sábado, outubro 08, 2005


A grande prova do sucesso da cúpula foi o fato da imprensa tucana ter que fingir que ela não aconteceu.
Fatos e versões na Cúpula Sul-Americana A primeira Cúpula das Nações Sul-Americanas que aconteceu na semana passada - 29 e 30 de setembro em Brasília -, reunindo chefes de estados e representantes de 12 países da região, foi definitivamente um sucesso. O campo progressista comemorou e cantarolou agitando bandeiras. Foi aprovado um acordo de liberação de 2,5 bilhões de dólares para a construção de uma refinaria em Pernambuco - cujo nome será Abreu e Lima em homenagem ao libertador brasileiro que foi companheiro de Simón Bolívar -, além de outras parcerias entre países e cúpulas regionais. Mas para a grande imprensa, instrumento essencial do pensamento hegemônico imperialista, a cúpula foi um fracasso. Os motivos apontados para esse julgamento determinante são vários, mas nenhuma argumentação convence já que eles são apontados a partir do ponto de vista da elite dominante, com seus característicos preconceitos e manipulação dos fatos. A mesma elite incomodada com essa "raça" que está no governo no Brasil. E que, mesmo com seus aliados midiáticos, sofreu uma perda extremamente simbólica para as forças avançadas no país: a Presidência da Câmara dos Deputados, que passou para as mãos de um valoroso e histórico militante comunista. Estes quadros da direita travestidos de jornalistas fizeram, fazem e farão tudo o que estiver ao seu alcance para minar o fortalecimento e a propagação dessa mesma "raça" pela América Latina. Mas nada melhor para argumentar do que ir aos fatos. Antes da Cúpula começar, no dia 25 de setembro (domingo) - um dia antes do encontro do chanceler brasileiro Celso Amorim com a secretária de Estado norte-americano Condoleezza Rice -, a Folha de S. Paulo selecionou duas páginas do seu caderno Mundo (A32 e A33) para a presença dos EUA no Paraguai. Em meio a seis textos sobre o assunto, há um assinado por Ricardo Bonalume Neto, da Reportagem Local - cujo título é "Caso reflete esquizofrenia continental - que diz: "Fragmentação da personalidade e perda de contato com a realidade são características do comportamento esquizofrênico (...). A descrição é perfeita para parte dos militares latino-americanos, com destaque para muitos brasileiros, quando o assunto são as relações com os EUA e suas Forças Armadas muito mais poderosas". E mais adiante minimiza: "Qual o interesse estratégico dos EUA no Paraguai (...)? No máximo, se quer vigiar a Tríplice Fronteira e seus vínculos hipotéticos com o terrorismo islâmico. Para isso, (...) meia dúzia de agentes resolve a coisa". Preparando terreno Na segunda-feira seguinte (26/09) os motores do coro antiintegração esquentaram com o editorial da Folha de S. Paulo "Chávez e a Pobreza", que se dedica "aos que louvam a opção de política social do governo de Hugo Chávez" e argumenta que o fato de a pobreza ter crescido na Venezuela de 2000 a 2004, segundo o último relatório da Cepal, deve pôr em xeque a Revolução Bolivariana. Na terça-feira (26/10), começou a especulação de que a Cúpula seria esvaziada e consequemente fadada ao insucesso. Uma notinha assinada por Denise Chrispi Marin no Estadão, página A9, ao lado da matéria que reporta a reunião de Amorim e Condoleezza, "O encontro, que tratará do fortalecimento da comunidade, tende a ser arranhado pela desconfiança dos vizinhos sobre as pretensões de liderança do Brasil na região e pela crise política". Em seguida relata as presenças confirmadas, e sua relação com a dita crise política no Brasil. A do presidente argentino Nestor Kirchner foi uma das importantes incógnitas até o fim, é verdade. A especulação da imprensa em torno da participação pessoal do presidente mostrou - mais uma vez - como a lenda sobre a rivalidade entre Brasil e Argentina é usada para preencher os vácuos e simplórios argumentos da elite dominante. Ao final, Kirchner veio e aprovou a Declaração final da Cúpula, além de ter deixado claro seu interesse por parcerias estratégicas com a Venezuela e o Brasil. Na quarta-feira, o Estadão dá continuidade a sua investida contra o processo de integração, com a matéria "Kirchner não virá para cúpula em Brasília", assinada por Ariel Palácios. "os sinais de esvaziamento da reunião de cúpula começaram a pulular ontem no Itamaraty. Os organizadores do evento decidiram comprimir toda a programação dos presidentes na sexta-feira para evitar novas desistências", diz o texto depois de comentar que o presidente argentino teria confessado que não gosta de "ir de coquetel em coquetel por aí". Demasiadamente venenosa. É claro que era muito importante o número de chefes de Estado presentes. Era a primeira cúpula onde seria firmada inclusive a sua criação além de determinar os passos e estudos necessários para os acordos políticos e econômicos. Mas convenhamos que esta não é a questão central. Se estes setores estivessem realmente favoráveis a este estratégico movimento de integração da região, a pauta da cobertura não teria sido essa. E sim, os debates em questão, os acordos que seriam assinados, como por exemplo a tão significativa refinaria em Pernambuco entre Brasil e Venezuela. Porque ninguém adiantou esse convênio? Certamente ele já estava na agenda. Porque não interessou à pauta. Assim como não interessa valorizar alternativas à políticas neoliberais, políticas que conflitam com a submissão tão comum na América Latina aos organismos financeiros internacionais. A grande imprensa brasileira, assim como a venezuelana e as agências de notícias estrangeiras, têm o papel de associar a América Latina aos padrões do imperialismo norte-americano. Esse é seu objetivo. Pela primeira vez a América Latina está caracterizada por governos avançados, compostos por amplas alianças entre partidos e movimentos sociais, que vêem conquistando espaço na geopolítica internacional e na disputa de idéias. Dá até pra entender a reação. Eles não podem pegar leve. A imprensa personagem As primeiras repercussões da Cúpula quando iniciada mantiveram o tom negativo. Na falta do que pautar, as agências - cujas notícias normalmente não são assinadas - não hesitaram em mudar a tática: a imprensa virar notícia. E passaram um dia inteiro criticando o suposto fechamento do evento para a imprensa. Uma notícia da Agência Estado, por exemplo, intitulada "Imprensa é isolada na Cúpula Sul-Americana", veiculada na Internet, afirma que o "governo brasileiro decidiu adotar a estratégia de total isolamento da imprensa (...). O acesso ao prédio principal do Itamaraty está completamente vedado aos cerca de 280 jornalistas". Mais adiante, entretanto, informa que não estão tão alienados do evento assim: "Os jornalistas estão concentrados na Sala das Bandeiras, no prédio anexo 1 do Itamaraty, onde foi montado um centro de imprensa com três telões, computadores e acesso à Internet". Não existe novidade alguma neste tipo de tratamento. Os jornalistas e correspondentes só tiveram que caminhar e se articular um pouco mais para terem suas matérias. O que queriam? Circular entre os chanceleres e lhes fazerem perguntas que quisessem quando bem entendessem? Felizmente a Cúpula não é a CPI dos Bingos, onde a imprensa pode manipular os depoimentos de acordo com sua linha editorial. Personificação do processo de integração, Hugo Chávez não poderia passar ileso pela raivosa imprensa brasileira. Na sexta-feira, foi a sua vez de ganhar destaque depois de ter protagonizado um "bate boca com Lula". Obviamente a discussão não foi nem um bate boca nem um rompimento das relações diplomáticas e de amizade entre os dois presidentes. Mas o que interessava ao noticiar essa manchete era fantasiar que havia ocorrido uma tensa estremecida entre os dois ícones latino-americanos. O veneno escorreu pelas pontas dos textos, mas não foi na realidade o fato. Chávez, o monstro bolivariano O que Chávez fez, com seu jogo de cintura tão habitual, foi - no momento certo, que era o da assinatura da Declaração de Brasília - chamar a atenção dos líderes para a necessidade de se avançar mais nas perspectivas de ação da Cúpula. Principalmente no sentido da Comissão Sul, que trata do assunto energético e que foi tema de uma carta dos presidentes venezuelano, Hugo Chávez, e uruguaio, Tabaré Vázquez, aos seus colegas sul-americanos intitulada "Nosso norte é o sul" [Clique aqui para ler]. Mas para a Reuters, por exemplo, que reportou com desdém o episódio, o mais importante é que além do bate boca com Lula e de resistir à aprovação da Declaração, o líder bolivariano foi alvo de uma piada dos jornalistas, que novamente são inseridos na notícia como atores. "Lula, surpreso, interveio para tentar convencer o dirigente a não permitir que o novo processo de integração ficasse 'congelado'", como se isso interessasse a Chávez, "'Poderíamos aprovar o documento e (...) dentro de 90 dias, (...) tratar de criar a comissão estratégica', disse Lula. 'Acredito que sua declaração esclarece o panorama', responde o presidente da Venezuela, provocando um ruidoso 'haaaa' na sala de imprensa de onde se acompanhava a sessão por circuito de televisão". Do seu "isolamento" a imprensa acompanhou e até interviu. Na última segunda-feira (3/10) a TV Cultura transmitiu o programa Roda Vida gravado na sexta-feira anterior com Hugo Chávez. Ali, cara a cara com a imprensa que é contra a Revolução Bolivariana, ele respondeu brilhantemente às ofensivas perguntas dos jornalistas. Entre eles estavam Eliane Cantanhêde, colunista da Folha de S. Paulo, Lourival Sant'Anna, repórter especial do O Estado de S. Paulo, Ricardo Amaral, repórter da Reuters, e Vicente Adorno, editor de internacional da TV Cultura. No programa Chávez falou sobre a economia venezuelana - que tem hoje reservas internacionais na casa dos 33 bilhões de dólares ("um recorde histórico"), aumento de mais de 200% de investimento privado com relação ao ano passado e uma queda no risco-país de 75% desde fevereiro; liberdade de expressão ("duvido que haja país no mundo onde seja tão grande"); e o caráter revolucionário do processo bolivariano. Questionado por Adorno se a integração seria viável quando Kirchner se retira antes da "festa terminar", Chávez disse: "com todo respeito, não me junto à sua crítica ao presidente argentino". E explicou que na América do Sul, "o que estão fazendo é um eixo, que não é do mal. (...) Temos que apostar na integração e compreender essas coisas pessoais". Mentiras O mordaz Lourival Sant'Anna tentou travar, algumas vezes, um duelo com o presidente. Começou falando de Cuba e terminou afirmando que Chávez agudiza a polarização política na Venezuela. Sobre o primeiro tema, Chávez não perdeu a oportunidade: "Temos que entender o contexto de Cuba. (...) Eu vou à Cuba e vejo um povo culto, livre. Quem diz que em Cuba há uma ditadura está fora da verdade". O jornalista insistiu dizendo que Chávez não conhecia "a Cuba do povo, onde há miséria, perseguição política, e onde não há alternância política há quase cinco décadas". Chávez retrucou comparando a pobreza em Cuba e nos Estados Unidos. "Você viu o Katrina? Deixaram os pobres se afogar. Em Cuba, evacuam até as galinhas quando tem furacão". O repórter do Estadão tentou ainda argumentar que lá existe eleição de quatro em quatro anos. Mas Chávez lhe lembrou que esta tem sido fraudada. "É uma pena que uma pessoa tão jovem como você veja o mundo dessa forma. Isso que você está dizendo é mentira".

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