. Menciono as datas para que o prefeito saiba que o filme continua a ser exibido apesar da crise.E mais: como prática corrente da VideoFilmes, atendemos a todas as instituições acadêmicas que precisem dos nossos filmes. "Entreatos" é um dos nossos documentários mais solicitados. Como ainda não existe DVD disponível, mandamos prensar mil cópias para venda exclusiva a essas instituições. Qualquer professor de escola ou de universidade pode ligar para a VideoFilmes e adquirir no mesmo dia uma cópia do documentário.Aliás, um aparte: nos nossos registros não consta nenhuma venda para a prefeitura do Rio. Como o prefeito afirma que vem analisando o filme "quadro a quadro" no seu laptop, sou forçado a concluir que ele comprou uma cópia pirata. Caso o oficial de Justiça apareça por aqui com a tal intimação, já temos outro assunto para tratar.E que o prefeito do Rio de Janeiro não se exalte. Diferentemente do que ele sugere, não destruí o material bruto. Copiei-o, e hoje tenho dois conjuntos guardados em arquivos diferentes. Sei da importância de preservar o patrimônio. Creio ter o direito de não receber lições do prefeito. Quando leio que, entre os novos quiosques à beira-mar da avenida Atlântica, licenciados pela prefeitura, haverá dois McDonald's, me pergunto se temos, ele e eu, a mesma compreensão de patrimônio.Assim que estourou a atual crise, recebemos um só telefonema de exibidor indagando sobre a possibilidade de mostrar o filme durante uma semana na sua respectiva sala. Declinei. Entramos aqui numa questão que diz respeito aos compromissos que julgo serem inerentes ao contrato que se estabelece entre documentarista e documentado. Um contrato não assinado, diga-se.Do mesmo modo que não aceitaria que o filme fosse submetido à aprovação de Lula -outra inverdade sugerida por Cesar Maia-, me sinto obrigado, não por laços de amizade, que não os tenho, nem por simpatias ideológicas, que não são as minhas, a não ser desleal com a pessoa que filmei. Presidente, pianista ou bandido, não importa. A regra é a mesma: evitar o oportunismo.A reestréia de "Entreatos" não acrescentaria muito ao público do filme. Por outro lado, produziria um insignificante sucesso de ocasião que a mim não interessa, mas interessa ao PFL do prefeito. Entre o PFL e minhas convicções, fico com as minhas convicções.Não deixa de ser espantoso que Cesar Maia confira ao documentário tamanha importância. Por falta de convicção, nós, documentaristas, hesitamos em dizer coisa parecida. Ocorre que o prefeito não é um neófito; ele conhece documentários, já que foi produtor de um. O excelente "Ônibus 174" não teria sido realizado sem o firme apoio da Riofilme, uma empresa 100% subordinada à Prefeitura do Rio.Infelizmente, "Ônibus 174" teve um público bem menor do que merecia. Não foi outra a razão: Cesar Maia exigiu que fosse lançado em outubro de 2002, durante o segundo turno das eleições. O propósito era ferir a candidatura da mulher de Garotinho ao governo do Estado. Longe de mim achar que o objetivo não era louvável. Mas os métodos, prefeito, definitivamente, não eram bons. Primeiro, por ineficientes. Depois, porque obrigar um filme a estrear, não por razões de mercado, mas por razões de política, é dar o primeiro passo rumo à instrumentalização da arte.Os políticos com tendências autoritárias deveriam ser mais prudentes. Quando filme e ação judicial aparecem no mesmo parágrafo, começo a ficar ansioso.

João Moreira Salles, 43, é documentarista e produtor.

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