sexta-feira, fevereiro 24, 2012

Barack e Mitt, na dança do dragão

20/2/2012, Pepe Escobar (de Hong Kong), Al-Jazeera, Qatar
http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2012/02/201221691330988678.html

Foi até bonitinho, em certo sentido, aquele encontro no Valentine's Day, na Casa Branca, entre o presidente dos EUA Barack Obama e o muito provavelmente próximo presidente da China, Xi Jinping.

Alto, simpático, autoconfiante, sempre pronto a sorrir, casado (2º casamento) com uma estrela pop, Peng Liyuan, cantora do Exército da Libertação do Povo[1], com uma filha que estuda em Harvard, e fã de filmes de guerra feitos em Hollywood, Xi dificilmente poderia ser graficamente mais diferente de Hu Jintao, que está de partida, e sempre parece o próprio retrato congelado em cera, no museu de Madame Tussaud.

Mas, como diria uma Tina Turner remixed, o que o amor teria a ver com isso[2]? Não muito. Enquanto a imprensa chinesa estampava nas primeiras páginas que “a águia e o dragão” devem empenhar-se para conquistar “mútua confiança estratégica”, Xi – como alguém que sai para um encontro às cegas e já logo no aperitivo tem de ouvir reclamações – recebeu lições de Obama contra a desvalorização do yuan, sobre direitos humanos e sobre o Oriente Médio.

Em pouco mais de um ano, Xi Jinping será o novo presidente da China – de fato, o primeiro entre pares no ultrafechado comitê político de nove membros que comanda a China, em Pequim; quer dizer, comitê do povo, que aprovou todas as políticas cruciais contidas no mais recente plano quinquenal chinês vigente a partir de 2011.

Foi estrada longa e ventosa[3] desde que os EUA caíram de amores pelo Pequeno Timoneiro, Deng Xiaoping, durante sua famosa viagem, em 1979, aos EUA[4]. Ao voltar para Pequim, Deng – inspirado em Cingapura, mas também pelo que vira naquela viagem – deslanchou com alarido suas reformas, “atravessar o rio, sentindo as pedras”[5], mas sempre de olho no objetivo focado com precisão de laser: “Há glória em enriquecer”[6].

Pouco mais de três décadas adiante, os intelectuais do presidente Mao forçados a viver como camponeses foram substituídos por plutocratas turbo-capitalistas urbanos. A China é a segunda maior economia e a fábrica do mundo, superpotência emergente e principal credor dos EUA. E Xi é o homem com o qual ou Obama ou Mitt Romney – se não for atropelado na estrada, cortesia de uma legião de direitistas irados – terá de negociar diretamente. Mas... como?

Aí está o problema – porque as elites de Washington eternamente obcecadas com a China, estão hoje, de fato e sobretudo, perplexas, ante o dragão. Washington pede à China tudo e nada – e ninguém jamais entende o que Washington está disposta a oferecer. É essa a parceria – a “mútua confiança estratégica” que Pequim está buscando? Ou se trata só de absoluta competição estratégica, abertamente confrontacional? Conseguirão modelar juntos um mundo multipolar; ou já vivemos cercados pela névoa densa de uma Nova Guerra Fria?

Barack's blues

Desde o final do ano passado, a secretária de Estado dos EUA Hillary Clinton anda falando sobre o Século Americano Pacífico. E no início de janeiro – e no Pentágono, nada mais nada menos – Obama anunciou a nova estratégia de defesa dos EUA[7], que foi imediatamente descartada pelo Partido da Guerra, que a declarou “fracasso liderado pela retaguarda”.

A nova estratégia de defesa dos EUA foi espertamente concebida e está cheia de buracos negros. Pode ser facilmente interpretada como primeiro esboço para uma Nova Guerra Fria que, dessa vez, seria guerreada na Ásia. Pequim lê a coisa e só vê “cercamento”, nada de mútua confiança. Abundam as “projeções de poder” do Pentágono – do Golfo Persa ao Mar do Sul da China.

Quanto à muito elogiada “deriva” [orig. pivoting], do Oriente Médio em direção à Ásia, implica de fato escala de longa duração no Sudoeste da Ásia – no Irã, por exemplo. Os três principais mantras dos EUA para o Oriente Médio permanecem inalterados: apoio incondicional às monarquias/emirados do Conselho de Cooperação do Golfo (esqueçam Primaveras Árabes no Golfo); “defesa da segurança de Israel”; e, sobretudo, “conter” o Irã.

Pode-se, sim, identificar uma “deriva” na ênfase especial dedicada a impedir que o Irã – e a China – ganhem assimetria no campo da eletrônica e da cyberguerra, e que desenvolvam mísseis balísticos e cruzadores top-class e defesas aéreas sofisticadas.

O que o Pentágono chama de “reequilibramento” [orig. rebalancing] " na direção do Pacífico Asiático – às vezes descrito como “reposicionamento” [orig. repositioning] – é centrado em manipulação monstro de emoções complexas, sobretudo na Índia e no Japão, e do outro lado do Mar do Sul da China, sobre o espetacular crescimento chinês.

A China é descrita como “assertiva” e também como “revanchista” – e nos dois casos implica ameaça. O cenário está posto para que Washington apareça como salvadora – posando como potência benigna, de fora, para garantir a segurança regional.

Em muitas partes da Ásia, dificilmente essa ideia será levada a sério. Não com a dívida interna dos EUA (que agora já é maior que toda a economia dos EUA) já acima de $5 trilhões, e aumentando. E não com o Japão, a Coreia do Sul, Taiwan e os países da Associação de Nações do Sudeste Asiático [ing. ASEAN] sendo progressivamente integrados à economia da China.

Acima de tudo, Pequim é extremamente flexível: é sua política oficial criar situações de “ganha-ganha” no comércio e nos negócios por todo o Pacífico Asiático, como o grupo “10+1” (países membros da ASEAN mais a China) no Sudeste da Ásia.

Como comentou um grupo de banqueiros expatriados em Hong Kong, meio de brincadeira meio a sério, a impressão geral que se tem é que os impérios não decaem e morrem; eles “derivam” de um quintal dominado (o Oriente Médio), para outro (o leste da Ásia).

A opera buffa de Mitt
Consideremos agora uma possível presidência de Mitt Romney. Mitt é amplamente visto como candidato do crème de la crème do 1%; seus apoiadores megamilionários incluem os executivos de Bain Capital (sua ex-empresa), banqueiros de Goldman Sachs e magnatas de fundos hedge.

Incluídos em sua equipe de política exterior[8], os encarregados de construir a política para o Pacífico Asiático, estão Evan Feigenbaum, um ex-vice secretário de Estado assistente para a Ásia Central e do Sul, do segundo governo Bush; Aaron Friedberg, ex-vice assistente para assuntos de segurança nacional e diretor de planejamento de políticas do gabinete de Dick Cheney; e Kent Lucken, diretor de administração do Citigroup Private Bank em Boston.

O principal documento da política exterior de Romney leva o título de An American Century [Um século americano][9]. À parte o fato de que repete exatamente a retórica de Obama/Hillary, é uma obra prima do pensamento neoconservador. Não surpreende que seja: reproduz, quase palavra a palavra, a agenda dos neoconservadores do defunto Project for the New American Century (PNAC) – a bíblia daquele grupo de adoradores da guerra que nos deram a invasão e a ocupação do Iraque.

O principal autor do documento de Romney é ninguém menos que Eliot Cohen, atualmente professor de estudos estratégicos na Escola de Estudos Internacionais Avançados [ing. SAIS] na universidade Johns Hopkins – a mais completa escola de treinamento de neoconservadores.

Cohen, protegido do infame Paul Wolfowitz, é um dos criadores do PNAC, em 1997. Imediatamente depois do 11/9, sabe-se que introduziu o conhecido conceito de “IV Guerra Mundial”, em que conectava Saddam Hussein ao 11/9 e apresentava o Iraque[10] como “o grande prêmio”.

Dick Cheney ajudou-o a conseguir um emprego de conselheiro da então secretária de Estado Condoleezza Rice em 2007. Confirmando mais uma vez que Washington é o eterno presente que sempre vem, Cohen é agora um dos principais conselheiros de Romney.

Fácil de prever que o documento de Cohen – o mapa do caminho da política exterior de Mitt – é uma orgia do mais puro neoimperialismo. Podem chamá-lo de Governo Bush III. Pois, para que se tenha uma ideia da loucura que grassa atualmente entre os Republicanos, aquele documento ainda não parece suficientemente linha dura, para os adoradores de guerras que pontificam nas páginas de editoriais do Washington Post e do Wall Street Journal.

Eis um exemplo da pegada média da política exterior de Mitt Romney. Cohen, o ventríloquo, fez Mitt destacar que “os EUA aplicarão todo o espectro de poder hard e soft para influenciar os eventos antes de que os conflitos irrompam” (que soa como música para os adoradores da doutrina de Dominação de Pleno Espectro do Pentágono).

E, copiando a nova doutrina de Obama para a China: “os EUA devem manter e expandir a presença naval no Pacífico Ocidental” e devem “fechar todas as alternativas para que a China expanda sua influência por coerção”.

A cereja do bolo, claro, é “um robusto sistema de defesa nacional, de vários estágios de mísseis balísticos, para deter e prevenir ataques nucleares contra o território pátrio e contra nossos aliados”. Não faz lembrar “Marte Ataca!” de Tim Burton[11]?

Pelo menos até agora, na campanha, Romney ainda não antagonizou a China, como fizeram os outros pré-candidatos Republicanos. Mas não há como duvidar: eleito presidente, Romney imediatamente atacará o Irã – porque Eliot Cohen disse. Claro que não fala disso a eleitores que nem desconfiam que guerra contra o Irã é guerra contra a China – com todo o cataclismo de consequências imprevisíveis incluído.

Na vida real, geopoliticamente, já está emergindo uma versão remixed do clássico equilíbrio de poderes entre um grupo de nações, num arco de leste a oeste. O unilateralismo pode estar acabado – mas continua bem vivo e ativado nas plataformas oficiais de governo de ambos, de Obama e de Romney. Com Xi Jinping começando a atravessar o rio sentindo as pedras, o que ele menos vê naquelas águas lodosas é “mútua confiança estratégica”.

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[2] Foi o segundo single gravado por Tina Turner, em 1984. Quem queira, pode ouvi-la em http://www.youtube.com/watch?v=YqWkFF-TbMU&feature=related [NTs].
[3] Orig. a long and winding road; é título e verso de canção de Paul McCartney, dos Beatles, do filme Let it be, de 1970. Pode ser ouvida (com orquestração do filme, como se lê nos comentários com os previsíveis protestos) em http://www.youtube.com/watch?v=-cUaO1P2mfo [NTs].
[5] Moshe shitou guo He, “atravessar o rio, sentindo as pedras”, é expressão muito repetida entre os chineses. Deng Xiaoping usou a expressão em outubro de 1984, num fórum de cooperação econômica entre chineses e representantes estrangeiros. “Quis dizer que, ao levar adiante as reformas e políticas de “porta aberta”, na construção do socialismo com características chinesas, não havia modelo a seguir, e o povo teria de avançar passo a passo, analisando cada situação a partir da própria experiência, positiva e negativa. Mao governara o país a partir de um conjunto de doutrinas, mas Deng entendia que a prática é o único critério para testar a verdade. Essa é considerada a mais importante contribuição do governante que foi chamado “arquiteto geral” das reformas, na China.” (HE, Henry Yuhuai, Dictionary of the political thought of the People’s Republic of China, p. 287, Google Books) [NT].
[6] Não foi possível confirmar, de fonte respeitável, em toda a internet, que Deng Xiaoping algum dia tenha dito essa frase [NTs].