domingo, fevereiro 26, 2012

Muito além da história de um menino e um cavalo... A história jamais contada – nem antes, nem hoje – da guerra



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17/3/2011, "Como os anos '80s programaram os EUA (e o mundo) para a guerra", David Sirota, Salon




Bem antes do centenário, em 2014, do início da “guerra para pôr fim a todas as guerras”, a I Guerra Mundial já parece aparecer por todos os lados, no dia a dia dos EUA. “Cavalo de Guerra”, de Stephen Spielberg estreou em 2.376 salas de cinema e concorre em seis categorias do Oscar; ao mesmo tempo em que a peça de teatro em que se baseou o filme prossegue arrastando multidões para filas intermináveis em New York e uma segunda montagem está em fase final de produção para viajar pelo país.

Além disso, um seriado de televisão, de alta audiência nos últimos dois meses, “Downton Abbey”[1], acaba de encerrar a temporada com um beijo inesperado. Em sete episódios, aquele mundo de sobe-desce-escadarias e amor proibido e confusões dinásticas levou os norte-americanos para bem longe, desde o meio da guerra, em 1916, até depois do Armistício, com a própria venerável abadia que dá título à serie convertida em hospital para soldados feridos convalescentes. Outros seriados sobre a guerra 1914-1918 estão a caminho, entre eles uma minissérie do canal HBO-BBC baseada nos quatro romances de Ford Madox Ford, “Parade’s End”; e uma adaptação para a televisão do romance “Birdsong” de Sebastian Faulks, patrocinada pela rede NBC.

De fato, não há aí qualquer novidade. Cineastas e romancistas são há muito tempo fascinados pelo modo como uma Europa pré-1914, solar, otimista, povoada de imperadores com capacetes emplumados e desfiles de belos hussardos transformou-se, tão rapidamente, em campo de esquartejamento em massa em escala jamais vista. E há boas razões para examinar atenta e cuidadosamente a I Guerra Mundial.

Naquela guerra morreram cerca de 9 milhões de soldados e número ainda maior de civis. Foi a fagulha que incendiou o genocídio dos armênios e a Revolução Russa, deixou em ruínas fumegantes áreas imensas da Europa e reformatou o mundo para pior, em todos os sentidos imagináveis – sobretudo porque deixou o campo semeado para uma segunda guerra global ainda mais mortal.

Há boas razões pelas quais os norte-americanos sejamos particularmente acossados pelo que aconteceu naqueles anos ao país que aparece em todos aqueles filmes e seriados de televisão: a Grã-Bretanha. Em 1914, a Grã-Bretanha estava no auge da glória, superpotência global indiscutível, que comandava o maior império que o mundo jamais conhecera. Quatro anos e meio depois, a dívida interna já estava multiplicada por dez, mais de 720 mil soldados britânicos estavam mortos e outras centenas de milhares, feridos e mutilados, muitos sem braços, pernas, olhos, genitais.

A conta pesou particularmente sobre as classes mais educadas que forneceram os jovens tenentes e capitães que comandaram suas tropas para fora das trincheiras, diretamente contra o fogo mortífero das metralhadoras. Para dar um único exemplo assustador, morreram 31% dos homens que se formaram em Oxford em 1913.

“Varridos para longe, numa explosão rubra de ódio”
Pois curiosamente, em todos esses espetáculos de menino e cavalo, cargas épicas de cavalaria, trincheiras enlameadas e amor e separações de tempos de guerra, os autores de “Cavalo de Guerra”, “Downton Abbey” e – não há dúvidas – dos similares que logo estarão aparecendo nas telas de cinema e televisão nos EUA, passam muito ao largo do maior drama moral daqueles anos de conflito, e drama que ainda ecoa hoje, nesses tempos de novas guerras caras e desnecessárias. Todos esses filmes e seriados de televisão deixam fora dos enredos, sempre, parte muito importante dos personagens ativos naquele momento.

A I Guerra Mundial não foi só combate entre exércitos rivais, mas foi também combate duríssimo travado entre os que entendiam que a guerra fosse alguma espécie de cruzada nobre, de um lado; e, de outro, os que só viam, da guerra, o que nela há de absoluta loucura.

Em muitos países as prisões encheram-se de gente que se opunha à guerra. Mais de 500 homens foram presos, nos EUA, naqueles anos, por declararem “objeção de consciência” e recusarem-se a lutar; outros muitos foram presos por se manifestar contra os EUA envolverem-se no conflito. Eugene V. Debs esteve preso, naqueles anos, como líder de um sindicato de ferroviários, mas passou muito mais tempo atrás das grades – mais de dois anos –, por insistir em que os norte-americanos resistissem ao alistamento militar. Condenado por crime de sedição, ainda estava preso na penitenciária federal em Atlanta, em novembro de 1920, quando, muito depois do final da guerra, recebeu quase um milhão de votos, como candidato Socialista à presidência dos EUA.

Um protesto nos EUA contra a guerra converteu-se em tragédia quando, em 1917, a polícia de Oklahoma prendeu cerca de 500 pessoas que se manifestavam contra o alistamento militar obrigatório[2] – brancos, negros e nativos norte-americanos –, participando do que chamaram de Rebelião do Milho Verde [orig. “Green Corn Rebellion”], contra “guerra dos ricos, que querem que os pobres lutem.” Houve três mortos e muitos feridos.

Também na Alemanha e na Rússia as prisões encheram-se de militantes que se opunham à guerra. Mas o país onde se constituiu o maior e mais bem organizado movimento antiguerra – e aqui, os criadores de filmes e seriados de televisão ‘de época’ e perucas, tão ardentemente amados pelo público norte-americano anglófilo, perdem excelente e crucial oportunidade – foi a Grã-Bretanha.

A principal razão pela qual a oposição à guerra conquistou tantos defensores era bem simples: em 1914, a ilha-nação ainda não havia sido atacada. O invasor alemão marchara contra a França e contra a Bélgica, mas a Alemanha esperava que a Grã-Bretanha se mantivesse neutra. Muitos britânicos também esperavam. Quando a Grã-Bretanha entrou na guerra, sob o argumento de que os alemães teriam violado a neutralidade dos belgas, uma minoria continuou a repetir que misturar-se em conflitos entre outros países seria desastroso erro.

Keir Hardie foi dos mais destacados opositores à guerra, desde o início. Deputado ao Parlamento e líder sindical, Hardie, aos 21 anos, vivera mais da metade da vida como mineiro de carvão e jamais frequentou qualquer escola. Aprendeu a ler, sozinho, aos 17 anos; e foi dos maiores oradores de seu tempo. Hipnotizava multidões, com sua fala, as sobrancelhas escuras e uma impressionante vasta barba ruiva. Esmagado pelo desespero, ao ver milhões de trabalhadores europeus matando-se entre eles, em vez de se unirem em torno da causa de todos os trabalhadores do mundo, Hardie morreu em 1915, mal entrado nos 50 anos, mas já com as barbas completamente brancas.

Dentre os muitos que muito valentemente levantaram-se contra a febre da guerra, cujos comícios foram muitas vezes violentamente interrompidos pela polícia ou por gangues patrióticas, está a conhecida feminista radical Charlotte Despard. Seu irmão mais jovem, curiosamente, era Marechal de Campo, Sir John French, comandante-em-chefe do Front Ocidental durante o primeiro ano e metade da guerra. Outra família dramaticamente dividida foi o famoso clã Pankhurst, das suffragettes: Sylvia Pankhurst tornou-se opositora feroz do conflito, enquanto sua irmã Christabel sempre foi, desde os primeiros dias, fervorosa patriota batedora de tambor a favor do esforço de guerra. As duas irmãs não só deixaram de falar uma com a outra, como também criaram e mantiveram jornais rivais pelos quais, frequentemente, atacavam a posição antagonista.

O importante jornalista de investigação, Edmund Dene Morel, e o afamado filósofo Bertrand Russell, ambos britânicos, foram dois outros apaixonados militantes antiguerra. “Essa guerra, de tão vasta, é guerra trivial”, Russell escreveu[3]. “Não se vê em jogo nenhum grande princípio; nenhum alto propósito humano, nem de um lado, nem de outro.” Horrorizava-o ver seus concidadãos “Varridos para longe, numa explosão rubra de ódio”.3

Russell escreveu, com notável franqueza, sobre a dificuldade de mover-se contra a corrente da febre nacional a favor da guerra, “quando toda a nação é tomada de violenta excitação coletiva. É necessário esforço tão grande para resistir à voz geral, quanto seria necessário para resistir à fome ou à paixão sexual extremas; e há a mesma sensação, de que se anda contra o instinto.”

Ambos, Russell e Morel passaram seis meses presos, por suas opiniões. Morel foi sentenciado a trabalhos forçados e carregava sacos de juta de 50kg até a oficina da prisão, mal vestido e mal alimentado ao longo do inverno gelado, com as caldeiras da prisão desligadas, por causa do racionamento nacional de carvão.

Mulheres como Violet Tillard também cumpriram penas de prisão. Ela trabalhava num jornal do movimento antiguerra proibido em 1918, e foi presa por recusar-se a revelar onde estavam escondidas as prensas nas quais se produzia o jornal. Outra, dentre as heroínas esquecidas do movimento contra a I Guerra Mundial, foi Emily Hobhouse, que atravessou clandestinamente a Suíça (neutra), até Berlim, esteve com o ministro de Relações Exteriores da Alemanha, expôs a ele um possível plano de paz, voltou à Inglaterra e tentou repetir a operação com o governo britânico. Foi expulsa por funcionários do Gabinete, taxada de excêntrica. Mas, num conflito no qual morreram 20 milhões de pessoas, Emily Hobhouse foi o único civil que viajou de um lado ao outro da guerra, e voltou, trabalhando pela paz.

Por que os norte-americanos sabemos mais sobre guerra, que sobre paz?

Ao final da guerra, mais de 20 mil homens na Grã-Bretanha haviam desobedecido à ordem de alistamento militar e, por questão de princípio, vários recusaram a alternativa de serviço civil imposta aos que declaravam objeção de consciência contra a guerra (dirigir ambulâncias no front, ou serviço obrigatório na indústria de guerra). Mais de 6.000 deles cumpriram sentença de prisão – até hoje, é o maior número de prisioneiros políticos, em qualquer das ditas grandes democracias ocidentais.

Nada havia de fácil ou simples, nesses processos de resistência. Os que se recusavam a alistar-se eram perseguidos e humilhados (gangues patrióticas os perseguiam com ovos podres pelas ruas), metidos em prisões sob condições duríssimas, e perderam o direito de votar por cinco anos. Mas com o final da guerra, em país devastado que chorava seus mortos e começava a perguntar-se o quê, afinal, poderia justificar aqueles quatro anos de carnificina, muitos começaram a ver sob outra luz os resistentes que sempre se haviam manifestado contra a guerra. Mais de meia dúzia deles chegaram a ser eleitos para a Casa dos Comuns; e o jornalista Morel tornou-se o principal porta-voz do Partido Trabalhista em questões internacionais. 30 anos depois do Armistício, um sindicalista chamado Arthur Creech Jones, que passara dois anos e meio na prisão, por resistir contra a guerra, foi indicado membro do Gabinete britânico.

A bravura desses homens e mulheres que insistiram em dizer o que pensavam sobre uma das maiores questões de seu tempo custou-lhes muito caro: ouviram zombaria, sofreram nas prisões, viveram tragédias familiares, perderam amigos e empregos. E, hoje, continuam esquecidos, num momento em que a resistência contra guerras sem sentido deveria ser objeto de celebração diária. Em vez disso, ainda, quase sempre, tendemos a celebrar os que combatem – vencedores e derrotados –, muito mais do que celebramos os que se opõem sempre a todas as guerras.

Não são só os filmes e seriados de televisão a que assistimos, mas também os monumentos e museus que construímos. Não surpreende que, como o general Omar Bradley disse uma vez, os norte-americanos “sabemos mais sobre guerra, que sobre paz”. Em geral, vemos as guerras como ocasião para heroísmos, e algum heroísmo pode até acontecer. Mas muito maior heroísmo, heroísmo do grande, que tanta falta faz em Washington nessa última década, é obrigar-se a pensar se alguma guerra algum dia fez sentido. Quem queira recolher lições de guerras passadas, que procure. Se procurar, encontrará uma história muito mais profunda a contar, que a história de um menino e um cavalo.


[1] Sobre a novela, ver http://www.imdb.com/title/tt1606375/ [NTs].
[2] Dia 6/4/1917, o presidente Woodrow Wilson, recentemente eleito para um segundo mandato, ao qual concorrera com o slogan “Ele nos manteve longe da guerra”, compareceu a uma sessão conjunto do Congresso dos EUA e pediu que o Congresso aprovasse uma declaração de guerra contra a Alemanha Imperial. O Congresso acedeu; a declaração foi aprovada por 373-50 votos pelos deputados e por 82-6 votos pelos senadores. Pouco mais de um mês depois, dia 18/5/1917, o Congresso aprovou a lei que tornava obrigatório o alistamento militar para todos os jovens em condições de lutar, e agendado para um único dia, 5/6/1917. A Rebelião do Milho Verde aconteceu nos dias 2-3/8/1917 (mais sobre isso em http://en.wikipedia.org/wiki/Green_Corn_Rebellion) [NTs]
[3] RUSSEL, Bertrand, 1916, “An appeal to the intellectuals in war-times”, in Justice in War-Time, apud BUITENHUIS, Peter, 1987, The Great war of words: British, American, and Canadian propaganda, London: UBC Press (em http://goo.gl/BwYir) [NTs].