sábado, outubro 08, 2005


ESPETÁCULO DE HORROR

Mortos e pornografia no novo escândalo envolvendo ação dos EUA no Iraque Correram mundo as fotos dos abusos e torturas praticadas pelas forças americanas na prisão de Abu Ghraib. A pirâmide de detentos iraquianos nus, a soldado Lynndie England puxando um deles, também nu, por uma coleira, a exposição de genitais, a humilhação escrachada - o pacote gráfico foi um choque que ainda reverbera. Mas há pior. Há quase um ano soldados dos Estados Unidos aquartelados no Iraque e no Afeganistão enviam para um site da internet fotos de "inimigos" decapitados, decepados, mutilados, crivados de balas ou esmagados. Quanto mais desfigurados melhor. Em troca, obtêm acesso gratuito ao material pornográfico do site, especializado em veicular fotos eróticas amadoras. Ontem, o site, chamado NowThatsFuckedUp.com (NTFU), estava indisponível e trazia uma mensagem dizendo que a repercussão das notícias sobre as imagens fez com que a audiência aumentasse muito e o administrador do site -que tenta justificar a publicação das imagens como expressão da liberdade patriótica "americana"- resolveu fazer um "upgrade" na página e promete colocá-la de volta no ar nas próximas 24 horas. Uma das imagens do site de Chris Wilson foi reproduzida num blog italiano Tudo começou quando Chris Wilson, um jovem empreendedor de Lakeland, Flórida, lançou-se na internet solicitando a interessados que contribuíssem com fotos e vídeos eróticos de suas mulheres ou namoradas. Queria fazer um site pornô com material estritamente amador, pessoal, real e caseiro. Foi um sucesso. Em pouco tempo tinha cerca de 150 mil participantes, um terço dos quais ligados às Forças Armadas. Segundo declarou em entrevista a um jornal da Califórnia, a soldadesca apenas reclamava da dificuldade em pagar pelo acesso ao serviço. Daí nasceu a idéia de lhes oferecer acesso gratuito em troca de fotos da guerra igualmente amadoras, pessoais, reais e caseiras. E o que começou com um fórum de material genérico recebido da frente de combate acabou se desdobrando em outro, intitulado Fotos Escabrosas. Descrição para o desavisado: "As fotos deste fórum são enviadas por soldados americanos servindo no Iraque e Afeganistão. São um tanto sangrentas. Por isso, se você se choca facilmente ou tem problemas com terroristas mortos, não entre nesta página". A partir daí entra-se num universo demente, onde é difícil saber qual a aberração maior - se são as imagens ou as legendas que as acompanham. Ao lado do que resta de uma cabeça estraçalhada por uma arma calibre 50, o comentário: "Entrei nesta página para me masturbar". Observação do soldado que transmitiu a foto de um cadáver com os miolos expostos: "É assim que todo iraquiano deve acabar". Títulos de outras cenas indescritíveis: "Morra, haji, morra", "Iraquiano fervido", "Não se meta com os americanos", "Mais alguns insurgentes despachados para se explicar com Alá". Comentário para a foto de seis fuzileiros navais se divertindo com os restos carbonizados de um cadáver a seus pés: "Esse cara teve um dia ruim". Enquanto um dos freqüentadores do fórum reclama da falta de "cadáveres frescos", outros participam de concursos para ver quem dá o melhor título às cenas mais perversas. A foto de uma jovem caída na rua, com a perna arrancada por uma mina, e a vagina exposta, perfeitamente enquadrada, rendeu um trocadilho. Não se tem notícia de escambo semelhante em guerras passadas. Mas no passado também não existia a fusão entre câmera digital, internet e culto ao reality show, que hoje incentiva e permite a qualquer soldado alimentar eventuais desvios, fantasias ou taras. Não existe dado confiável quanto ao número de recrutas americanos que fornecem imagens para a galeria de horrores do site. Mas mesmo que seja apenas um punhado de desajustados em meio aos 130 mil homens e mulheres das forças de ocupação americanas no Iraque, o caso NTFU (sigla pela qual o site é conhecido) não brotou do nada. A rigor, ele pode ser visto como a manifestação mais aberrante e perversa da cruzada patriótico-maniqueísta fabricada pelo presidente George W. Bush para justificar sua guerra contra o eixo do mal. Convenção proíbe fotos do gênero Um governo que proclama seu direito de empreender uma faxina moral no resto da Humanidade acaba produzindo faxineiros à altura do desvio original. O sinal de que, nesta guerra, as Forças Armadas dos Estados Unidos se consideram acima da lei foi dado logo na partida, com o encarceramento totalmente irregular de suspeitos na base de Guantánamo. Daí para as obscenidades praticadas por militares americanos nos porões de Abu Ghraib foi um passo. E um incentivo para que soldados psicologicamente desestruturados vejam em cada iraquiano um pedaço de carne a ser abatida. Para o presidente Bush e a mais alta hierarquia militar dos Estados Unidos, a Convenção de Genebra, que há 55 anos regulamenta o tratamento a ser dado a prisioneiros de guerra, não se aplica às centenas de suspeitos de Guantánamo, seqüestrados pelas tropas americanas na primeira fase da guerra. Por que, então, um recruta do interior do Idaho despachado para a fornalha iraquiana deveria conhecer e respeitar os artigos 15 e 17 da Primeira Convenção de Genebra, além do artigo 34 do Protocolo Adicional de 12 de agosto de 1949, que trata da Proteção às Vitimas de Conflitos Armados Internacionais? Os textos da convenção claramente proíbem a publicação desrespeitosa e dessacralização de imagens dos mortos. E foi o próprio secretário de Defesa americano, Donald Rumsfeld, quem recorreu a estes textos para denunciar a TV árabe al-Jazeera por divulgar imagens de três fuzileiros navais capturados e mortos em 2003. Mas foi o mesmo governo Bush que produziu e divulgou o videoteipe dos cadáveres seminus e crivados de balas de Uday e Qusay, filhos de Saddam Hussein, em julho daquele ano. Detalhe mostrado no vídeo: um saco plástico contendo a parte inferior da perna de Uday, com pinos e grampos metálicos de uma cirurgia antiga, expostos. Rumsfeld defendeu a divulgação das imagens Na época, Rumsfeld defendeu a divulgação das imagens por se tratar de "indivíduos particularmente cruéis. E para que o povo iraquiano possa ver que estão mortos". O caso gerou indignação mundial e levou o jornal inglês "Daily Mail", conservador e partidário da guerra, a indagar: "É este o comportamento de uma nação civilizada? A exibição como troféu de um inimigo vencido não seria uma manifestação de triunfalismo indecente, que evoca barbarismos medievais?" No caso das fotos enviadas ao site pornográfico, é bastante improvável que ninguém no Pentágono tenha conhecimento dos horrores circulando pela Internet. Mas até agora, a única advertência oficial sobre veiculação de material digital omite o essencial. Segundo memorando do chefe do Estado-Maior do Exército, Peter Schoomaker, distribuído mês passado, soldados que trocam fotos do Iraque pela internet colocam em risco a "opsec", ou "segurança operacional" da guerra. Caixa-preta de Guantánamo ainda fechada A divulgação de "táticas, técnicas, procedimentos e vulnerabilidades do sistema de armamento" usado pelas Forças Armadas abriria uma brecha para o inimigo. Nenhuma menção ou reprimenda ao rompimento de normas fundamentais de civilidade. A brecha temida por Schoomaker é irrelevante para o curso da guerra. O que existe é um conjunto de comportas mal represadas que estão prestes a serem arrebentadas com fúria maior do que as águas de Nova Orleans. Dois dias atrás, o juiz Alvin Hellerstein, de Nova York, encerrou longa batalha jurídica envolvendo fotos ainda inéditas de abusos em Abu Ghraib. Pela argumentação do chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, Richard Myers, a divulgação desse material representaria o risco de inflamar o mundo islâmico e levar hordas de jovens muçulmanos a se juntar às fileiras terroristas da al-Qaeda. Hellerstein deliberou pela liberação do material, afirmando que terroristas não precisam de pretextos para aderir ao terror. Por enquanto, a caixa-preta dos porões de Guantánamo ainda permanece fechada. Mas é inevitável que seja aberta algum dia, somando-se a outros Abu Ghraibs e à multiplicação de sites semelhantes ao NTFU, que já começam a pipocar. O retrato que emerge desse mosaico de imagens é o de uma nação afundada no esforço de guerra mais neurastênico de sua História. De um lado proíbe a divulgação de fotos de seus soldados mortos ou gravemente feridos, tornando-os quase clandestinos. Sequer os já quase 2 mil caixões cobertos com a bandeira americana podem ser mostrados ao povo americano, "em respeito aos sentimentos da família e da nação". De outro lado, leva os recrutas despachados para a guerra a querer furar o bloqueio da higienização do horror a qualquer custo. Um dos grandes atrativos do site criado por Chris Wilson é convidar recrutas a mostrar a guerra como eles a vêem, "e não pelas lentes da CNN ou coisa que o valha". Até agora, mais de um milhão de americanos já serviu no Iraque e no Afeganistão. Destes, estima-se que 341 mil já tiveram de servir duas vezes na frente de combate. E correm o risco de uma terceira convocação, numa média de dois mortos por dia. Segundo o general Michael Rochelle, comandante de Recrutamento do Exército, o país está passando pela sua mais grave crise de reposição de pessoal uniformizado desde que o serviço militar passou a ser voluntário em 1973. Segundo levantamento feito pelo próprio Exército, o número de irregularidades no sistema de recrutamento já chega a 1.118 e explica parte dos desvios de comportamento registrados pelos soldados na frente de combate. Um em cada cinco agentes de recrutamento que percorrem as regiões mais atrasadas do país altera fichas policiais, atestados de doenças mentais e impedimentos físicos de seus recrutados para poder preencher a cota necessária. "Hoje em dia, as únicas pessoas que querem se alistar têm problemas - ou de saúde, ou com a polícia, ou com drogas", admitiu um recrutador entrevistado pelo "New York Times". Ao longo de todo o verão americano, encerrado este mês, equipes de recrutamento varreram localidades rurais e escolas do interior, acenando com a oportunidade de um sonhado acesso à universidade em caso de alistamento. Envergando uniformes de campanha, botas de combate e boinas pretas, fascinaram jovens em concertos de rock, rodeios, corridas Nascar. Ainda assim, o esforço conseguiu preencher apenas 77% das vagas necessárias. Segundo pesquisa feita por Robert Cushing, professor aposentado da Universidade do Texas, são os brancos de pequenas localidades rurais, predominantemente pobres, que representam o grosso das baixas americanas na guerra. São filhos e filhas de operários sem emprego, imigrantes e mães solteiras - um exército arregimentado em traileres, ranchos modestos e estradas secundárias. É um dique pronto para arrebentar. VERMELHO Fonte: O Globo/Dorrit Harazim

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