sábado, fevereiro 25, 2012

A Georgia não sai da cabeça deles

27/5/2004, Pepe Escobar, Asia Times Onlinehttp://www.atimes.com/atimes/Front_Page/FE27Aa01.html

NOTA DOS TRADUTORES: Em “Obama anda mesmo cantando o blues?” (23/2/2012, Asia Times Online e em português em http://redecastorphoto.blogspot.com/2012/02/pepe-escobar-obama-anda-mesmo-cantando.html), o autor, Pepe Escobar, em artigo sobre Obama, arremedo de bluezeiro-em-chefe, relembra uma série de artigos que publicou em 2004, em tour pela terra do blues, acompanhando George W. Bush, então em campanha pela reeleição. Selecionamos para traduzir um desses artigos, que talvez faça um interessante contraponto à sessão de blues na Casa Branca de Obama: do blues da Georgia, para o blues de Chicago, talvez? Ou: muda o blues, mas os EUA nunca mudam, por mais que se metam a querer changes, changes, changes nos regimes dos outros? Seja como for, lá se vão sete anos, de reeleição em reeleição, e mudança importante, nenhuma, por lá.

Aqui fica essa tradução, como nossa homenagem a Pepe Escobar, o mais importante jornalista brasileiro ativo no planeta, não por acaso jornalista e brasileiro que não tem nenhuma espécie de conexão – além da distância cada vez maior que o separa deles – com os jornalões do Grupo GAFE (Globo-Abril-Folha-Estadão).
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A Georgia não sai da cabeça deles
27/5/2004, Pepe Escobar, Asia Times Online
http://www.atimes.com/atimes/Front_Page/FE27Aa01.html

SAVANNAH, GeorgiaCool, calma, contida em seu charme neoclássico e colonial de muitas árvores, recusando-se a ser reduzida à condição de parque temático do Velho Sul, Savannah é tida, nos círculos das elites europeias, como a mais bela cidade dos EUA. Aqui, no primeiro acampamento na Georgia, a 13ª e última colônia americana, o general William Tecumseh Sherman, ao final da Guerra Civil, ofereceu seus “40 acres e uma mula” a todos os escravos negros libertos. Aqui, Flannery O'Connor escreveu obras primas. Aqui, Forrest Gump sentou-se num filme – num banco em Chippewa Square –, cantarolando que “a vida é como caixa de chocolates: você nunca sabe o que vai achar” (contem essa aos neoconservadores em Washington). E em duas semanas, o grande circo da cúpula do Grupo dos 8 (G8) das nações mais industrializadas aportará em Savannah com todo seu poder.

Savannah está terrivelmente preocupada. A reunião propriamente dita acontecerá a 120km daqui, em local ermo e isolado, na Sea Island, mas o grosso do exército de lambe-botas, diplomatas, jornalistas e da segurança estará circulando entre as magníficas mansões e praças manicuradas de Savannah. Dan Flynn, chefe de Polícia, não quer que a sóbria e pitoresca cidade de 130 mil habitantes seja convertida em “zona de guerra”: haverá protestos no Forsyth Park, copiado da Place de la Concorde em Paris e próximo do centro historico. Lojistas locais temerosos estão “exagerando nas reações”, segundo Flynn, e querem fechar todas as lojas e escritórios do centro. Muitos querem fechar logo também o assunto do Iraque. Na pensão da Sra. Wilkes, monumento histórico à culinária do sul, quem entrar ouve a opinião da proprietária, que ela oferece sem ironia: “Dia 30 de junho, devemos declarar vitória, trazer os soldados para casa, aposentar alguns do Pentágono e deixar que o canal Fox News conte ao mundo que vencemos.”

Tarde da noite, nas estradas vicinais no interior da Georgia, a caminho de Dublin, o único negócio que convida a entrar é o negócio da igreja. Não são raros os cartazes de “Apoiamos nossos soldados”. A retórica dos “agentes do mal” do presidente George W Bush encontra amplo eco entre os frequentadores das igrejas. Só uma, tarde da noite, na Highway 80, vê problema em Bush pôr grande parte do mundo num degrau inferior, no plano moral, abaixo dos EUA, convertendo “nossas boas ações” contra a al-Qaeda, numa cruzada moral contra o mundo islâmico.

Savannah é muito intimamente associada à sua base do Exército dos EUA, Fort Stewart. Ali, recentemente, o sargento Camilo Mejia foi julgado numa Corte Marcial e condenado, como desertor – sentença com a qual muitos concordam, em Savannah. Mejia é nicaraguense, portador de green-card (licença para trabalhar nos EUA, para estrangeiros), que se alistou no exército para aprender mais sobre a sociedade norte-americana. A guerra no Iraque horrorizou-o. E ele ofereceu-se para depor no Congresso sobre a tortura de prisioneiros que presenciou em Al Assad, em maio passado, meses antes de eclodir o escândalo de Abu Ghraib. Todd Ensign, diretor do grupo Citizen Soldier [soldado-cidadão], de ativistas antiguerra, que apóia o pessoal militar, está indignado: “Julgaram Camilo por ter-se recusado a voltar ao Iraque, porque não quer torturar gente. E estão julgando o cabo Jeremy Sivits, porque torturou.”

Super-Rangers dentro da Casa (Branca)
A Georgia não sai da cabeça de George W Bush – e não é o canto de Ray Charles. Mês passado, no luxo do Lodge Ritz-Carlton, Reynolds Plantation, a 75 minutos, rumo sul, de Atlanta, Bush posou de superstar para 300 convidados, individualmente os mais poderosos dos EUA, inclusive os donos de terra e empreendedores imobiliários da família Reynolds da Georgia. Os convidados dispensaram os 81 buracos para golfe, um SPA imperial e muita pescaria, canoagem e ski no plácido lago Oconee, para sentar num salão de conferências e ouvir Bush. É o pessoal que paga pelo grosso da multimilionária campanha de reeleição (US$200 milhões até aqui, e aumentando): são conhecidos como Pioneiros [orig. Pioneers] (os que arrecadam mais de $100 mil dólares); Rangers (até $200 mil) e agora também os Super-Rangers (os que até 15 de agosto conseguirem arrecadar $250 mil ou mais).

Pioneiros, Rangers e Super-Rangers são nada mais nada menos que os proprietários virtuais dos EUA, se Bush for reeleito: encarnação de um processo eleitoral totalmente mercantilizado. Vários são recompensados com postos no governo federal. Suas empresas ou multinacionais ganham gordos contratos federais que valem bilhões de dólares e, claro, beneficiam-se de leis ultra camaradas – especialmente sobre energia e poluição.

Segundo o grupo Texans for Public Justice, há, até agora, 630 superdoadores pró-Bush. Quase 20%, do círculo das finanças; 18% são advogados e lobbyistas. Quase 25% estão empregados no governo Bush (dentre os quais 24 embaixadores e dois membros do Gabinete). Em 2002, segundo pesquisas do grupo, mais de $3,5 bilhões em contratos federais foram entregues a 101 empresas: entre elas, havia 123 Pioneiros ou Rangers. Um total de 146 superdoadores de campanha de Bush estiveram envolvidos em escândalos empresariais, ou ajudaram empresas envolvidas em escândalos – no Texas (o escândalo Enron) –, ou em Wall Street, ou relacionados a poluição ou a questões de saúde pública. Os Super-Rangers só foram criados na reunião do Ritz-Carlton, mas já são 25.

Bush já estivera na Georgia, há mais de uma semana, acompanhado do Maquiavel Republicano, Karl Rove. Permaneceram ali por apenas quatro horas, primeiro num condomínio cercado em Atlanta, onde Bush participou de uma recepção nos jardins da casa de Robert Nardelli, presidente executivo da empresa Home Depot; na sequência, Bush foi convidado de honra de um jantar (convite a $25 mil por cabeça; no cardápio, carne, batata e legumes).


Agora, Savannah espera ansiosamente que Bush exponha as linhas de sua “clara estratégia” para o Iraque. Líderes mundiais, inclusive os aliados declarados, como o britânico Tony Blair e o japonês Junichiro Koizumi, e aliados muito relutantes, como Jacques Chirac da França, Gerhard Schroeder da Alemanha e Vladimir Putin da Rússia, que lá estarão com Bush, na Georgia, para o encontro do G8, dias 8-10 de junho, também esperam ansiosíssimos: não estão absolutamente convencidos da clareza da “clara estratégia” segundo a qual o governo Bush insiste em dizer que luta pela democracia no Iraque, ao mesmo tempo em que mantém lá 130 mil soldados entrincheirados que tudo controlam, contra a vontade da absoluta maioria do “povo iraquiano”.

O que Bush dirá aos seus pares, sobre Muqtada al-Sadr? Fontes xiitas na cidade santa de Najaf informam a Asia Times Online que o recentemente caído em desgraça Ahmed Chalabi tentará voltar a Najaf para instalar-se como mediador entre o movimento Sadrista e os EUA. Com a credibilidade abaixo de zero na rua iraquiana, difícil que algum xiita confie nele. Mas Chalabi é operador esperto e confia nas alianças que ligam seu Congresso Nacional Iraquiano e xiitas e curdos.

As fontes em Najaf destacam que, no momento, nenhum xiita pode ser visto como aliado de Washington contra Muqtada. O jogo, portanto, não visa a que os xiitas escolham entre Muqtada e o moderado Grande Aiatolá Ali al-Sistani. Trata-se é de escolher entre Muqtada e o pró-cônsul Paul Bremer.

Bush e o Pentágono simplesmente não podem admitir que os Sadristas já tenham alcançado vitória desse tipo. Seja já mártir ou não – os EUA continuam a procurá-lo “vivo ou morto” –, as forças de Muqtada continuarão lutando até o fim da ocupação. A guerra de resistência contra os EUA, depois da “entrega”, dia 30 de junho, será seguida por alguma espécie de guerra civil para detonar qualquer um que o enviado especial da ONU Lakhdar Brahimi instale como novo pró-cônsul disfarçado. Afinal, no longo prazo, dizem as fontes em Najaf, uma teocracia xiita iraquiana – que não reproduza o modelo Khomeini – é extremamente possível.

Não era exatamente o que o vice-secretário da Defesa e há muito tempo arquiteto da guerra Paul Wolfowitz tinha em mente. Além do mais, Chalabi, homem “deles” (dos neoconservadores), pode revelar-se um Frankenstein. Se não acabar na cadeia, Chalabi com certeza concorrerá às eleições em janeiro próximo, como nacionalista iraquiano, com plataforma de oposição virulenta à ocupação norte-americana.

Sempre pode piorar

Outros membros do G8 perguntarão a Bush: As coisas ainda podem piorar no Iraque? Podem. Abu Ghraib pode ser examinado como mais um efeito perverso da obsessão dos EUA com sexo e pornografia – uma indústria de mais de $10 bilhões anuais – misturada com a proliferação de reality shows, nos quais qualquer idiota tem seus 15 minutos de fama à Andy Warhol, inclusive torturadores amadores.

Sim, pode piorar. Os serviços de inteligência britânicos, franceses, russos e japoneses, todos eles, sabem que a segurança no Iraque é total desastre. O processo de reconstrução foi virtualmente interrompido. O escândalo de superfaturamento pela Halliburton teima em não sumir de cena. E num fascinante cruzamento de cinema e política, o amargo documentário anti-Bush de Michael Moore, “Fahrenheit 9/11” acaba de tornar-se o primeiro documentário, em quase meio século, a vencer a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes.

“O senhor lembra de alguns erros que tenha cometido como presidente?” A pergunta foi feita a Bush, em sua última conferência de imprensa, em abril. Miraculosamente, não lhe ocorreu erro algum digno de nota. Na Georgia, Chirac, Schroeder ou Putin podem atrever-se a repetir a mesma pergunta, no privado. Pouco provável que obtenham resposta.

O que nos deixa com Juan Cole, professor de história da universidade de Michigan e dos maiores especialistas em Iraque, nos EUA: “Outro dia, eu disse que achava que Bush estava empurrando a Europa na direção da esquerda, com suas políticas. Acho que também está empurrando o mundo xiita na direção da direita radical. Temo que meus netos ainda estarão pagando pelo torvelinho que George W Bush está semeando na cidade do Imã Hussein [referência ao bombardeio, com F-16s, contra Karbala]. No início de abril, concluí que Bush perdeu o Iraque. Só até agora, já perdeu também todo o mundo muçulmano.”

Daqui a duas semanas, Bush pode já ter perdido também o resto do mundo. Quem sabe Forrest Gump possa ajudar.

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