quarta-feira, setembro 01, 2010

O time dos anarquistas: 100 anos de ódio e resistência

 
Mauro Carrara
 
Há exatos 100 anos, um grupo de operários do bairro do Bom Retiro, em São Paulo, praticou um ato de "desobediência civil".
 
À luz de um lampião, na rua, os insurretos decidiram criar um time de futebol do povo e para o povo.
 
Atrevidos, decidiram que a nova agremiação não deveria se contentar com a várzea.
 
O plano era formar um esquadrão para enfrentar, de igual para igual, os clubes da fechada elite paulistana.
 
Ousados, já meteram a mão em foices para abrir uma cancha num terreno baldio, pertencente a um lenheiro do bairro.
 
E, no primeiro jogo, contra o União Lapa, saíram em passeata até o palco da contenda.
 
Mas como passeata? Passeata, sim senhor, porque essa gente era sobretudo anarquista, com a graça do bom Deus.
 
O primeiro presidente do clube, o ítalo-brasileiro Miguel Battaglia, por exemplo, tivera contanto com o anarcossindicalismo ao prestar serviços para a Light.
 
É dele a frase cândida, mas também desafiadora, que guia a nação alvinegra até hoje: "Este é o time do povo, e é o povo que vai fazer o time".
 
Essa turminha do barulho lia o jornal anarquista de Gigi Damiani, o La Battaglia, que exortava os trabalhadores a fundarem suas próprias escolas e agremiações esportivas.
 
O time dos anarquistas não tinha bagunça. Cada um sabia das suas atribuições. Cada um assumia uma responsabilidade, conforme o que se aprendera de Bakunin e Malatesta.
 
E assim se estruturou. Em 1913, os meninos bons de bola conquistam o direito de participar da divisão principal do futebol paulista.
 
Ao mesmo tempo, o Paulistano e a A. A. das Palmeiras (nada a ver com o atual Palmeiras), enojados do cheiro do povo, se retiraram da liga e resolveram disputar um torneio paralelo.
 
Começava ali uma história de ódio.
 
A imprensa questionava a presença de um time de iletrados no mundo do chiquérrimo futebol, um jogo inventando por lordes ingleses.
 
Quanta petulância!
 
E para acirrar ainda mais os ânimos, o time dos anarquistas admitia gente de todos os tipos.
 
Logo agregava os negros, os mulatos, os caboclos e outros filhos da terra.
 
Mais um pouco e atraía também os outros segregados, polacos, libaneses, alemães, sírios, japoneses e gregos, gente que somente se entendia na alegria de torcer pelo Corinthians.
 
Imaginem o escândalo: um time de anarquistas, pretos, imigrantes e boêmios invadindo as elegantes festas do Velódromo.
 
Se o Corinthians ainda existe é por conta da brava resistência ao preconceito.
 
Tudo lhe foi sempre negado ou dificultado.
 
A mídia paulistana sutilmente construiu um estereótipo desabonador do corinthiano: é o ladrão, favelado, sem modos, sujo e vagabundo.
 
E mesmo criminalizado o Corinthians sobreviveu, e se fortaleceu.
 
E fortaleceu-se por qual motivo? Justamente porque sempre se cria um espírito de resistência solidária entre os oprimidos, ofendidos e injustiçados.
 
Passaram-se 100 anos, e nada mudou.
 
O Corinthians continua sendo alvo preferencial da mídia monopolista.
 
Se o grande São Paulo Futebol Clube recebe um financiamento do BNDES não há nada de errado. É a ordem natural das coisas.
 
Ora, mas se o banco vai financiar a "pretalhada", os "gambás", aí é uma vergonha.
 
Se a ordem é investir dinheiro público no rico bairro do Morumbi, a imprensa sorri de orelha a orelha.
 
Mas se a grana toma o rumo de Itaquera, na esfolada Zona Leste, já vira um caso de polícia.
 
Estadão, Folha, Abril, Globo, ESPN, entre outras organizações midiáticas aproveitaram para criminalizar mais uma vez a paixão de Lula pelo time do povo.
 
Está aí um prato cheio para colunistas políticos travestidos de colunistas esportivos: juntou o time dos anarquistas, do populacho, com o operário nordestino que se meteu a ser presidente...
 
Ai, não dá, né? Ainda mais quando ambos, o time e o presidente apresentam atributos que encantam o povo e, logicamente, o eleitorado.
 
Aqui, no Brás, os fogos espoucaram durante toda a madrugada.
 
Subiam dos quintais de cortiços, das janelas de apartamentos minúsculos, de ruelas esquecidas e escuras, dos lugares onde o povo do Brasil ainda resiste, invisivelmente.
 
Ahhh... Quanto ódio, meu Corinthians, mas quanta amorosa resistência!
 
Parabéns pra você!