sábado, fevereiro 25, 2012

Manipular a realidade é atacar a democracia

Entreouvido na Vila Vudu:
Fato é que os norte-americanos médios são MUITO dignos de pena.
É como se os coitados vivessem dia e noite sob as metralhadoras de trocentas redes Globo!
Quem pensar que a Folha de S.Paulo é o pior jornal do mundo, não conhece o New York Times, o Wall Street Journal!
(E os americanos médios, aqueles infelizes, sempre ameaçados de sem mandados morrer à toa
no Vietnã, no Iraque, do Afeganistão, no Paquistão, no Irã...)

Em meados de fevereiro, alguns dos principais comandantes da inteligência dos EUA compareceram ante a Comissão de Inteligência do Senado para apresentar seu relatório anual sobre “ameaças mundiais atuais e futuras” à segurança nacional dos EUA. Depuseram naquela Comissão, dentre outros, o diretor da CIA David Petraeus, o Diretor da Inteligência Nacional James Clapper, o diretor da Agência de Inteligência da Defesa tenente-general Ronald Burgess e o diretor do FBI Robert Mueller.

O que disseram sobre o que é e não é ameaça real aos EUA e a reação dos senadores daquela Comissão revelou-se exercício de pensamento unidimensional. O que é fato? Ora, o que concorde com o ponto de vista deles. Aqui, dois exemplos daqueles depoimentos:

1. Sobre o “inimigo interno” – Indivíduos renegados que operam “dentro das fileiras” da comunidade de inteligência e das forças armadas são hoje grave ameaça à segurança dos EUA. Segundo o tenente-general Burgess, são “lobos solitários autorradicalizados”[1]. Falou sobre “vazamentos massivos pelo site WikiLeaks”.

Todos os presentes envolvidos naquelas audiências concordaram, mesmo sabendo que é ideia baseada no pressoposto duvidoso, mas não questionado, de que o comportamento das forças do governo dos EUA seria modelo de comportamento aceitável normal de militares e agentes de inteligência. Os que trabalham para o governo, mas consideram inaceitável esse comportamento, os que o veem de fato como traição criminosa contra toda a decência humana, e, por isso, trabalham contra aquela pré-condenação, são perigos “autorradicalizados” à segurança nacional.

Mas e se o apoio a regimes opressores e racistas, a invasão de outros países baseada em mentiras, a matança de milhares e mais milhares de civis e o uso oficial de tortura e da prática das “entregas excepcionais” [prisioneiros entregues pelos EUA a outros governos, para serem torturados] for considerado comportamento radical e inadmisível? Nesse caso, os que denunciem esse extremismo não poderiam ser vistos como radicais. Seriam campeões da normalidade mais racional, seriam os heróis dos tempos que vivemos.

Entendo que se trate exatamente disso. A busca em que os EUA se empenham hoje por alegados interesses nacionais está sendo conduzida por uma gangue metida em ternos caros, que tomaram para eles a tarefa de definir como radicais os heróis cidadãos que denunciam aquela gangue e fatos conhecidos de muitos. A gangue teme que mais e mais norte-americanos vejam afinal a natureza bárbara das políticas da gangue e levantem-se contra ela e a acusem. Então, para impedir que assim seja, a gangue criminaliza (e demoniza) os que veem e dizem a verdade.

2. A ameaça iraniana – Segundo James Clapper, diretor da Inteligência Nacional, “apesar do alarido que cerca os movimentos do Irã em busca de tecnologia nuclear, é baixa a probabilidade de os líderes iranianos desenvolverem armas nucleares, se não forem atacados.” E além disso, disse também Clapper, dificilmente os iranianos iniciarão ou provocarão intencionalmente um conflito”.

Como os senadores da Comissão de Inteligência receberam essa opinião de especialista? A maioria deles recusou-se a acreditar, fazendo eco ao que a maioria do Congresso diz e praticamente toda a imprensa dos EUA repete. A norma, nesse caso, é a que o Sen. Lindsey Graham, Republicano da Carolina do Sul respondeu a “Pessoalmente, estou convencido de que os iranianos estão a caminho de desenvolver uma bomba atômica.”

Calma lá! Isso, só o senhor e sua gangue, Sen. Graham. Como?! O senhor e sua gangue não vivem dizendo que os serviços de inteligência dos EUA são os melhores do mundo e sabem do que estão falando? E, de repente, o senhor não acredita no que dizem?! Por que não?! Que outras fontes de informação os senhores têm sobre o Irã, que os autoriza a dizer o que dizem? E é fonte mais confiável de informação que a CIA, a DIA, a NSA, etc.?

Ah! É o lobby sionista! A fonte de informação de Graham e dos senadores que o seguem, sobre qualquer coisa que tenha a ver com Israel (e assunto iraniano é caso exemplar, sempre, da paranóia dos israelenses) é a cartilha das declarações do AIPAC (American Israel Public Affairs Committee).

Esses políticos jamais discordarão desse lobby, nem quando o que dizem contradiz o que diz a inteligência dos EUA. Isso, porque o lobby contribui com dinheiro para suas campanhas eleitorais e ameaça impedir que se reelejam, se os senadores não obedecerem. A comunidade de inteligência dos EUA simplesmente não consegue fazer-se ouvir, contra o lobby.

Assim, mais uma vez, somos todos obrigados a ouvir ‘notícias’ construídas para apoiar as ideias de um grupo. O que significa ser um perigoso “radical”? Ser um perigoso “radical” é denunciar os crimes do governo. E o que é “fato”, quando se trata de Irã? “Fato” será o que o comitê que financia a reeleição de um senador decida que seja “fato”.

E o que é “fato” para o resto dos norte-americanos?
Fato é o que cremos e vemos. E, em vários sentidos importantes, nós sabemos dos fatos. Sabemos que se alguém pula da janela de um prédio, a lei da gravidade cobra seu preço. Em termos gerais, muitos de nós conhecemos os fatos que nos cercam no ambiente imediato no qual vivemos todos os dias. O que quero dizer com isso?

Vivemos a vida de todos os dias em ambiente relativamente limitado, local. Nesse espaço temos experiências diretas, interativas, diárias, a partir das quais conseguimos saber razoavelmente o que esperar. Nossas experiências têm bom valor preditivo. Se alguém aparece dizendo sandices – que quem vive na cidade vizinha está fabricando uma bomba atômica que usará para nos explodir –, sabemos imediatamente que é sandice, loucura.

Mas e quando nos falam de gente que vive longe? Quem de nós conhece o Irã, quantos viveram lá, quantos conversam com iranianos? Nada, na nossa vida diária, nos habilita a emitir julgamentos sobre o que é real é o que não é real, do que se passa por lá.

Fazemos o quê, nesse caso? Em geral, vivemos como se aqueles lugares distantes não existissem, a menos que haja motivo próximo para crer que o que aconteça por lá venha a ter algum impacto em nossas vidas. Para isso, muitos de nós confiam cegamente nos que nos são apresentados como “especialistas”: praticamente sempre são funcionários do estado ou ‘especialistas’ de mídia, “cabeças falantes”.

Aí pode haver um grave problema. O que assegura que sejam especialistas e mereçam confiança? Como se pode saber que aqueles ‘especialistas’ do governo ou da imprensa não trabalham por agendas próprias que nunca nos são expostas e que modelam todos os seus julgamentos? Como sugerem os dois exemplos acima, políticos eleitos também podem perfeitamente trabalhar a partir de pressupostos que, se olhados a frio, são pressupostos anti-humanos. Qualquer deles, aliado a interesses especiais e que jamais se veem com clareza, é perfeitamente capaz de declarar que todas as informações dos serviços de inteligência dos EUA são falsas, não passam de bobagens. ‘Real’ é o que já tinham na cabeça antes de os serviços de inteligência porem-se a trabalhar. E quanto a nós, os que dependemos, para viver, da nossa experiência diária, imediata, acreditaremos em quê, em quem?

Quando não se consegue saber o que é fato e o que é opinião, o que é fato e o que é ficção, talvez possamos usar algumas regras simples, para assim forçar os políticos a agir de modo a minimizar (em vez de multiplicar por mil) os erros. Por exemplo, em caso de dúvida quanto a em quem ou em que acreditar, os cidadãos podemos começar por:

1. Duvidar sempre, o mais possível, em tudo que digam os políticos e a imprensa. Lembremos os últimos desastres, nos EUA (o maior dos quais foi a invasão do Iraque), quando o que nos diziam sobre o que seria ‘fato’ não passou de mentiras e mais mentiras. Os cidadãos temos o dever, para conosco e para com nosso país, de buscar várias, muitas, fontes de informação.

2. Exigir que os políticos eleitos trabalhem a partir do melhor cenário possível, por mais que se preparem para o pior. Na maior parte das vezes, a opinião dos ‘especialistas’ sobre o que seriam ameaças externas contra nós é opinião ideologicamente distorcida; muitas vezes é exagerada; muitas vezes, também, é simplesmente errada (por exemplo, o que tantos ‘especialistas’ nos diziam sobre o Vietnã); ou é opinião que segue uma ou outra agenda específica, interesses especiais (por exemplo, no caso do Iraque, no caso do Irã e sempre que a imprensa fala sobre o “santificado” estado de Israel e o estado “terrorista” dos palestinos).

3. Exigir que, nas relações exteriores, tente-se primeiro e principalmente, a via diplomática. A guerra deve ser necessariamente o último recurso, recurso extremo, que poucos conhecem de perto e a maioria dos políticos só viu em livros ou no cinema. Se a conhecessem de perto, com certeza não seriam tão rápidos em mandar para o front, na imensa maioria das vezes, só os filhos dos outros.

4. Exigir punição exemplar aos que mintam sabendo que mentem e agridem leis internacionais e direitos humanos (como a Convenção de Genebra e as muitas leis que proíbem a tortura). Há várias boas razões para que aquelas leis existam. Atropelá-las é voltar ao estado de barbárie.

É estranho, mas, nas democracias, os que não se empenhem nas discussões políticas, que não se esforcem para influenciar o curso dos acontecimentos, acabam por ser responsáveis por tudo que seus governos façam. É assim, porque, nas democracias, quem não participa abdica do direito potencial de atuar no mundo.

Ninguém pode recolher-se completamente à existência privada. Quem o faça, logo verá que a gangue dos ternos caros ganha novas chances de o derrotar. E afinal, a gangue dos ternos caros lá estará, agindo também em nome dos que abdicam do direito de participar e influir.