sexta-feira, novembro 25, 2005

Massacre de Eldorado de Carajás Pará




Pará e
São Paulo
PSDB
trata exclusão social como caso de polícia

Febem virou Carandiru mirim – site nominimoLeonardo Fuhrmann

24.11.2005 Conceição Paganele vai todos os dias ao Edifício Andraus, onde aconteceu um dos maiores incêndios da história da cidade de São Paulo. Ela sai da Cidade Tiradentes, bairro da periferia que pega fogo todos os dias, em um sentido bem mais figurado, mas igualmente dramático. Conceição é presidente nacional da Associação de Mães e Amigos de Adolescentes em Situação de Risco (Amar), entidade que congrega de mães de garotos – como o seu filho Cássio – que estão ou passaram pela Febem (Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor).Nos últimos dias, em seguida à oitava morte de um interno da Febem neste ano, Conceição Paganele ganhou a primeira página dos principais jornais paulistas ao ser apontada pelo governador Geraldo Alckmin, um dos pré-candidatos tucanos à presidência da República, como uma das principais responsáveis pelas 34 rebeliões em diversas unidades da entidade de janeiro até hoje.Ao comentar a rebelião que terminou com a morte de um adolescente e deixou 55 feridos no complexo do Tatuapé (zona leste da capital) na terça-feira, o governador passou adiante a responsabilidade e elegeu os responsáveis por um dos pontos mais vulneráveis de sua gestão, acusando Conceição e Ariel de Castro Alves, coordenador no estado do Movimento Nacional de Direitos Humanos, de incitar os adolescentes a se rebelarem.Vários representantes de entidades de defesa dos direitos humanos se reuniram em apoio aos dois. Entre eles, o representante da Anistia Internacional Tim Carril e o padre Júlio Lancellotti, um alvo já tradicional dos que querem as entidades civis longe da Febem. Disposta a continuar na militância, Conceição Paganele já resolveu que vai acionar o governador na Justiça e lamenta: “Hoje, mais do que nunca, a Febem virou uma espécie de Carandiru mirim”.Nesta entrevista a NoMínimo, concedida na sede da Amar, no Edifício Andraus, a antiga funcionária do almoxarifado de uma administração regional da cidade rememora o caminho que a tornou uma ativista respeitada e ouvida até no exterior, como comprova sua presença, em outubro, numa reunião da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em Washington.

A senhora é responsável pelas rebeliões nas unidades da Febem?O governador Geraldo Alckmin e a sua equipe vivem buscando responsáveis pelo fracasso deles na questão do adolescente infrator. Já teve época que os acusados foram os prefeitos; depois, foi o Judiciário; agora é a minha vez. Eu não sou responsável pelas barbaridades lá dentro nem prometi desativar o Complexo do Tatuapé. Acho que o governo só vai levar a sério o problema do adolescente em conflito com a lei quando o tiver de indenizar as famílias dos torturados e dos mortos das unidades da Febem (A ONG Conectas já conseguiu decisões judiciais favoráveis às famílias de adolescentes mortos sob a tutela estatal). Enquanto eles não sentirem no bolso, não farão nada pelos nossos jovens.O que aconteceu lá dentro, desta vez?Consegui entrar lá na sexta-feira da semana passada e o clima estava muito tenso. Havia diversos internos de todas as unidades em greve de fome, como protesto contra os espancamentos de colegas de duas unidades do complexo. A pedido dos funcionários, conversei com os adolescentes, para acalmá-los. Quando já estava saindo, um diretor me disse que haveria uma boa surpresa na terça-feira, que eu ficaria sabendo quando o dia chegasse. O que aconteceu foi o motim.As facções criminosas que agem nos presídios, como o PCC (Primeiro Comando da Capital), estão dominando as unidades da Febem?Hoje, mais do que nunca, a Febem virou uma espécie de Carandiru mirim. As unidades têm cada vez mais carcereiros, vindos do sistema prisional, e menos educadores. Não estou no dia-a-dia das unidades para confirmar isso, mas há realmente muitos comentários sobre o aumento de celulares nas mãos dos internos. Eles seriam usados em conversas com presidiários. Dizem também que estão ficando mais comuns os hinos e outros tipos de apologia a esses grupos.Por que a senhora é a única fundadora da associação de mães da Febem que continua na entidade?Acho que as pessoas procuram a associação para resolver os seus problemas individuais e acabam saindo porque conseguem resolvê-los por porque perdem a esperança em uma solução. Numa das primeiras reuniões, eu disse que estava me juntando às outras mães não para resolver o problema do meu filho, mas para mudar a Febem. E é por isso que estou aqui até hoje.Em que momento a senhora percebeu que devia lutar por isso?Foi quando o Cássio, meu filho, quebrou os pés ao tentar fugir do complexo do Tatuapé. Ele foi internado no Pronto-Socorro e eu só fiquei sabendo três dias depois, por causa de uma evangélica que ia ao hospital fazer pregação. O Cássio implorou a essa mulher para que ligasse para mim e me avisasse que ele estava internado.Assim que soube, a senhora correu para o hospital?Não foi fácil. Primeiro, eu tive de procurar a assistente social da Febem. Não gosto de assistentes sociais até hoje. Era a maior burocracia. Ela me dizia que eu só podia ver meu filho com a autorização da Febem. No hospital, só queria me deixar vê-lo nos dias de visita da unidade. Eu não entendia como o Estado podia ter o poder de me separar do meu filho no momento em que ele precisava de mim. Na primeira vez que o vi no hospital, o Cássio estava amarrado, com as duas pernas inchadas. Ele sentia muita dor e o medicaram. Até hoje, aos 23 anos, ele diz que, quando saí de lá, trouxe a dor que ele sentia comigo.E a senhora conseguiu ficar com ele lá?Uma mulher do Conselho Tutelar me orientou a pedir autorização ao promotor e ao juiz e eles deram. Aí, com aquele papel na mão, passei a ir lá todos os dias. Ainda assim, o pessoal do hospital me dava canseira. A autorização rodava o prédio inteiro para eu conseguir ver o meu filho, o pessoal me discriminava muito, porque eu era mãe de bandido.Foi sua primeira batalha?Lá, eu conheci uma outra mãe, que também lutava para visitar seu filho no hospital – o Moacir, que hoje está preso. Ele havia sido transferido para o hospital porque estava com tuberculose. Expliquei como eu havia feito e a orientei a fazer o mesmo pedido. Assim, ela e o marido conseguiram autorização para ficar com o filho no hospital até ele melhorar. Os dois se revezavam dia e noite.Mas a senhora já conhecia as leis?Ganhei no Conselho Tutelar um Estatuto da Criança e do Adolescente. No ônibus, me lembrei que o pessoal falava sempre em artigo 12 quando o assunto era drogas e fui procurar o artigo. Na verdade, é a parte do ECA que fala do acompanhamento dos pais aos filhos. (Na verdade, o tráfico de drogas é tratado no artigo 12 da Lei de Entorpecentes, por isso, o número é usado no jargão policial para designar os traficantes.)E a associação começou aí?Depois que o Cássio saiu do hospital, ele foi levado para o Complexo da Imigrantes (na zona sul da cidade, já desativado). Acho que mandaram ele de volta para o Tatuapé porque cansaram de me ver lá na porta insistindo para ver o meu filho. De volta ao Tatuapé, ele foi mandado para a Unidade Educacional 18, que tinha um diretor tão bom, o Rezende, que acabou sendo pressionado pelos demais a sair da instituição. Ele foi fundamental para a nossa organização.Como era a unidade dirigida por ele?As mães só vão à cadeia uma vez por semana, no dia de visita. E a Febem para mim é uma cadeia. Este dia acaba sendo tão aguardado que os internos falam de tudo, menos sobre a realidade deles. Os familiares desconhecem, então, o que acontece lá dentro e não têm como ajudá-los mais efetivamente. Por isso, a unidade 18 era diferente. A gente passou a entrar lá e participar efetivamente da recuperação de nossos filhos. Aprendíamos diversas coisas e íamos lá ensinar aos adolescentes. Todo dia tinha mãe lá dentro e isso mudou o relacionamento entre os internos e entre eles e os funcionários. Não havia violência lá dentro.É assim que se resolve o problema da Febem?Eu acho que a descentralização é muito importante, de uma forma que cada comunidade, cada bairro, seja responsável por recuperar os seus jovens. As pessoas de fora da Febem têm de participar. As poucas unidades pequenas, nenhuma delas, aliás, construída nos mais de dez anos de governo do PSDB, funcionam bem melhor que os complexos.Como acabou aquela proposta da Unidade 18?A única oficina profissionalizante que dá certo até hoje, que é a das padarias, surgiu lá. Mas aquele projeto terminou com a demissão do Rezende, que acabou sendo o marco inicial para a criação da Amar. Dos 90 internos que estavam na unidade, cerca de 50 recebiam a visita de algum familiar. Quando o diretor falou que não ia resistir às pressões e pediria demissão, fomos 32 mães e um pai reclamar com o juiz. Como ele nos explicou que não podia fazer nada, fomos protestar na porta do prédio em que fica a Presidência da Febem.O governo já anunciou a descentralização das unidades. Isso vai resolver o problema da Febem?Mesmo se eles fizerem a descentralização, há outros problemas que não querem resolver e estão até agravando. Eu jamais pensei que a atual presidente, Berenice Maria Gianella, fosse fazer o que ela fez. Como uma mulher do Direito fecha as unidades para a entrada das entidades de Direitos Humanos? Ela veio do sistema prisional e trouxe junto com ela os piores métodos, inclusive, uma equipe de contenção de internos que só serve para agredir e espancar. Ela queria inclusive proibir o acesso de promotores e juízes às unidades, para você ver qual é a mentalidade.É esta mentalidade que precisa acabar?Sabe que a Amar do Rio conseguiu se unir aos funcionários para denunciar a falta de condições nas unidades? Aqui em São Paulo, isso é impossível. O sindicato dos funcionários e as entidades estão sempre em lados opostos. Sempre que acontece uma rebelião, os funcionários saem falando que o problema lá dentro é o número de adolescentes de alta periculosidade, como se o problema não fosse a Febem em si. Temos casos, acompanhados pela Amar, de adolescentes que cometeram atos infracionais gravíssimos e hoje estão recuperados: são pais de família, trabalhadores e estão longe das drogas. A solução do problema passa por pequenas unidades, mas passa também por mudar as características dos profissionais que estão lá e abrir a Febem para a comunidade.Mas a comunidade quer participar da Febem?A periferia já percebeu que está perdendo seus jovens para a violência e para as drogas. E por isso as comunidades desses bairros vão se mobilizar para salvar seus filhos, irmãos e amigos. Nos bairros nobres, acho que a preocupação só vai chegar quando não encontrarem mais garis, eletricistas, encanadores e empregadas domésticas, por exemplo.O problema do seu filho está resolvido?Enquanto houver o fantasma das drogas, eu digo que não. A gente sempre tem medo de uma recaída. Agora, posso falar de drogas porque a ciência mostra que o vício é uma doença. Não podia aceitar que meu filho teria se envolvido com drogas por falta de amor ou por sem-vergonhice. As drogas trouxeram dor e vergonha para a minha casa, mas também serviram para que eu abrisse os olhos para o mundo. Ele trabalha com o irmão em uma tinturaria e está bem, mas a gente sempre se preocupa. Quer até fazer uma cirurgia para corrigir as seqüelas que ficaram no tornozelo, mas eu tenho medo. A prótese entortou porque puseram ele para andar dentro da Febem antes do tempo de recuperação. Porque estava preso, ele não fez fisioterapia e não teve o tratamento indicado.Quando a senhora percebeu algum problema com o Cássio?Ele tinha uns 14 anos e eu comecei a perceber uma mudança no comportamento dele. Ele comia demais e passou a levantar todo dia no horário para ir à escola. Sabe, o Cássio é o caçula dos 5 filhos do meu casamento (Conceição tem um sexto filho, que adotou depois de ter se separado) e era muito manhoso. De repente, ele levantava cedo e saía. Parou de nos olhar nos olhos. No fundo, eu sabia que o problema era a droga, mas não queria admitir.E qual foi a sua reação?Cheguei a ver ele mal, na rua, que nem um indigente. Procurei ajuda, mas me disseram que ele só podia ser internado se quisesse. Sei que se internassem todos os viciados que a família pedisse, muitos iriam para as clínicas sem necessidade. Mas o caso dele era grave, embora ele não quisesse ser tratado. Disse aos conselheiros tutelares que, quando ele matasse alguém ou roubasse algo, ninguém ia perguntar se ele queria ou não ser preso.E foi o que aconteceu?Ele tinha 15 anos quando foi preso com um carro roubado. Foi a primeira vez que tive a polícia na porta da minha casa. Vi meu filho preso e aquela bagunça na porta de casa. Ele foi preso pela Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, uma tropa especial da Polícia Militar temida na periferia de São Paulo pelos casos de violência que envolvem freqüentemente a sua atuação). Depois de um tempo, ele conseguiu fugir e aluguei uma casa em outro bairro e fui morar com ele. Mas não consegui mantê-lo muito tempo longe das drogas.É verdade que vocês foram vítima de uma extorsão?Faz seis anos e acho que não tem mais perigo de dizer o que houve. Na época, não denunciei porque temia pela vida da minha família. Ele foi preso de novo com um carro roubado e a vizinha viu e me avisou. Fui direto para o distrito policial lá da Cidade Tiradentes e nada dele chegar. Meu outro filho viu o Cássio com os policiais militares na minha casa, tentando negociar a liberdade dele. Chamados pelo Copom (Centro de Operações da Polícia Militar), os policiais o levaram para a delegacia. O delegado passou a nos extorquir, dizendo que não ia prendê-lo, mas queria dinheiro para soltá-lo. Eu até preferia que o Cássio fosse preso, para insistir em um tratamento contra drogas, mas a polícia havia decidido que eu teria pagar e ele seria libertado.A senhora teve de fazer o acerto (pagar aos policiais para que eles não cumpram a obrigação deles)?Lembro até hoje: eles queriam R$ 3 mil. Procurei um investigador que era conhecido nosso para ver se ele podia ajudar e a coisa piorou. Passaram a exigir R$ 4 mil, porque ele tinha de receber o dele também. Meu outro filho chegou até a oferecer um carro que ele tinha, mas os policiais não quiseram. Era dinheiro na mão. Como não tínhamos nada, meu filho conseguiu R$ 2 mil emprestados na empresa que trabalhava e foi quanto demos pela liberdade do Cássio.E o acerto resolveu o problema?Foi um momento muito difícil porque o Cássio foi preso novamente naquela mesma semana e não tínhamos dinheiro para fazer um novo acerto. Além disso, meu outro filho foi demitido da empresa e saiu com uma mão na frente e outra atrás, porque o dinheiro a que ele tinha direito havia sido emprestado para pagar o suborno aos policiais. Não bastasse, o investigador que chamamos passou a dizer que os policiais militares haviam passado os civis para trás e ficado com todo o dinheiro. Por isso, queria que nós pagássemos mais. Ele acabou assassinado alguns meses depois em um bar lá da Cidade Tiradentes.Além destes problemas, a senhora deve ter presenciado cenas terríveis. Alguma delas a marcou?Eu me lembro de uma mega-rebelião no Complexo do Tatuapé, em 1999 ou 2000. A polícia invadiu e os internos foram colocados todos nus nos pátios das unidades. Tinha uma mãe perto de mim que via o filho e berrava desesperadamente. Ela babava, o corpo dela ficava mole e não conseguíamos mantê-la em pé. A mulher desmaiava. Outro momento foi aquele espancamento que aconteceu na Unidade 41, no Complexo da Vila Maria (zona norte da capital), no começo deste ano. Quando chegamos lá com o promotor Wilson Tafner Júnior, um homem de uma dedicação impressionante, todos aqueles 150 internos estavam no mais absoluto silêncio. Foi naquele dia que o diretor da unidade e diversos funcionários foram presos por tortura. Eles permitiram até que funcionários afastados por tortura entrassem de novo no prédio para agredir os adolescentes.Além do trabalho com os internos, a Amar tem alguma participação na prevenção à criminalidade?Criamos um projeto social lá na Cidade Tiradentes, que atualmente atende 130 famílias. Damos apoio psicológico, alfabetizamos adultos, temos uma brinquedoteca e oficinas de caratê e capoeira. Vamos também começar uma oficina de costura, para profissionalização das famílias. Além disso, a Amar está se espalhando pelo país. Temos regionais no Rio Grande do Sul, no Distrito Federal, no Piauí e no Rio de Janeiro. Há conversas também para criar a Amar na Bahia, em Pernambuco e no Ceará. Já fui procurada até por uma jornalista que quer levar a experiência para a Ásia.

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