sábado, dezembro 10, 2005


Do século 15 ao século 21: os “lupions do Paraná” e a questão da terra, no Brasil

“Em tese recente, muito apropriadamente intitulada "Sobreviventes do Extermínio", a antropóloga Carmen Lucia da Silva descreve a lancinante história de como os índios Xetá foram varridos do noroeste do Paraná no início dos anos 60 do século 20, e dizimados.
Pela memória privilegiada de oito dos doze índios Xetá sobreviventes conhecidos, instigados pela pesquisadora, esse caso de extinção de uma sociedade indígena, no Brasil vai-se traduzindo no avanço implacável de tratores, moto-serras, pastos, fazendas, colonização em massa, na fome, na aflição com os raptos de suas crianças, com as mortes por envenenamento, por incineração propositada de comunidades inteiras, por doenças infecciosas, com as corridas quase diárias atrás de novos esconderijos na mata, numa réplica indígena do desespero dos judeus caçados pela Gestapo que faziam a vida à noite, na tentativa de se tornarem invisíveis – enfim, numa agonia que se arrastou por dez longos anos.
A ‘proteção’ do Estado no caso dos Xetá resumiu-se a umas poucas e tímidas tentativas, logo abandonadas, de localizar os Xetá em sua fuga alucinada pela floresta. O Serviço de Proteção aos Índios não quis ou não pode ir contra os desígnios do então homem forte do Paraná, o governador Moysés Lupion. Quando por fim o Estado não podia mais negar a existência dos Xetá, ensaiou morosamente uma tentativa de reserva protetora (por ironia, a região de Sete Quedas, também já extinta). Antes que os acertos burocráticos fossem feitos, a sociedade Xetá já não existia mais.”[1]
Tudo isso, se poderia pensar, aconteceu no século passado; que, de lá até hoje – são mais de 50 anos! –, a coisa mudou, o Brasil democratizou-se ou, no mínimo, civilizou-se. Ledo engano.
Para tudo quanto tenha a ver, no mínimo, com a posse da terra, no Brasil, esse passado macabro está mais vivo e ativo do que se pensa. Basta, por exemplo, ler o Jornal do Brasil, da semana passada, 29/11/2005, e ver que uma tal de “CPI da Terra” aprovou por 12 votos a 1 um ‘relatório’ final pelo qual transforma em crime hediondo o saque ou invasão de propriedade rural; pede que a ocupação de terra improdutiva seja enquadrada como ato terrorista; e pede o indiciamento de oito pessoas, dentre as quais os cinco coordenadores nacionais do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João Pedro Stélide, João Paulo Rodrigues, José Rainha, Jaime Amorim e Gilmar Mauro (texto em http://jbonline.terra.com.br/extra/2005/11/29/e29113568a.html).
Assim como o extermínio da sociedade Xetá, nos anos 60, foi assinado por um Governador Lupion (Moysés, 1947-1951), assim, ainda, na primeira década do século 21, a tentativa de exterminar o MST está, ainda, assinada por um Deputado Lupion (Abelardo, PFL-PR), neto, talvez filho, do exterminador da sociedade brasileira autóctone dos Xetá -- pra ficarmos só nesse crime, já completamente documentado e provado.
Não se trata, portanto, de “ódio”, como dizem alguns, embora algum ódio racial esteja também envolvido aí, perverso e doentio, como o manifestou o Senador Bornhausen (PFL-SC).
A questão da terra, no Brasil, é uma longa história, com longuíssima ‘folha corrida’ de crimes e mais crimes. Hoje, essa 'folha corrida' se manifesta em planos, projetos e leis, só muito superficialmente postos, no século 21, como se fossem ‘questão parlamentar’. A questão da terra, no Brasil, não é questão parlamentar e não está posta em termos parlamentares.
A questão da terra, no Brasil, ainda não é sequer questão republicana: ainda é monárquica e imperial, e plenamente 'colonial', quer dizer, ainda é encaminhada como “assunto de família” -- e de algumas poucas famílias grandes proprietárias de terras, que continuam representadas no Parlamento Brasileiro. Não se trata de "ódio" e inconsistência, portanto. Os ruralistas têm projeto e trabalham com método, organizadamente, programaticamente.
Os ruralistas tem projeto político super consistente e longamente amadurecido. Por isso os ruralistas são tão eficientes. Nós não temos, ainda, um projeto que se oponha ao projeto dos ruralistas. E por isso a resistência que nós apresentamos fracassou tão completamente, na discussão na CPI da Terra. A luta pela terra, no Brasil, é uma luta política que todos temos de re-aprender a equacionar adequadamente, para encaminhá-la adequadamente e, afinal, começar a vencê-la.
É a minha opinião.

[assina] Caia Fittipaldi (dos Lingüistas Brasileiros para a Democracia/ Universidade Nômade / Campanha “Nenhum Brasileiro sem Resposta-na-ponta-da-língua, pra Responder à Folha de S.Paulo / Tricoteiras Unidas / Mães do Planalto / Gaviões da Fiel / PCdoB, Distrital Pinheiros-Butantã)
[1] “Uma crítica da desrazão indigenista”. Alcida Rita Ramos. “Mesa Redonda Movimentos Indígenas, estruturas estatais e e organismos transnacionais”, organizada por João Pacheco de Oliveira Filho, XXII Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, 27-31 de outubro de 1998. Na Internet, em http://www.unb.br/ics/dan/Serie243empdf.pdf

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