domingo, janeiro 22, 2006


From: Caia Fittipaldi
To: crossi@uol.com.br ; Universidade Nômade ; Lingüistas Brasileiros para a Democracia ; OMBUDSMAN [Folha de S.Paulo]
Sent: Sunday, January 22, 2006 3:12 PM
Subject: De fluxos migratórios, porões e conversê
Sobre: CLÓVIS ROSSI, "No porão da Europa", 22/1/2006, Folha de S.Paulo, p. 2 da edição impressa, e na Internet, em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2201200603.htm
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Sr. Clóvis Rossi,

Não sou boba de acreditar nem em economia nem em jornalistas, mas eu acredito em cinema. Quem assistir aos filmes importantes que nos vêm da Europa, já saberá -- de fato, há muito tempo -- que esses tais de fluxos migratórios à moda do século 15, já se inverteram, no mundo, há muito tempo, seja na direção seja no significado político.

Sugiro-lhe, pra começar, os filmes dos irmãos Dardenne -- Jean-Pierre e Luc Dardenne. Veja "Rosetta". Ou veja outro, tb dos irmãos Dardenne, cujo nome não lembro, sobre uma mãe emigrada sans-papiers de Bukina Faso, para Bruxelas. Aliás, só lhe sugiro esses autores-cineastas, dentre muitos que lhe poderia sugerir, só, porque os Dardennes são belgas. E acho que até o senhor sabe que não pode haver algo ou alguém mais 'neutro' do que um belga, desde, com certeza, o Hercule Poirot.

Não há nenhuma dúvida de que, depois de séculos durante os quais a América e a África e a Ásia foram vistos pela Europa como "terra a colonizar", agora o negócio já se inverteu e, bem feitas as contas, estamos nós, sim, começando a colonizar o Velho Mundo. O qual, aliás, nunca foi tão velho quanto é hoje -- desculpe-me a obviedade.

Quanto à velhice, de fato a total coroquice, total e irremissível, do Velho Mundo, recomendo-lhe outro filme: "Um filme falado", esse, precisamente, de um cineasta português. O naufrágio do Titanic é pinto, perto do naufrágio da velha Europa -- e, atenção! -- narrado por um português e genial. Pesquise aí, já que o senhor está em Lisboa mesmo e, pelo visto, sem ter o que fazer.

Bobagem o senhor tentar criar alguma "elite" demarcável pelas profissões, para desqualificar os fluxos que hoje avançam da América (mas não só) sobre a Europa. O keketem que sejamos lavadores de defuntos, na Europa hoje?

Ainda menos do que isso foram, na América, por exemplo, os ingleses, espanhóis e portugueses que vieram para cá como imigrantes, quando chegaram. Aqui, pra ficarmos nesse exemplo, os defuntos eram respeitados e NENHUMA mão estrangeira tocava neles. Nós sempre nos respeitamos, Sr. Clóvis Rossi, até na miséria. Quem sempre se degradou, na imigração, foram, sempre, os europeus.

Falo, é claro, não só dos imigrantes europeus que vieram desarmados, pra cá, expulsos pela miséria velha. Falo, também, e mais, dos imigrantes europeus que vieram ARMADOS, pra cá e, esses, ativos exportadores da miséria européia, imperial e velha.

O senhor deve saber que os imigrantes europeus, quando vieram para a América, vieram também nos porões dos navios e também para viver em porões. Bom... eles tiveram, antes, até, de construir seus porões! E os que não vieram assim, para lavar latrinas e defuntos e para viver em porões, ora essa, vieram para degolar índios.

Não sei que vantagem maria-leva, nessa sua conta-corrente tola: é pior lavar latrinas e defuntos? É melhor degolar índios? É pior deixar-se degolar? É mais sociológico deixar-se degolar sem resistir? É melhor fingir que não lavou latrinas e não degolou ninguém? Só bobagem, hoje, o que o senhor escreve.

Nunca, em tempo algum, jornalistas, economistas e professô-dotô tucanos ou coimbrãos, e sempre autistas e atrasados, abandonaram os seus confortos locais-imperiais para partir na aventura da colonização.

SEMPRE foi assim mesmo como é hoje: os jornalistas e os professô-dotô da tucanaria, da Sorbonne, de Cambridge ou de Coimbra ou de Salamanca SEMPRE ficavam onde estivessem, escrevendo tolices, pra ver se suas tolices colavam e viravam jornalismo ou sociologia; por sorte, nem sempre colaram e nem sempre viraram.

EM TODOS OS CASOS, sempre, só partiram -- sempre! -- só, os mais pobres, em todas as aventuras de colonização. Bobagem, portanto, o senhor inventar que os brasileiros estaríamos "humilhados", hoje, na Europa. Todos os emigrados estão na luta, estejam onde estiverem. E todos trabalhamos, dia e noite, pensando em voltar para casa. Essa luta está só começando.

Hoje, aliás, precisamente hoje, e mais ou menos no instante em que lhe escrevo, há VÁRIOS chefes de Estados europeus, logo ali, na Bolívia, fritando suas carecas européias sob o INCRÍVEL sol das montanhas andinas... assistindo à posse de um índio aimara, na presidência da Bolívia. Não sei se Chirac veio. Não sei se Tony Blair veio. Não sei se Zapatero veio. Não sei que rei, ou que jornalismo à moda da Barão de Limeira, veio à Bolívia.

O que sei, sim, é que, hoje -- como NUNCA ANTES, em 500 anos -- assistimos a um IMPRESSIONANTE fluxo aéreo orientado da Europa para a América, de zilhões de cabeças mais ou menos coroadas. Há alguns anos foi parecido, para a posse de um metalúrgico, no Brasil. O senhor, se não estivesse aí, produzindo jornalismo à luzitana, também deveria estar VINDO, em vez de, de Lisboa, pôr-se aí a escrever bobagens imperializantes.

Troque de toada, Sr. Clóvis Rossi. Já basta de os latino-americanos, africanos e outros que, hoje, começam a colonizar a Europa (e, de fato, também os EUA) continuarmos a ser achincalhados -- ou continuarmos a ser vistos e descritos só pelas nossas vergonhas saradinhas --, como sempre fomos, quando olhados por olhos de 'cronistas do império', iguaizinhos ao senhor e, como o senhor ou o Caminha, sempre, turistas metidos a besta, lá ou cá, defendendo o próprio emprego, ou pedindo emprego prô genro, como fez o Caminha 1º.

Hoje, os olhos do mundo estão postos, reverentes, num altar aimara. Não é totalmente maravilhoso? Até os irmãos Dardenes festejam, veja o senhor, NA BÉLGICA!
[assina] Caia Fittipaldi (dos Lingüistas Brasileiros para a Democracia/ Universidade Nômade / Campanha “Nenhum Brasileiro sem Resposta-na-ponta-da-língua, pra Responder à Folha de S.Paulo" / Tricoteiras Unidas / Mães do Planalto / Gaviões da Fiel)
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