quarta-feira, dezembro 28, 2005
“Anti-racismo, o comunismo do século XXI”
Se formos tomar 2005 pelas expressões, muitas palavras e atitudes passaram despercebidas, mas pelos seus significados revelam a essência de pontos de vista que, de repente, se tornam hegemônicos. Nesse aspecto, Alckmin e Serra merecem atenção.
Para Bertold Brecht, os excessos revelam a essência de um fenômeno. Não são apenas exageros. Uma palavra exorbitante que deixamos escapar não é apenas “um mau momento”, um “lapso”, como Freud já nos ensinou. São reveladores de mecanismos que temos controlados, até que eles superam essa barreiras e nos expõe dura e cruamente.
Tantas vezes extremismos de direita são lançados ao debate e tomados como exorbitâncias pelo consenso existente, mas começam a semear novos consensos, embrionariamente, correspondendo ao que muitos setores conservadores já pensam, mas não se atrevem a expressar. Questões que começam a dar volta na cabeça de pessoas que nunca haviam se atrevido a pensar naquilo, mas de repente se colocam o problema: “E por que não?” Dali a algum tempo se tornam consenso.
O caricaturista francês Wolinski, o mais expressivo dos movimentos libertários de maio de 68, costuma colocar a dois franceses conversando em torno de uma bebida, numa mesa de bar, quando um deles começa a interpelar o outro sobre o significado de certas coisas e se desata, a partir do suposto senso comum, uma escalada de posições racistas, nazistas, embutidas em cada um, até que eles fazem um brinde às piores posições, às mais atentatórias aos pontos de partida aparentemente consensuais, dos quais partiam, fundados na “liberdade, igualdade e fraternidade”.
Se formos tomar este rico ano de 2005 pelas expressões, podemos ter palavras e atitudes muito significativas, que podem ter passado despercebidas, mas que pelo seu significado apontam nessa direção: exageros que revelam a essência de pontos de vista e que, de repente, se tornam hegemônicos. O prefeito de São Paulo foi responsável por uma decisão tão ou mais racista do que aquela do atual prefeito do Rio, quando decidiu jogar creolina nas calçadas, para impedir que os pobres dormissem nela. Uma imitação de Los Angeles, onde se criaram bancos de espera redondos nos pontos de ônibus, para impedir que alguém tentasse se deitar neles.
O prefeito de São Paulo bateu o recorde de mentalidade mercantil do ano, ao autorizar a colocação de publicidade nos uniformes das crianças das escolas municipais. José Serra e Geraldo Alckmin, que estão em disputa para ver quem ganha as graças do grande empresariado paulista para se lançar à campanha presidencial pelos tucanos, concorrem com atitudes cada vez mais mercantis e repressivas – na terceirização de hospitais, na repressão à Febem, na colocação de rampas que impedem os pobres de dormir embaixo dos viadutos etc.
Mas essa mercantilização dos uniformes das crianças é inovadora, passou de todos os limites conhecidos até aqui em matéria de mentalidade dominada pelo dinheiro, não importa a que preço. Logo acontecerá o mesmo com os uniformes dos médicos e enfermeiras dos hospitais públicos, até que eles mesmos, candidatos tucanos, colocarão bonés com propaganda dos seus patrocinadores – bancos, telefonias, bebidas, indústrias de armamentos –, quando forem ser entrevistas pelas televisões – como fazem jogadores ou treinadores de futebol ou quando forem dar entrevistas coletivas.
Porém, se formos selecionar palavras significativas, que revelam espírito racista, as do banqueiro e senador do PFL Jorge Bornhausen merecem ser destacadas como a frase do ano. A revelação da disposição de “acabar com essa raça (sic) por 30 anos”, numa referência aos petistas, é dessas expressões reveladoras do que pensam os tucanos-pefelistas em privado e que, de repente, um deles, em um delírio verborrágico, um desarranjo intestinal lingüístico, revela grande parte deles pensa. Querem “acabar com essa raça”: tanto o “acabar” como o “raça” revelam as disposições malthusianas das elites brancas brasileiras. Ganhou como a frase mais racista do ano em um país racista, mas que confessa pouco essa atitude, a ponto de correr privadamente a piadinha que reflete essa mentalidade: “No Brasil não há discriminação racial, porque os pobres conhecem seu lugar”. (sic)
Essa confissão de Bornhausen se insere no novo pensamento neoconservador (neocom, conforme o chama a imprensa) que corre pelo mundo afora, a partir da direita bushiana – e que tem na revista Veja e seus colunistas suas principais sucursais no Brasil.
O francês Alain Finkielkraut acaba de declarar – ao estilo do banqueiro pefelista – que “o anti-racismo será no século XXI o que o comunismo tinha sido no século XX”, isto é, na sua visão, uma ideologia totalitária e repressiva, que deve ser combatida a todo custo, prioritariamente. Afirma esse personagem – que só é chamado de filósofo porque vivemos tempos em que a mídia se dá o direito de elevar alguém à categoria de “filósofo”, entrevistando-a em suas páginas, amarelas, vermelhas ou negras – que os imigrantes detestam a França, não gostam de trabalhar, “querem dinheiro e roupas de marca”.
Retomam-se na França – querendo inseri-la nos livros escolares, como nos EUA e até aqui no Rio de Janeiro – a teoria criacionista no lugar das teorias evolucionistas –, assim como a tentativa de propagar o discurso da extrema direita sobre “as contribuições positivas do colonialismo”, que teria sido uma bendição para a África, um marco de civilização no meio da barbárie.
Esse é o combate para o qual apontam os neocons dos EUA, os da França e os caboclos: atacar o anti-racismo como atacaram o comunismo. E as reações dentro da esquerda foram pequenas diante da brutalidade desses ataques por aqui. Não se pode ser de esquerda sem priorizar a luta contra a direita e a extrema-direita, em todas as suas expressões: imperialismo, guerra, capital financeiro, super-exploração do trabalho, racismo, repressão, tortura, discriminação.
Que as polêmicas dentro da esquerda se subordinem a esse combate maior. O direito de polemizar dentro da esquerda deve ser conquistado pelos que concentram suas energias e sua capacidade de luta, inclusive teórica, contra a direita e a extrema-direita. Assim se forja a unidade da esquerda contra os seus grandes inimigos. Defender o povo contra esses monstros deve ser tarefa prioritária para a esquerda.
Emir Sader, professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), é coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj e autor, entre outros, de “A vingança da História".
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