por São José Almeida
Artigo de Opinião
Para a presunçosa arrogância da ignorância nacional, Gisberta era apenas uma bicha brasileira drogada que se vestia de mulher e se prostituía na rua e que - como muitas outras o são também diariamente por todo o país - podia e merecia ser agredidaO crime sádico e bárbaro cometido por 13 jovens, que espancaram e seviciaram sexualmente uma transexual brasileira, ilegal, cocainómana, doente de sida e sem-abrigo, no Porto, abandonando-a de seguida para morrer, só voltando ao local do crime 48 depois, para esconder o cadáver num poço, chocou o país e é, sem qualquer espécie de dúvida, um crime brutal e atroz. Um crime perverso, não só pelos contornos sádicos, segregacionistas e discriminatórios, mas também pela perversidade que está subjacente às razões que levaram a que este crime acontecesse. Essa perversidade - que tem múltiplas faces, quer do lado dos jovens que cometeram o crime, quer do da sua vítima - é uma realidade complexa, que, na sua multiplicidade, se insere toda ela num conceito: exclusão. Foi a exclusão que levou os jovens a um comportamento deste tipo. Foi a exclusão que levou a vítima à situação de fragilidade que permitiu ser sobre ela perpetuado o crime hediondo.É evidente que o facto de os jovens serem eles mesmos vítimas de exclusão não diminui o horror do crime que cometeram, nem é razão para que não sejam devidamente responsabilizados pelos actos criminosos que praticaram. Por outro lado, não deve ser omitido o efeito da dinâmica de grupo entre jovens, sejam eles de que estrato social forem. Mas não pode ser ignorado o facto de estes jovens estarem já enquadrados em instituições privadas de solidariedade social geridas pela Igreja católica, que supostamente deviam ser fiscalizadas pelo Estado e que deviam ter por função a inserção social de crianças e jovens, cujas famílias não têm condições de os enquadrar socialmente, educar e formar como cidadãos com valores e com uma ética social baseada nas referências que constituem a vida em sociedade e, acima de tudo, o respeito pelo ser humano. Mais: o que este crime vem questionar antes de tudo é o que é que falhou da parte dos responsáveis católicos que tinham a responsabilidade da inserção social destes jovens? Que quadros de referência são ensinados pela Igreja católica? Como é que o Estado fiscaliza a situação das crianças em relação às quais tem responsabilidade?Esta questão é tanto mais pertinente quanto é sabido que todos estes jovens estão, do ponto de vista psicológico, em idade de formação. Se bem que isso não possa ser atenuante da responsabilidade que lhes deve ser assacada, faz toda a diferença, quando se fala da pena. E aqui não se faça confusões quanto à questão da inimputabilidade penal dos jovens. Os jovens não são inimputáveis em Portugal. Eles são punidos a partir dos 12 anos, nomeadamente com penas de reinserção social. Tal como são os jovens ingleses, que viram a sua idade penal reduzida e que não cumprem a sua pena em prisões, mas sim em instituições de reinserção. A questão é que, quando a ONU aponta, baseada não só mas também nos estudos psicológicos da formação da personalidade, a idade de 18 anos como limite para conceptualização jurídica da criança e do jovem, quando se discute sobre a ineficácia social de reabilitação do sistema prisional clássico, quando se discute sobre a diminuição e substituição das penas de cadeias, não tem qualquer sentido vir agora abrir uma discussão sobre a punição de jovens criminosos com penas de cadeia clássica. De que serve pôr estes jovens em Vale de Judeus? Torná-los catedráticos em crime?O assassinato de Gisberta expôs à luz do dia um outro nível de exclusão. Gisberta era uma transexual brasileira, artista de transformismo, que caiu na prostituição para alimentar a dependência da cocaína que adquiriu nos últimos anos, acabando por contrair sida, que se manifestou há cerca de um ano, com infecções oportunistas associadas, como a tuberculose. O estado de degradação a que a toxicodependência a levou atirou-a para a rua, acabando por perder o seu visto de residência em Portugal, passando à ilegalidade e vivendo os últimos tempos da sua vida como sem-abrigo. Um quadro completo de exclusão, que fez com que tivesse como único apoio a Abraço. A exclusão de Gisberta era uma exclusão múltipla. A exclusão da sua situação de imigrante, que ainda por cima ficou ilegal - por que razão é que, se a Abraço informou o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras da situação de Gisberta, ninguém actuou? A exclusão da toxicodependência, que, apesar das evoluções positivas da lei, que encara já o problema como uma doença e não um crime, continua a ser um estigma social fortíssimo em Portugal. Mas também a exclusão homofóbica e transfóbica. E se este crime não é apenas um crime homofóbico - pois todo o quadro social de Gisberta era de uma total fragilidade, até física, pela doença -, é claríssimo que ele é-o também. Isto porque, se estes jovens poderiam ter batido noutro sem-abrigo, o caso concreto é que Gisberta era transexual e o crime incluiu sevícias claramente homofóbicas, como a introdução de objectos no ânus de Gisberta. Aliás, a discriminação, neste caso, não é sequer uma discriminação homossexual. Gisberta não era homossexual, era transexual. É claro que, todas as diversas realidades de género, que estão estudadas, desde o nível hormonal ao da personalidade, enquadradas cientificamente e juridicamente reconhecidas noutros países em que a qualidade da democracia é uma preocupação, em Portugal são ostensivamente misturadas. Para a presunçosa arrogância da ignorância nacional, Gisberta era apenas uma bicha brasileira drogada que se vestia de mulher e se prostituía na rua e que - como muitas outras o são também diariamente por todo o país - podia e merecia ser agredida.E, por fim, mas não menos grave nem menos estigmatizante em Portugal, a exclusão da sida. Só isso explica que Gisberta fosse apenas apoiada pela Abraço, instituição privada. Por que razão é que, apesar de a Abraço ter informado o delegado de Saúde da situação de Gisberta, como tem de fazer sempre, ninguém se preocupou em a acompanhar e permitiu um caso de saúde pública, ou seja, que Gisberta se continuasse a prostituir para comprar cocaína, mesmo contagiando os clientes com sida e com tuberculose? Por que ninguém se interessou pelo caso? Talvez porque, como já se disse, para a presunçosa arrogância da ignorância nacional Gisberta era apenas uma bicha brasileira drogada que se vestia de mulher e se prostituía na rua e que - como muitas outras o são também diariamente por todo o país - podia e merecia ser agredida. Só que Gisberta morreu.
http://www.portugalgay.pt/politica/portugalgay71.asp
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