quinta-feira, outubro 20, 2005
Os coronéis, os lobisomens e o deputado José Dirceu
O deputado federal tucano Eduardo Paes, do Rio de Janeiro, disse anteontem (18) ao jornalista Carlos Alberto Sardenberg, apresentador da rádio CBN — um tucano mal camuflado —, que o contato "nosso" com a população é a imprensa. O assunto era a carta de José Dirceu (PT-SP) aos deputados. "A mídia me julgou e me condenou no dia em que um deputado corrupto resolveu se vingar por eu ter negado qualquer proteção para livrá-lo do processo que viria", escreveu Dirceu, referindo-se ao ex-deputado Roberto Jefferson. E conclui: "Quando a mídia escolhe alguém para crucificar, justa ou injustamente, não há reputação que resista incólume". Como se percebe facilmente, as opiniões dos dois deputados são bem diferentes e reveladoras do que há por trás desse episódio.
Diante do absurdo relatório do deputado Júlio Delgado (PSB-MG), Dirceu voltou a lembrar que "a opinião publicada não pode prevalecer sobre a opinião pública". Como ele, muito mais gente vem se sentindo frustrada com a maledicência das informações que recebem pelos jornais, revistas, televisão, rádio, Internet — para não falar nas consultorias, departamentos de análise de bancos, institutos de pesquisa, universidades e por aí afora. No caso Dirceu, mais uma vez, a mídia entra em cena como camisa-de-força neoliberal. Mais uma vez, ela reflete as aberrações circenses que convenientemente recebem denominações como "escândalo do mensalão", "valerioduto" ou coisa que o valha.
A Montanha dos Sete Abutres
Até aí não há novidade: essa mídia serve para isso mesmo. Se alguém está contrariado com alguma decisão do poder público; insatisfeito com o resultado de alguma eleição, seleção, licitação ou critério para qualquer coisa definido por algum órgão de governo; disposto a azucrinar algum desafeto, apenas, esse alguém tem uma avenida aberta pela frente. Munido de alguns argumentos — podem ser merecedores de consideração ou pura fanfarronada —, esse alguém pode exercitar suas manobras politiqueiras, barrar o prosseguimento de um processo legítimo que não o beneficiou, levantar suspeitas contra um administrador que não atendeu aos seus interesses ou apenas dar a sua colaboração para atulhar um pouco mais os tribunais do país. O caminho é este mesmo: recorra à mídia.
O que está se passando no caso Dirceu mostra como é fácil, e isento de quaisquer ônus, atentar contra a ação de um parlamentar eleito que tenta cumprir o seu programa. Via chantagem política, tenta-se cassar o poder que foi conferido ao deputado petista. Devoto daquilo que o cineasta Billy Wilder chamou de "Big Carnival" (Grande Carnaval) — filme que no Brasil recebeu o nome de "A Montanha dos Sete Abutres" e que retrata o caso de um repórter especialista na arte da trapaça —, o noticiário da "grande imprensa" atingiu o auge das previsões tétricas. Nesse tipo de noticiário que culpa o governo por tudo, aparecem os que criticam o presidente da República, os revoltados com o socialismo, com o MST, com a MPB, bem como os insatisfeitos em geral, seja com o campeonato brasileiro de futebol ou com o atraso do trem, a acne juvenil, a aftosa e o bicho-do-pé. Ou seja: tudo é culpa do governo.
O problema é que nesse tipo de anúncio, os jornalistas adeptos da montanha de Billy Wilder têm a contribuição milionária de coronéis especializados em vaticínios funéreos a respeito do governo Lula. A facilidade com que esse noticiário acolhe reclamações contra o governo estimula um irresponsável clima de guerra política. Como que para coroar tudo, no meio da refrega do caso Dirceu aparecem as pérolas desse obscuro deputado Júlio Delgado. "Tudo leva a crer que a alta cúpula do PT levou para dentro do governo Lula dois conceitos marxistas: que os fins justificam o uso de meios reprováveis e que o partido está acima do Estado", escreveu ele em seu relatório contra o deputado petista.
Um caso envolvendo Miriam Leitão
Delgado possivelmente tomou esses conceitos emprestados de conhecidos lobisomens da mídia. (O lobisomem é um animal do folclore que se acredita consumir carne humana ou sangue, e que pode passar de lobo a humano e de humano a lobo. Aparece sempre em noites de lua cheia.) Estultícias como essas, com o claro intuito de pôr-se em evidência, são freqüentes na boca ou na pena de quem adora falsas definições — como Diogo Mainardi (revista Veja), Lúcia Hipólito (UOL News e CBN), Reinaldo Azevedo (Primeira Leitura), Arnaldo Jabor e Miriam Leitão (TV Globo e CBN), entre tantos outros. Para se ter uma idéia do que esses estultos são capazes, o governador do Paraná, Roberto Requião (PMDB), relatou à revista Caros Amigos um caso envolvendo Miriam Leitão.
Segundo o governador, ela disse que o fato de o Estado do Paraná ter proibido a exportação de transgênicos no porto de Paranaguá estaria dando um prejuízo aos paranaenses de 600 milhões de toneladas. "Fiquei entusiasmado, porque o mundo produz 160. Daí liguei para eles e pedi para corrigir. Não corrigiram. Peguei a televisão do Estado, que transmite da Patagônia até o Canadá, aberta para todas as parabólicas, e botei a Miriam Leitão, daí botei os dados de produção do mundo, dizendo que a Globo estava mentindo para tentar intervir e privatizar o porto de Paranaguá. Como não tenho a concentração de audiência que a Globo tem, coloquei dez vezes por dia, 45 dias", disse Requião. Em outro dia, Miriam Leitão defendeu a privatização da Petrobras e a escolha do presidente da empresa pelo "mercado".
Sem limites para a imaginação
Esse comportamento não é, absolutamente, irrelevante, porque inclui a mentira e não deve ser subestimado. Trata-se de um noticiário — melhor seria dizer bagunçário — que cumpre papel bem definido no jogo político que se estabeleceu no país. Ele serve aos velhos coronéis, muitos deles modernos, que usam os meios de comunicação como arma principal na luta política. Esses coronéis eletrônicos transformaram o processo contra Dirceu em mais uma batalha da guerra que movem contra o governo Lula. O líder do PSDB no Senado, Arthur Virgílio (AM), deixa isso claro quando afirma que Dirceu, o presidente Lula e o ex-tesoureiro do PT, Delúbio Soares, estão se protegendo mutuamente. "Lula é o chefe do Delúbio, que está acobertando o presidente", afirmou.
Na avaliação do tucano, a possível expulsão do ex-tesoureiro dos quadros do PT é uma farsa para enganar a "opinião pública". Sem limites para a imaginação — ou para o ridículo —, o líder tucano afirmou ainda que "esse será o lado caseiro da grande pizza do PT, que quer passar a mensagem de limpeza, mas o partido já apodreceu". Ele falou também da "arrogância" (sic) de Lula, que "beira a má-fé". "O presidente imagina de modo abjeto que a crise acabou", trovejou Virgílio na tribuna do Senado. A deputada tucana Zulaiê Cobra, titular da Comissão de Constituição e Justiça da Cãmara, também elevou em pelo menos uma oitava o tom contra Dirceu. Para ela, a decisão do deputado Darci Coelho (PP-TO), que deu parecer favorável ao arquivamento do processo de cassação do deputado petista no Conselho de Ética, é "uma falta de responsabilidade".
A raiz do rancor de Virgílio e Heloisa
Na grita contra o governo Lula, mais longe foram os integrantes do braço esquerdo da direita — como um leitor do Vermelho definiu recentemente os grupos "esquerdistas". Há quase três meses, a senadora Heloisa Helena (PSOL-AL) discursou sobre um pó branco que teria aparecido no gabinete de Virgílio, "e outras coisas mais". "O governo Lula precisa saber que pode comprar donos dos meios de comunicação, mas não poderá comprar todos que lá estão. Portanto, o governo Lula precisa saber, juntamente com sua base de bajulação, que se a camarilha do Palácio do Planalto pensa que vai impor o medo pela ameaça, pela velha ameaça dos expurgos e da tirania para desmoralizar ou matar quem não se curva diante da — repito — camarilha do Palácio do Planalto, pode tirar o cavalo da chuva que ele vai morrer de pneumonia", discursou a senadora.
E foi além em sua arenga: "É necessário acabar com essa história de tentar dar uma aura mística, ideológica, maquiavélica, leninista, ou qualquer outra elaboração sofisticada para explicar o que está acontecendo. Não tem nada disso! O que está acontecendo é banditismo ralé". Tem cabimento que parlamentares façam esse tipo de considerações e ameaças? Eles acham que sim. Mas, como na prática não houve prova de coisa alguma nem num caso nem no outro, especula-se que os discursos dos senadores teriam outra motivação. O que seria? "Na raiz do rancor do senador tucano e da senadora alagoana estão duas medidas corretíssimas de Lula", diz um deputado. "Primeiro é o esforço do governo para recompor a base aliada; segundo uma ofensiva do presidente para responder aos ataques da oposição", afirma ele.
Como se vê, é uma conjunção de forças quase diabólica. O leitor já deve ter sentido a quantas ramificações seríamos levados se pudéssemos conversar mais extensamente sobre esse assunto. Esse jeito de entender o presente, no entanto, já torna possível a previsão para o futuro: ela está baseada em análise e projeção lógica. Quando era predominantemente rural, o Brasil estava fadado a conviver com os grotões políticos. Os coronéis, sucessores dos poderosos senhores de engenho ou do café, controlavam tudo, do crédito na venda aos votos colocados na urna a cada eleição. Esse Brasil foi reduzido, ficou geograficamente menor. Então você pergunta: por que esses coronéis mantêm suas posições? A resposta é o papel da mídia, que tende a ser cada vez mais determinante na luta política.
Poderosos indutores de boatos
No começo dessa novela do "mensalão", o senador Álvaro Dias (PSDB-PR) disse: "Tomara que a gente pegue alguém". Que alguém? José Dirceu, claro! Mas e as provas? Bem, aí já estamos querendo demais. Caso, de fato, tenha havido pagamento de propinas a parlamentares, a possibilidade de que isso tenha partido dos escalões mais altos do governo parece desafiar até a lógica aristotélica. As pessoas mais graduadas saberiam que um esquema desse seria altamente explosivo — a qualquer momento Roberto Jefferson, ou outro deputado da mesma estatura moral, poderia jogar suas dinamites na Câmara dos Deputados. A despeito disso, Dirceu acabou sendo o alvo preferido da boataria. Primeiro porque ele era o poderoso ministro-chefe da Casa Civil. Depois porque sua figura simbolizava uma ala do governo que não comunga com os cacarecos herdados da "era FHC".
Num ambiente de informações rarefeitas, no entanto, dados como os despejados aleatoriamente por Roberto Jefferson são poderosos indutores de boatos. Segundo se comenta, o presidente Lula não coloca em dúvida a honradez e a probidade de Dirceu. Se ele cair, será porque se dedica aos rumos do governo e não por ter cometido algum ato ilícito para beneficiar alguém. O que vai sobrando de todo esse lamentável episódio é a inelutável constatação de que a ausência de uma agenda social criou um vácuo político. O espaço vazio motivou uma competição entre os conservadores da área econômica e os desenvolvimentistas, que se refletiu na própria base de sustentação do governo. Nos partidos de oposição, quando houve o estouro da crise cada qual saiu em busca da CPI mais barulhenta.
O rumo concreto e real da luta de classes
Desde então, o que se viu na mídia foi um panorama de ruínas que a realidade se incumbiu de desmontar. Aí os holofotes foram apontados para outros alvos. E, do nada, outras crises aparecem. Recentemente, tentaram criar caso com o Projeto de Integração do Rio São Francisco às bacias hidrográficas do Nordeste Setentrional. (A propósito desse assunto: a "grande imprensa" gosta de pedir a jornalistas a opinião sobre todos os assuntos e os jornalistas gostam de dar a opinião sobre todos os assuntos. Foi assim que, recentemente, as jornalistas que freqüentam o "Programa do Jô" teceram considerações com tanta segurança sobre um assunto que muitos especialistas em transposição gaguejariam. Mas elas falavam como se fossem autoridades no assunto.)
Na crise, aparece de tudo: empresários aflitos com o bafo da competição chinesa oram ajoelhados na direção de Brasília, cada qual pedindo a graça que mais lhe refrescaria o balanço no curto prazo. A turma dos bens de consumo pede mais alfândega. Quem precisa financiar matérias-primas ou, na outra ponta, seus distribuidores reclama juros menores. Há, também, os devotos de ampla reforma constitucional. E, por fim, o grupo que almeja um corte radical no tamanho do Estado para jogá-lo nos braços da Alca. Todos dizem que querem o bem da nação, levantam argumentos vibrantes e gostam do superávit comercial. No horizonte, as eleições do ano que vem. Que a oposição se aproveite disso é normal. Mas a cumplicidade de setores que se dizem de esquerda é apenas outra prova de miopia política. Para a esquerda conseqüente, o fundamental é não se desviar do rumo concreto e real da luta de classes.
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As opiniões aqui expressas não refletem, necessariamente, a opinião do Vermelho.
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Osvaldo Bertolino, Jornalista, autor dos livros "Maurício Grabois - Uma Vida de Combates" e "Testamento de Luta - A Vida de Carlos Danielli", integra a equipe do Vermelho e o Conselho de Redação da revista Debate Sindical, é membro da Comissão Estadual de Formação (Cefor) do PCdoB no Estado de São Paulo e foi diretor de imprensa do Sindicato dos Metroviários de São Paulo.
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