segunda-feira, dezembro 05, 2005





É a quinta-essência da covardia entrando nas casas brasileiras disfarçada de cinema de lazer. Uma propaganda odiosa, racista e intolerante cujo paradigma são os filmes nazistas de divulgação dos feitos e qualidades do regime hitlerista e da “raça ariana” na década de 30. Em pensar que o assinante de TV fechada ainda paga para ser ofendido com programação tão infame!

A polícia do mundo seqüestra e tortura

A violação dos direitos humanos é uma política deliberada do governo Bush. Proliferam os “locais negros”, centros de interrogatório sob tortura criados e mantidos pelos norte-americanos, nos quatro cantos do planeta.
“A vida sendo o que é, sonha-se com vingança.”Paul Gauguin (1848-1903)
Quem disse que a arte é só fruição estética? Em se tratandode Franz Kafka é muito mais que isso. Em 1919, o escritor tcheco publica em alemão um pequeno conto chamado “In der Strafkolonie” (traduzido para “Na Colônia Penal”), uma alegoria do futuro regime fascista, ainda um ovo no ninho da serpente. A arte literária tem disso, através de uma elipse estética consegue enxergar através do cipoal de fatos e situações ainda pouco nítidas para o nosso juízo pedestre. O artista verdadeiro, como Kafka, voa; nós, apenas caminhamos. Não raro, para trás. Nessa pequena grande obra, o autor cria a atmosfera de horror de uma colônia penal onde os presidiários sofrem torturas bárbaras e sádicas, agravado pelo completo desconhecimento da natureza dos seus crimes. Quando o feitor-chefe da colônia penal morre, seus acólitos erguem uma lápide sobre seu túmulo, onde se lê:
“Aqui jaz o antigo comandante. Seus adeptos, cujos nomes por ora devem permanecer secretos, dedicaram-lhe esta pedra tumular. Dentro de alguns anos, quando seus simpatizantes forem mais numerosos, ele voltará a se erguer e reconquistará a colônia. Tende fé e esperai.”
Cidade de Praga, ano de 1919, literatura de ficção do escritor Franz Kafka (1883-1924).
Corte rápido.
Ilha de Cuba, Guantánamo Bay, Base Militar dos Estados Unidos, relatório da Anistia Internacional (AI). Dos setecentos detidos que haviam na base americana, hoje permanecem cerca de quinhentos presos, todos vindos (a manu militari) de países árabes, todos suspeitos de atividades terroristas. Há escassas informações sobre as condições dos detidos em Guantánamo. Uma coisa se sabe, todos os detidos não tem direito a defesa e estão sofrendo maus-tratos permanentes e surras periódicas. Atualmente, 210 detidos estão em greve de fome. Reivindicam o direito a julgamento segundo as leis internacionais.
A agência de notícias Associated Press, em primeiro de novembro último, contabilizou 13.900 pessoas presas no Iraque, pelas forças americanas de ocupação. Desde o começo da guerra ao terror, há quatro anos, os americanos já prenderam 82.400 pessoas no Afeganistão e no Iraque. Esses dois países ocupados estão coalhados com dezenas de campos de concentração montados e mantidos pelas tropas militares do governo Bush. Os episódios da penitenciária de Abu Ghraib, no Iraque, com humilhação e tortura sádica contra prisioneiros, não são absolutamente um caso isolado. É apenas o mais conhecido.
Somente em Cabul, no Afeganistão, existem cerca de 20 centros de detenção, interrogatório e tortura mantidos pela CIA, entre os quais o temido “Fosso de Sal”, antiga planta fabril no centro da capital afegã, cujo governo é um boneco de ventríloquo dos falcões da Casa Branca. Nos “papers” do Pentágono e da CIA esses endereços macabros são referidos como “locais negros”.
A CIA recentemente sofreu uma guinada na sua estratégia operacional. Saiu George Tenet, entrou Porter Goss, como diretor-geral. O primeiro manteve a tradição de inteligência civil da Companhia; agora com Goss, a CIA assume um indiscutível perfil de inteligência militar, agressiva e truculenta, inspirada pelo Pentágono. É o resultado mais visível da intensa luta interna que – comenta-se – é travada hoje nos círculos do poder de Washington, depois da defenestração do secretário Collin Powel, considerado muito moderado pelos “ultras”. Comentadores sinceros suspeitam que o presidente George W. Bush sequer esteja entendendo o que se passa a sua volta, haja vista sua embotada acuidade política e a simplória concepção de mundo, marcada sobremaneira por uma fé religiosa de auto-ajuda e utilitarista.
A todas essas, o vice-presidente e falcão de vanguarda, Dick Cheney, tem assumido um tom impetuoso na luta interna da Casa Branca. Na última semana pronunciou-se sobre as discussões no Congresso cujo tema é a possível retirada das tropas do Iraque, nesse calão: "Esse revisionismo é do tipo mais corrupto e sem-vergonha. Não há lugar para isso na política americana, muito menos no Senado dos EUA", ameaçou Cheney em discurso salgado de ódio no American Enterprise Institute, vaticano do conservadorismo ianque.
No início do corrente mês de novembro o influente diário The Washington Post fez graves denúncias sobre atividades clandestinas da CIA. Informava que a agencia mantém uma rede clandestina de centros de interrogatórios e torturas em pelo menos oito países, simultaneamente, incluindo Tailândia, Afeganistão, diversos países do Leste europeu e a famigerada base militar de Guantánamo Bay, bem como em inúmeras outras bases militares espalhadas pelo mundo todo. Tais bases fazem parte da estratégia geopolítica dos EUA, e mesmo com o fim da Guerra Fria continuam sendo implantadas e mantidas, tanto por governos republicanos quanto por democratas. Os países hospedeiros de bases militares americanas recebem compensações financeiras e cooperação militar-tecnológica (armamentos, munições, capacitação de militares e policiais, equipamentos de segurança, etc).
A implantação dos centros clandestinos de informações vem desde 2001, e inclui o transporte dos suspeitos de terrorismo em pequenos aviões civis que pousam em aeroportos sem declarar seu objetivo policial-militar que atenta contra os direitos humanos. Os sinistros vôos da CIA, realizados também desde 2001, teriam acontecido, segundo o “Post”, na Espanha, Portugal, Noruega, Suécia, Dinamarca e Islândia. O Conselho da Europa, que fiscaliza o respeito aos direitos humanos, está investigando as denúncias do insuspeitável jornal americano. A ONG internacional Human Rights Watch confirmou as denúncias do Post.
O ministro da Justiça dos EUA, Alberto Gonzales, entrevistado sobre o assunto pela rede CNN, foi ardiloso quanto às denúncias do Post. "Não vou confirmar ou negar. Normalmente não falamos sobre atividades de inteligência. O que posso dizer é que o presidente encarregou a administração de fazer o que pudermos para proteger os EUA contra outro ataque interno...”. A CIA chama essa prática explícita de seqüestro seguido de cativeiro em local distante e clandestino, e tortura para obtenção de informações de suspeitos de "rendição extraordinária", evidentemente um eufemismo para representar a impostura da selvageria e dos baixos instintos alçados à condição de “política de segurança do Estado”.
A organização Human Rights Watch acusa o governo Bush de manter prisioneiros na Romênia, Base Aérea Mihail Kogalniceanu, perto da cidade portuária de Constanta, junto ao Mar Negro. Os suspeitos de terrorismo seriam levados para essa unidade militar de 320 hectares, verdadeiro enclave americano em solo romeno, via um aeroporto situado na Polônia. Como os aviões que transportam os seqüestrados são de baixa autonomia de vôo, necessitam reabastecer em aeroportos de trânsito, mesmo que para tanto violem a legislação internacional de transporte de passageiros (de resto, involuntários) e enxovalhem o estatuto universal dos direitos humanos.
O governo Bush comete crimes em série nos quatro cantos do mundo. Classificá-lo de fascista “tout court” é, talvez, uma demasia conceitual. Mas tem efetivamente muitos elementos fortes que o recomendam na direção do fascismo. É um “Estado de comando” (decalcando uma expressão de Franz Neumann), com notas fascistas, algumas, e totalitárias, outras; se encontrando num plano inclinado que resvala para um Estado policial-militarista de novo tipo. Hoje, de fato, é a polícia do mundo. O presidente da República é eleito sob uma legalidade discutível, com uma legitimidade sob suspeição, até que no “11 de Setembro” é alçado pelo destino à condição de condutor do caos, promiscuamente cercado por interesses em descenso na corrida econômico-tecnológica mundial (petróleo e armamentos) com operadores políticos organicamente ligados a esses interesses anacrônicos.
Neste sentido, é justo chamá-los de usurpadores do poder de Estado – prova viva de que a democracia americana é um vulgar verniz de superfície. É favorecido no plano internacional por não ter um contraponto de equilíbrio militar como se verificava durante a Guerra Fria, com a então existência da União Soviética. E se prevalece dessa condição como um fator de expansão imperial num mundo perplexo e encolhido, onde a crise de realização do capital também pode funcionar como vetor de estímulo a arranjos institucionais proto-fascistas com o endosso cooperativo do capital financeiro de papel (cada vez mais de papel). Alguma semelhança com a Alemanha da década de 20, do século passado?
A televisão fechada (Net) exibe atualmente uma série de filmes cujo nome é “Over There” (Telecine Premium, quintas, 22h). Uma produção americana que retrata a vida dos soldados de Bush no Iraque. Propaganda ideológica pura – e grosseira. Fortes e rosados soldados americanos rendem um infeliz e esfarrapado iraquiano (não é possível saber se é soldado ou miliciano nacionalista), ordenam que fique de mãos erguidas e joelhos levemente dobrados, ainda que de pé (posição extenuante). O iraquiano reage e passa uma rasteira num dos soldados, que cai. Inútil. Os outros americanos se enfurecem e ameaçam castigá-lo com a morte. Um dos soldados, mais friamente, diz que não se deve matá-lo, é preciso atingí-lo mais no fundo, por que “a morte para essa gente é um prêmio”, vamos procurar a sua família, seus filhos, pais, parentes e liquidar um a um, na sua presença, então estaremos vingados pela sua ousadia. Este é só um exemplo da sordidez da produção.
A naturalização da brutalidade contra o Outro, legitimado por um imaginário implícito de que o “11 de Setembro” está sendo vingado pelos “nossos rapazes”. Esse subtexto cínico às vezes é mais gritante do que as imagens realistas da tela. [A razão iluminista – quem diria – acabou no Irajá!]
É a quinta-essência da covardia entrando nas casas brasileiras disfarçada de cinema de lazer. Uma propaganda odiosa, racista e intolerante cujo paradigma são os filmes nazistas de divulgação dos feitos e qualidades do regime hitlerista e da “raça ariana” na década de 30. Em pensar que o assinante de TV fechada ainda paga para ser ofendido com programação tão infame!
Kafka e seus personagens foram de fato premonitórios. Os adeptos do Comandante tiveram fé e souberam esperar. Agora, o seu fantasma pode se levantar e reconquistar a colônia. As condições objetivas estão maduras, como se dizia em outra conjuntura.

Cristóvão Feil é sociólogo e ensaísta
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