sábado, novembro 19, 2005


UM HOMEM, É A SUA HISTÓRIA

Conversas na casa de Zé Dirceu- site nominimo – jornalista Ricardo Kotscho

19.11.2005 Penei para encontrar um bloco de anotações em casa, peguei um trânsito danado de tarde de sexta-feira chuvosa em São Paulo, a caminho da minha primeira entrevista deste ano, mas valeu a pena. De bermudas, camiseta regata e chinelos, encontrei bem tranqüilo o velho amigo em seu apartamento da Vila Mariana, um bairro de classe média da zona sul de São Paulo. Nem parecia que estava às vésperas de enfrentar um julgamento na Câmara dos Deputados, que vai decidir seu destino político na próxima quarta-feira, dia 23, e pode deixá-lo sem mandato até 2013, depois de quarenta anos de vida pública.Acabou sendo, na verdade, mais uma conversa do que uma entrevista formal com José Dirceu de Oliveira e Silva, mais conhecido como Zé Dirceu, ex-líder estudantil, ex-guerrilheiro, ex-presidente do PT, ex-ministro chefe da Casa Civil, que vai completar 60 anos no próximo mês de março. Entre um ato e outro de solidariedade que vem recebendo nos últimos dias - quinta, no Rio; sexta, em São Paulo; sábado, em Belo Horizonte - Zé passou a tarde no apartamento, atendendo a telefonemas, conversando com a mulher, Maria Rita, dando uma olhada na correspondência e fazendo um balanço do que aconteceu nestes últimos seis meses em que ele se viu no centro do furacão da maior crise enfrentada pelo governo Lula.Por maiores que sejam as evidências, engana-se quem imagina que ele já tenha jogado a toalha. “Muitos acreditam, até o presidente Lula, que é muito difícil eu não ser cassado, mas eu ainda não perdi as esperanças. Por que? Porque sou inocente. Está havendo, nestas últimas semanas, uma mudança na opinião pública e na sociedade em relação à minha pessoa. Percebo isso pelo apoio que recebo nas ruas, nos aeroportos, nos atos públicos”. Otimista, procura mostrar confiança no seu próprio destino, qualquer que seja o resultado de quarta-feira, e no futuro do país. Revela que alertou o presidente Lula, em duas ocasiões, no começo deste ano, sobre a iminência de uma grave crise política motivada pela falta de maioria do governo na Câmara e no Senado. Defende a recandidatura de Lula, mas não se recusa a arriscar possíveis outros nomes do PT e da base aliada para a disputa da sucessão presidencial. Nostálgico, gosta também de falar do passado. Lembra da sua estréia na vida política, em 1965, quando, a convite de Luiz Travassos, seu colega na Faculdade de Direito da PUC paulista, entrou de cabeça na campanha pela revogação do Decreto-Lei 477 da ditadura, que acabou com a UNE e os centros acadêmicos. Conheci Zé Dirceu dois anos depois, quando já era presidente da União Estadual dos Estudantes e eu estava começando no “Estadão”, que já não gostava dele. Eram dias de batalha campal na rua Maria Antonia, com Zé e Travassos de um lado, comandando as tropas da esquerda contra a ditadura, e do outro a turma do Mackenzie, reduto do Comando de Caça aos Comunistas. Todo dia ele reclamava da cobertura e eu era obrigado a explicar a ele que quem manda em jornal é o dono, não o repórter.Somos amigos desde esta época, apesar de muitos arranca-rabos - e quem que conviveu com a polêmica figura não os teve? Trabalhamos juntos em três campanhas presidenciais de Lula (1989, 1994 e 2002) e nos primeiros dois anos de governo. Na primeira campanha, tivemos uma discussão mais feia. Lula iria se encontrar no comitê de campanha com Fernando Gabeira, um dos nomes cotados para ser seu vice. “Quem foi o fdp que avisou a imprensa? Esse encontro não era para ser divulgado, porra”, vociferou meu amigo. “Fui eu”, respondi-lhe, singelamente, na frente de um batalhão de repórteres. Ninguém tinha me avisado de que se tratava de uma reunião reservada e, na minha função de assessor do candidato, achei que devia chamar a imprensa. Afinal, era pago para isso. Mais tarde, em particular, desafiei o Zé, brincando: “Olha, companheiro, você não pode falar assim comigo e, além de tudo, não pode me mandar embora, nem me expulsar do PT”. Secretário-geral do partido na época e um dos coordenadores da campanha, ele sentiu-se desafiado pelo desabusado assessor e queria saber “como assim?”, qual a razão desta segurança toda. “É porque eu sou diretor do sindicato dos jornalistas e, portanto, tenho imunidade, não posso ser demitido. E não posso ser expulso do PT porque nunca entrei no partido”.***Lembramos dessas e outras histórias durante as nossas conversas de sexta-feira. Abaixo, um resumo, em forma de pingue-pongue, como falavam os repórteres de antigamente, que nunca saiam de casa sem um bloco de anotações.A pergunta que todo mundo está-se fazendo: afinal, o que aconteceu? O que aconteceu com você, o governo, o PT e o país nos últimos seis meses?A oposição aproveitou-se de graves denúncias feitas pelo Roberto Jefferson para iniciar um movimento com o objetivo de desestabilizar o governo e inviabilizar a reeleição do presidente Lula, que era dada como certa àquela altura. O quadro se agravou com a descoberta do financiamento ilegal do PT através do esquema de Marcos Valério, que já tinha sido usado pelo PSDB, em 1998. Isso foi possível porque o governo vinha há vários meses sem maioria na Câmara e no Senado. Investigações necessárias se transformaram num instrumento da oposição contra o governo. Revelou-se também a crise do sistema político partidário e eleitoral do país. Presidente sem maioria acaba levando a oposição à tentação de antecipar a sucessão presidencial. Evidentemente, nada disso significa esconder nossos erros ou a necessidade de se apurar as denúncias de corrupção na administração pública federal.E agora? É possível prever como estarão você, o governo, o PT e o país daqui a um ano, quando teremos eleições gerais?Tenho certeza de que o país estará melhor no ano que vem porque o PT e o governo estão tirando uma grande lição desta crise. Há uma segurança hoje no crescimento econômico e a população terá a oportunidade de julgar não só o governo, mas também o comportamento da oposição. O PT renovado ainda será o principal ator da eleição de 2006. Cassado ou não, estarei, como cidadão, fazendo o que sempre fiz: política.Nos seus piores pressentimentos, antes de estourar a crise em maio, você poderia imaginar que chegaria ao final do ano fora do governo, ameaçado de cassação e com setores da oposição pedindo o impeachment do presidente Lula?Eu tinha, sim, um pressentimento de que haveria uma grave crise e que o presidente Lula poderia sofrer um processo de impeachment. E disse isso ao presidente. Por duas vezes, em fevereiro e maio, pedi ao chefe de gabinete, Gilberto Carvalho, que marcasse uma audiência para que eu pudesse conversar a sós com Lula na primeira hora da manhã. Alertei o presidente de que, depois do caso Valdomiro Diniz e do que estavam fazendo com o Henrique Meirelles, publicando até o contrato de casamento do presidente do Banco Central, era um sério risco ficar sem maioria nas duas casas do Congresso. Poderíamos sofrer um processo de desestabilização. Era preciso fazer logo a reforma ministerial, aumentar a participação do PMDB, um assunto que já vinha sendo discutido desde o final do ano anterior e só foi resolvido em julho, já em meio à crise. Ele concordava comigo, mas o tempo foi passando... Por duas vezes, em novembro de 2004 e abril deste ano, pensei em sair do governo. Falei sobre isso com o presidente, mas sofri muitas pressões de outros ministros, do PT e das bancadas para ficar.No dia da sua posse na Casa Civil, você relembrou as lutas de várias gerações para que fosse possível aquele momento da chegada do PT e de Lula ao poder. Diante do quadro atual, que esperanças restam para as novas gerações e em torno de que bandeiras é possível mobilizar de novo a população?Eu acredito que se pode e se deve mobilizar a população, principalmente os jovens. Ainda temos uma longa jornada pela frente na luta contra a pobreza, em defesa do meio ambiente, por mudanças na educação, a necessidade de fazermos a reforma política. Pela minha experiência de vida, nas diferentes fases vividas pelo Brasil, e vendo as lutas de partidos de esquerda em outros países, penso que não se pode julgar o PT por esses erros de agora, mas por toda a sua história. Seria como julgar a Igreja toda pela Inquisição. Para mim, nem os sonhos, nem as esperanças acabaram.Às vésperas do teu julgamento pela Câmara, como você se sente? Em que tem pensado nos poucos momentos em que fica sozinho?Eu me sinto profundamente reconfortado pelo apoio que venho recebendo. Evidentemente, estou triste, mas não amargurado, por tudo o que aconteceu. E eu tenho feito uma reflexão profunda sobre os erros que nós cometemos e como posso ajudar a superar esta situação. Minha vida pessoal não mudou. Faço exercícios todos os dias, acabei de ler “A Aventura de Miguel Líttin Clandestino no Chile”, de Gabriel Garcia Marques (a história de um cineasta que consegue escapar do fuzilamento nos anos Pinochet) e agora estou lendo “O Diário de Nina”, de Nina Lugovskaia (o terror stalinista nos cadernos de uma menina soviética). Já li mais de dez livros nesta crise. Vejo filmes em casa, vou à Câmara, cuido da minha defesa. E durmo razoavelmente bem para a situação que estou vivendo. O que você pretende argumentar em seu discurso do dia 23 para convencer a Câmara de que é inocente e por isso não deve ser cassado?Trata-se, como todo mundo sabe, de um julgamento político. Não há provas contra mim. Ao contrário, as CPIs estão chegando á conclusão de que não houve compra de votos e que eu não tive participação nos empréstimos concedidos ao PT. Minha vida foi devassada e nada se provou contra mim. Tentaram envolver até minha família e meus amigos, e nada ficou provado. Muitos políticos e até familiares de vários deputados, inclusive de partidos de oposição, já mudaram de opinião. Você já disse que não abandonará a vida política. Mas, caso seja cassado, de que forma se dará a sua participação?Quero participar do debate político nacional indo a debates, escrevendo, fazendo palestras, ajudando o PT, atuando junto aos movimentos sociais e às ONGs, como sempre fiz. Qual foi o maior acerto e o maior erro do governo Lula? E qual foi o maior acerto e o maior erro do ministro José Dirceu?O maior erro do governo foi não ter feito a reforma política e administrativa logo no início do mandato. O maior acerto está na política externa. O meu maior erro foi não ter saído do governo antes desta crise. E o maior acerto foi ter ido para o governo. A vida é assim...Você já disse que o presidente Lula deve se candidatar à reeleição para defender a sua biografia, o governo e o PT. Mas, caso ele não se recandidate, quais são os outros nomes mais prováveis no campo do PT e da base aliada?No PT, o ministro Palocci, a Marta Suplicy e o Aloísio Mercadante, que são nomes nacionais. Na base aliada, o vice José Alencar, o ministro Ciro Gomes e o governador Roberto Requião.Quais são os teus planos de vôo daqui para a frente? Você já encarou vários personagens que atendem pelo nome de José Dirceu. Qual o papel que você reserva para si mesmo daqui para a frente?Um militante político, agora com quase 60 anos, com menos cabelos e que passou uma grande experiência na vida, ajudando a eleger o presidente da República e participando do seu governo. Mais humilde, mais maduro, espero... Mas, ao mesmo tempo, com a mesma paixão.***Já estava na hora de ir para o ato na Câmara Municipal. As conversas param por aqui. Quem quiser saber mais, pode escrever para o endereço dep.josedirceu@camara.gov.br. Zé Dirceu costuma responder aos e-mails que recebe. Se vai ter mais ou menos tempo para se dedicar à correspondência, na quarta-feira todos vão saber. Se o seu fio de esperança arrebentar, ele já sabe o que vai fazer primeiro: passar alguns dias em alguma praia distante para ditar ao jornalista e escritor Fernando Morais suas memórias de trinta meses de governo. Mas, se depender do seu ânimo, o celebrado biógrafo ainda terá que esperar por um bom tempo. Quarenta anos depois, Zé Dirceu não quer sair de cena. Como a política é, acima de tudo, a arte da representação, ele habituou-se aos palcos da política e reluta em voltar ao anonimato da sua juventude em Santa Rita do Passa Quatro, na divisa de Minas com São Paulo.

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