segunda-feira, fevereiro 20, 2012

Guerra Global ao Terror: o Placar

Da libertação ao assassinato, em três rápidos rounds 19/2/2012, Andrew Bacevich, Tom Dispatchhttp://www.tomdispatch.com/post/175505/tomgram:_andrew_bacevich,_uncle_sam,_global_gangster/#more

Com os EUA já bem entrados na segunda década do que o Pentágono chama agora, para modernizá-la, de “era de conflito persistente”, a “Guerra Antes Conhecida Como Guerra Global ao Terror” (sigla não oficial: GACGGT) parece cada vez mais fragmentada e difusa. Sem vitória e pouco interessados em reconhecer a derrota, os militares dos EUA retiraram-se do Iraque. Agora, tentam retirar-se do Afeganistão, onde os fatos teimam em não permitir que se veja lá qualquer resultado positivo.

Em outros pontos – no Paquistão, na Líbia, no Iêmen e Somália, por exemplo – as forças dos EUA trabalham empenhadamente para abrir novos fronts. Relatórios divulgados que informam que os EUA estão fixando “uma constelação de bases secretas de aviões-robôs, os drones, no, ou próximas do, Chifre da África, e na Península Arábica, sugerem que o âmbito das operações só fará crescer. Em matéria de primeira página, o New York Times[1] descreveu planos para “dar mais espessura” [orig. “thickening”] à presença global das forças de operações especiais dos EUA. Planos acelerados na Marinha, para converter um envelhecido veículo anfíbio em “base avançada flutuante” – uma plataforma móvel de lançamento, tanto de ataques de comandos[2] como de operações de semeadura de minas[3] no Golfo Persa – só reforçam esse ponto. Mas, à medida que alguns fronts são fechados e outros são inaugurados, a narrativa da guerra vai-se tornando cada dia mais difícil de entender. Quanto falta para que cheguemos ao equivalente a Berlim, do ‘formato’ GACGGT? O que, exatamente, é o equivalente a Berlim, do ‘formato’ GACGGT? Afinal, há aí algum roteiro discernível?

Observada em close-up, a “guerra” parece ter perdido forma e contornos. Mas, se nos afastamos um pouco, começam a aparecer padrões importantes. O que aqui se lerá, adiante, é uma tentativa de descobrir como está o placar da GACGGT, dividindo-se o conflito em três rounds de jogo. Embora talvez haja muitos outros rounds pela frente, eis o que os EUA já padecemos, até agora.

A era Rumsfeld

1º Round: Libertação. Mais que qualquer outro personagem – mais que o próprio presidente –, o secretário de Defesa Donald Rumsfeld dominou a cena nos primeiros estágios da guerra. Parecendo às vezes personagem maior que a vida – o “Secretário de Guerra” aos olhos de um fã clube neoconservador de adoradores (embora pouco confiáveis) –, Rumsfeld dedicou-se à ideia segundo a qual, em batalha, a rapidez é a chave do sucesso. Jogou todo o seu peso a favor de uma versão norte-americana de blitzkrieg, “guerra relâmpago”. As forças dos EUA, repetiu com regularidade, eram mais inteligentes e mais ágeis que qualquer adversário. Empregá-las em táticas que tirassem vantagem dessas qualidades era vitória garantida. A imprensa cunhou, para designar esse conceito, a expressão “choque e pavor” [orig. “shock and awe”].

Ninguém cria mais apaixonadamente em “choque e pavor” que o próprio Rumsfeld. O projeto da “Operação Liberdade Duradoura” [orig. Operation Enduring Freedom], lançada em outubro de 2001, e a “Operação Liberdade para o Iraque” [orig. Operation Iraqi Freedom] iniciada em março de 2003, refletia aquela fé. Em todos os casos, a campanha teve início promissor, com as tropas dos EUA conseguindo acertar alguns golpes rápidos e impressionantes. Mas em nenhum caso, contudo, foram capazes de derrubar o oponente; nem sequer, de fato, de ver com clareza quem era o oponente. Desgraçadamente para Rumsfeld, os “terroristas” recusaram-se a jogar pelas regras de Rumsfeld, e as forças dos EUA mostraram ser menos inteligentes e ágeis do que faziam crer os seus equipamentos de alta tecnologia – e sua máquina de relações públicas pela imprensa. De fato, quando atacados por pequenos grupos de guerrilheiros ou enxames de jihadis, as forças dos EUA mostraram-se surpreendentemente lentas para entender quem, ou o quê, os atacara.

No Afeganistão, Rumsfeld deixou que a vitória lhe escapasse entre os dedos. No Iraque, o seu mau gerenciamento da campanha pôs os EUA face a face com completa derrota. O chefe de Rumsfeld sonhara com libertar (e, claro, dominar) todo o mundo islâmico, com uma série de golpes curtos e rápidos. Em vez disso, Bush obteve duas versões de uma longa, difícil, terrível campanha. Ao final de 2006, a “Choque e Pavor” estava acabada. Muito atrasado em relação ao resto do país e de todas as forças armadas, o presidente afinal perdeu a confiança nas teorias de seu secretário de Defesa. Resultado, Rumsfeld perdeu o emprego. O 1º Round chegou ao fim. Embaraçoso, mas os EUA perderam por pontos.

A era Petraeus

2º Round: Pacificação. Entra em cena o general David Petraeus. Mais que qualquer outro personagem com ou sem uniforme, Petraeus dominou a segunda fase da GACGGT. O 2º round começou com baixas expectativas. Idos eram os tempos da conversa de libertação. Idas, também, as previsões de vitórias relâmpago. Os EUA já aceitavam acordo por muito menos, embora continuassem a declarar vitória.

Petraeus apareceu com uma fórmula para restaurar um arremedo de ordem, oferecida a países já reduzidos a ruínas (resultado do 1º round). A ordem permitiria que os EUA conseguissem sair de lá, dando alguma impressão de que suas políticas tivessem alcançado alguns dos seus objetivos. Essa passou a ser a definição de trabalho, de “vitória”.

Petraeus concebeu a palavra Contrainsurgência (abreviada, COIN), como nome formal da tal fórmula. Em vez de tentar derrotar o inimigo, a COIN visava a facilitar o parto de um estado-nação viável e estável. Foi esse o objetivo declarado da “avançada” [orig. “surge”] no Iraque ordenada pelo presidente George W. Bush no final de 2006.

Com Petraeus no comando, a violência naquele país declinou verticalmente. Se esse efeito foi provocado, ou se foi pura coincidência[4] ainda não se sabe com certeza e discussão prossegue. Mesmo assim, o aparente sucesso de Petraeus convenceu alguns observadores de que a contrainsurgência numa escala global – GCOIN, como a chamavam – formaria doravante a base da estratégia nacional de segurança dos EUA. Eis ali, argumentavam, uma abordagem que conseguiria arrancar definitivamente os EUA, da GACGGT, com alguma espécie de vitória. Em vez de usar “choque e pavor” para libertar o mundo islâmico, as forças dos EUA aplicariam a doutrina da contrainsurgência para pacificá-lo.

A tarefa de comprovar a validade da teoria da COIN em áreas além do Iraque coube ao general Stanley McChrystal, nomeado com muito mais fanfarras, em 2009, para comandar as forças dos EUA e da OTAN no Afeganistão. Matérias de jornal celebraram McChrystal[5] como outro Petraeus, candidato ideal para repetir os sucessos já creditados ao “Rei David.”

O reinado de McChrystal começou num momento em que Washington viva tomada por um culto ao generalato. Em vez de a tecnologia ser o fator determinante do sucesso, como Rumsfeld acreditava, a chave era pôr no poder o general certo, e deixar que ele comandasse. Figuras políticas dos dois lados do plenário apressaram-se a declarar que McChrystal era o general certo para o Afeganistão. Especialistas de todos os lados juntaram-se ao coro[6].

Uma vez instalado em Kabul, o general estudou a situação e, para surpresa de ninguém, anunciou[7] que “o sucesso exige uma ampla campanha de contrainsurgência.” Para implementá-la seria necessário outra “avançada” afegã, em tudo semelhante à que, como se supunha, teria virado o jogo no Iraque. Em dezembro de 2009, embora dando mostras de nenhum entusiasmo, o presidente Barack Obama acedeu[8] ao pedido (ou ultimato) de seu general-no-comando. Aumentou rapidamente o número de soldados dos EUA enviados para combater no Afeganistão.

Nesse ponto, as coisas começaram a dar para trás. O avanço na direção de reduzir a insurgência ou melhorar as capacidades das forças de segurança afegãs era – até nas avaliações mais generosas – praticamente zero. McChrystal fez promessas[9] – como a de atender as necessidades básicas dos afegãos com “governo entregue numa caixa, pronto para funcionar” – que logo se mostrou absolutamente incapaz de cumprir. As relações com o governo do presidente Hamid Karzai permaneciam tensas. As relações com o vizinho Paquistão, que jamais haviam sido boas, só pioraram. Os dois governos manifestavam profundo desagrado[10] em face do que viam como comportamento insuportavelmente arrogante dos norte-americanos, que matavam ou feriam civis com incômoda frequência.

Para piorar, apesar dos elogios e muitas esperanças, a nomeação de McChrystal acabou por revelar-se gravemente errada: era o homem errado para o serviço. O que mais chamou a atenção, em McChrystal, foi a absoluta incapacidade de entender a necessidade de, no mínimo, fingir respeito[11] ao princípio constitucional segundo o qual quem manda nos militares é Washington, o poder civil. No verão de 2010, McChrystal já estava demitido. E Petraeus voltou à cena.

Em Washington (embora não em Kabul), a reputação superinflada de Petraeus fez crer que, com a estratégia de McChrystal de pacificação, o Afeganistão seria causa perdida. Com certeza absoluta o mais celebrado soldado de sua geração repetiria no Afeganistão a mágica que operara no Iraque, afirmando a própria grandeza e continuada viabilidade da COIN.

Mas, infelizmente, não aconteceria. As condições no Afeganistão melhoraram durante o período de Petraeus – embora “melhoraram” nem seja a palavra certa –, mas só muito modestamente. A guerra sem fim passou a ser o que qualquer um facilmente descreveria como “sem saída” [orig. guagmire]. Com considerável ânimo para simplificar as coisas, um relatório do próprio governo, o 2011 National Intelligence Estimate preferiu a palavra “impasse” [orig. stalemate].[12] Rapidamente já não se ouvia mais a conversa sobre “contrainsurgência ampla”. Com a linha de definição de sucesso despencando cada vez mais para baixo, a solução de abandonar a luta nas mãos das forças afegãs de segurança e voltar correndo para casa passou a ser anunciada como objetivo de guerra.

Essa missão ficou inconclusa, quando o próprio Petraeus tomou o rumo de casa, abandonando o exército para tornar-se diretor da CIA. Apesar de Petraeus continuar alvo de alta consideração, sua aposentadoria do serviço ativo deixou o culto ao generalato em situação mais, que menos, lastimável. Quando o general John Allen foi nomeado para substituir Petraeus – tornando-se assim o 8º oficial nomeado para comandar aquela inacabável Guerra do Afeganistão – já ninguém acreditava que algum general, por mais certo que fosse, faria mágicas. Nesse tom generalizante, terminou o 2º round da GACGGT.

A era Vickers

3º Round: Assassinato. Diferente de Donald Rumsfeld e David Petraeus, Michael Vickers[13] jamais alcançou o status de celebridade. Apesar disso, ninguém, nem uniformizado nem paisano, merece, mais que Vickers – que carrega o título de Subsecretário de Defesa para a Inteligência –, merece ser reconhecido como a figura emblemática do 3º round da GACGGT. Sua persona discreta, low-profile, adapta-se perfeitamente à última transfiguração pela qual passou a guerra. Poucos o conhecem, fora de Washington, o que é ótimo, porque ele comanda uma guerra à qual pouca gente fora de Washington continua a dar atenção.

Depois da aposentadoria do Secretário de Defesa Robert Gates, Vickers é o mais alto funcionário remanescente do Pentágono de George W. Bush. Seu currículo nada tem de eclético. Serviu nas Forças Especiais do Exército dos EUA e foi agente operacional da CIA. Assim disfarçado, teve papel central no apoio aos mujahedeen afegãos na guerra contra os ocupantes soviéticos nos anos 1980s. Depois, trabalhou num think tank em Washington, e obteve seu diploma PhD em estudos estratégicos na Johns Hopkins University (título da dissertação de conclusão de curso: “A Estrutura das Revoluções Militares”).

Nem durante a era Bush, Vickers jamais subscreveu as esperanças de que os EUA pudessem libertar ou pacificar o mundo islâmico. Sobre a GACGGT sempre teve diagnóstico que, mais singelo, impossível: “Só quero matar aqueles caras” – dizia ele. “Aqueles caras” eram os afiliados da al-Qaeda. Matar todos que queiram matar norte-americanos e não parar até matar o último: essa é a estratégia de Vickers, a qual, na presidência de Obama, suplantou a COIN como derradeira variante da estratégia dos EUA.

A abordagem de Vickers implica máxima agressividade para eliminar matadores potenciais, onde quer que se escondam, e usando para isso todos os meios necessários. Vickers “tende a raciocinar como gângster” – comenta um de seus admiradores[14]. “Ele entende as tendências e, em seguida, altera as regras do jogo, para torná-las mais vantajosas para o lado de vocês.”

No 3º round da GACGGT, trata-se exclusivamente de burlar, quebrar, ignorar e reinventar regras para torná-las vantajosas ao que se suponha que mais interesse aos EUA. Assim como a estratégia COIN suplantou a estratégia “choque e pavor”, um amplo, multidirecional programa de assassinatos seletivos suplantou a estratégia COIN, como expressão dominante do modo norte-americano de guerrear.

Os EUA estão fora do negócio de enviar imensos exércitos de infantaria para invadir e ocupar países no continente eurasiano. Robert Gates, quando ainda era secretário da Defesa, é autor da declaração definitiva[15] sobre o assunto. O negócio dos EUA, agora, é usar aviões-robôs, drones, armado[16] e forças de operações especiais[17] para assassinar qualquer um (e não escapa nem se for cidadão norte-americano) que o presidente dos EUA decida que causa incômodo intolerável. Com o presidente Obama, esses ataques proliferaram.

É o novo modus operandi dos EUA. Parafraseando aviso emitido pela secretária de Estado Hillary Clinton, matéria do Washington Post[18] resume as implicações disso: “Os EUA reservam-se o direito de atacar qualquer um que os EUA entendam que representam ameaça direta à segurança nacional dos EUA, em qualquer ponto do mundo.”

Não bastasse, agindo em nome dos EUA, o presidente exerce esse seu pressuposto direito sem avisar, sem considerar impedimentos de soberania nacional[19], sem autorização do Congresso, e sem consultar ninguém, além de Michael Vickers alguns outros poucos membros do aparelho nacional de segurança. Ao povo dos EUA cabe o papel de aplaudir, se e quando for informado de que algum assassinato seletivo foi bem sucedido. E aplaudimos.[20] Por exemplo, quando um grupo de ousados membros da Equipe 6 de SEALs entraram no Paquistão para mandar dessa para melhor Osama bin Laden com dois tiros certeiros. A vingança tantas vezes adiada tornou dispensável considerar, por um instante que fosse, as complicações políticas que o assassinato pudesse gerar.

É difícil prever como terminará o 3º round. O melhor que se pode dizer é que não terminará nem rapidamente nem bem. Como Israel descobriu, depois que se adotam assassinatos predefinidos como política, a lista de alvos sempre dá algum jeito de aumentar.

Nesses termos, o que se pode dizer, mesmo que tentativamente, sobre a GACGGT ainda em andamento?

Em termos operacionais, uma guerra que nasceu convencional, acabou por cair, progressivamente, sob controle dos que habitam o que Dick Cheney chamou uma vez de “o lado obscuro”[21], com implicações que poucos parecem interessados em explorar. Em termos estratégicos, uma guerra que, no início, tinha algumas expectativas utópicas, prossegue hoje sem nenhuma expectativa declarada e conhecida; o simples encadeamento dos eventos já deslocou qualquer consideração séria sobre objetivos. Em termos políticos, uma guerra que, antes, ocupava o centro do cenário da política nacional deslizou para o fundo obscuro do palco, o povo norte-americanos com outras preocupações e distrações; e as questões legais e morais que a guerra levantou flutuam por aí, ninguém sabe onde, soltas no ar.

Isso é avanço?

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