14/2/2012, *Jeremy Scahill, The Nation
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Soldados da Brigada Mecanizada 25 próximos da linha de frente em Zinjibar, Iêmen. Crédito da imagem: Richard Rowley, Big Noise Films |
O general Mohammed al-Sumali viaja do banco do passageiro em seu Toyota Land Cruiser blindado, pela estrada deserta que liga o porto iemenita de Aden à província de Abyan, onde islamistas tomaram Zinjibar, capital provincial. Sumali, musculoso, de óculos e bigodes, é o comandante da 25ª Brigada Motorizada das Forças Armadas do Iêmen, e encarregado de expulsar de Zinjibar os guerrilheiros islamistas. A missão de Sumali é considerada internacionalmente importante: retomar Zinjibar é visto por muitos como o teste final do regime agonizante de Ali Abdullah Saleh, presidente do Iêmen, muito impopular, que se serviu da certeza dos EUA de que seria aliado deles na luta contra o terrorismo, para segurar-se no poder.
Mohammed al-Sumali |
O único tráfego que se vê na estrada é de refugiados que tentam escapar dos combates e rumam para Aden, e reforços militares que rumam para Zinjibar. Sumali não queria viajar naquele dia para o front, e tentara dissuadir os jornalistas em seu gabinete. “Há perigo de fogo de morteiros contra vocês”, nos disse ele. Os militantes de Zinjibar haviam tentado, por duas vezes, assassinar o general naquele mesmo carro. Há um furo de bala no para-brisa, pouco acima de onde está sua cabeça; e outro na janela do lado, as linhas do impacto das balas bem visíveis no vidro. Depois que concordamos com não responsabilizá-los, nem o general nem seus homens, pelo que nos acontecesse, ele afinal cedeu, embarcamos e partimos.
A estrada acompanha o litoral do Mar da Arábia, e nela se veem restos de cartuchos de morteiros, tanques russos T-72 meio enterrados nas dunas de areia e um ou outro camelo andarilho. E o general Sumali conta sua versão do que aconteceu dia 27/5/2011. Naquele dia, várias centenas de militantes sitiaram Zinjibar, 30 milhas nordeste da importante cidade de Aden, no sul; mataram vários soldados, expulsaram os militares locais e em dois dias controlavam a cidade. Sumali atribui o sucesso da operação guerrilheira a uma “falha de inteligência” e explica que “Fomos surpreendidos no final de maio pelo fluxo de grande número de militantes terroristas para Zinjibar”. Acrescenta que os guerrilheiros “atacaram sites de segurança. Conseguiram tomar aquelas instituições. Fomos surpreendidos quando o governador, deputados e outras autoridades locais fugiram para Aden”. O general Sumali conta que, enquanto os militares iemenitas começavam a enfrentar os guerrilheiros, os homens do Centro de Segurança do Iêmen fugiram, abandonando, durante a fuga, armamento pesado. Essas forças do Centro de Segurança do Iêmen, cuja unidade antiterrorismo é armada, treinada e financiada pelos EUA, são comandadas por um sobrinho do presidente Saleh, Yahya. (Jornal ligado aos guerrilheiros noticiou que foram confiscadas “peças de artilharia pesada, moderno armamento antiaéreo, vários tanques e veículos blindados de transporte, além de vastas quantidades de muitos tipos de munição.”)
Sumali diz que suas forças tentaram repelir o ataque a Zinjibar no início de junho, quando foram atacadas por guerrilheiros que usavam o armamento confiscado das unidades do Centro de Segurança do Iêmen. “Muitos dos meus homens foram mortos”, diz ele. Os guerrilheiros islamistas também organizaram vários ataques contra a base da 25ª Motorizada, na área sul de Zinjibar. No total, foram mortos mais de 230 soldados iemenitas em combates contra os guerrilheiros, desde maio passado. “São inacreditavelmente valentes” – diz o general, falando dos guerrilheiros. “Tivesse eu um exército de homens valentes como eles, conquistaria o mundo.”
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Segundo críticos do agonizante regime de Saleh, o relato de Sumali é até generoso sobre o papel que as forças de segurança do Iêmen, em Zinjibar. Dizem que as forças de Saleh deixaram que a cidade fosse ocupada. A luta ali começou com Saleh enfrentando protestos dentro e fora do Iêmen, que exigiam sua renúncia; vários de seus principais aliados já haviam desertado e juntaram-se ao crescente movimento de oposição. Depois de 33 anos de repressão à oposição, dizem eles, Saleh viu que o fim estava próximo. “O próprio Saleh, de fato, entregou Zinjibar àqueles guerrilheiros” – diz Abdul Ghani al Iryani, analista político muito bem relacionado. “Saleh ordenou que sua força policial evacuasse a cidade e a entregasse aos guerrilheiros, porque desejava enviar ao mundo a mensagem de que, sem ele, o Iêmen cairia em mãos de terroristas”. Essa teoria, embora não haja como comprová-la, não é desprovida de sentido. Desde a guerra dos mujahedeen contra os soviéticos no Afeganistão, nos anos 1980s, continuando depois do 11/9, Saleh dedicou-se a ampliar a ameaça que viria da Al-Qaeda e de outros grupos militantes, para arrancar dos EUA e da Arábia Saudita novos financiamentos e mais armas para a luta antiterrorismo, com o que conseguia reforçar o próprio poder dentro do país e neutralizar a oposição.
Funcionário do governo iemenita, que pediu para não ser identificado, porque não tem autorização para comentar assuntos militares, admitiu que soldados iemenitas da Guarda Republicana treinados e pagos pelos EUA, não responderam ao fogo quando os guerrilheiros entraram na cidade. Aquelas forças eram comandadas pelo filho de Saleh, Ahmed Ali. Sequer as forças leais a um dos militares mais poderosos do país, o general Ali Mohsen, comandante da 1ª Divisão Blindada, ofereceram qualquer resistência. Dois meses antes de Zinjibar ser ocupada por guerrilheiros, Mohsen havia desertado e passara a apoiar o movimento pela derrubada do governo de Saleh.
Iêmen - Mapa político com estradas e principais cidades Clique na imagem para aumentar |
Questão também controversa é quem, exatamente, seriam os guerrilheiros que tomaram Zinjibar. Segundo o governo do Iêmen, seriam agentes da Al-Qaeda na Península Arábica (AQPA), grupo que Washington identificou como a mais perigosa ameaça terrorista, como grupo, que os EUA enfrentavam. Mas os guerrilheiros que tomaram a cidade nada disseram sobre AQPA. Apresentaram-se como novo grupo, recém constituído, Ansar al Sharia, Apoiadores da Xaria. Altos funcionários do governo do Iêmen disseram-me que Ansar al Sharia é apenas mais uma fachada da Al-Qaeda; que a primeira referência pública ao grupo aparecera uma semana antes do ataque a Zinjibar, na fala de um alto clérigo da AQPA, Adil al-Abab. “O nome Ansar al Sharia é o que usamos para nos apresentar em áreas nas quais trabalhamos para explicar ao povo sobre nosso trabalho e nossos objetivos, e que estamos no caminho de Alá” – dissera o clérigo, acrescentando que o novo nome visava a destacar a mensagem do grupo, evitando que fosse contaminada pelo peso da “grife” Al-Qaeda. Seja o grupo Ansar al Sharia mais independente das origens, ou mesmo que seja resultado de simples mudança de nome da AQPA, como diz Abab, a fama do grupo logo extrapolaria as esferas historicamente limitadas de influência da Al-Qaeda no Iêmen, ao mesmo tempo em que popularizaria alguns dos objetivos centrais da AQPA.
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Seguindo viagem com o general Sumali pela estrada abandonada, passamos pelo Estádio “Unidade” 22 de maio [orig. May 22 “Unity” Stadium], meticulosamente remodelado para o 20º Campeonato de Futebol do Golfo, de novembro de 2010. Deveria ser o símbolo de que o Iêmen seria destino seguro para os turistas. De fato, o país foi visitado por milhares de torcedores – muitos vindos dos vizinhos, Arábia Saudita e África Ocidental – para torcer por suas equipes. Construíram-se hotéis de luxo para a ocasião, e dignitários estrangeiros, inclusive alguns chefes de Estado, visitaram o Iêmen para as cerimônias de abertura do Campeonato, que foram presididas por Saleh. Foi lançada, simultaneamente, uma campanha que envolveu clérigos “moderados” de outros países árabes, denominada “a Batalha de Corações e Mentes contra a Al-Qaeda”.
Seis meses depois, os novos hotéis estão desertos e o estádio tornou-se símbolo de instabilidade. Durante a batalha por Zinjibar, os guerrilheiros tomaram o estádio e os soldados de Sumali tiveram de bombardear o estádio para forçar os guerrilheiros a abandoná-lo. Os danos são visíveis nas ruínas das arquibancadas superiores.
Ultrapassamos as primeiras linhas, nos arredores de Zinjibar, “Tiger 1,” e andamos meia milha até “Tiger 2.” Sumali, com relutância, concorda com nos deixar sair do carro. “Só dois minutos”, diz ele. “Há perigo aqui.” O general é logo cercado por seus soldados. Parecem magros e cansados, vários deles com barbas por fazer e uniformes em farrapos, ou sem uniforme. Alguns pedem que Sumali autorize o pagamento de soldo adicional por ação em combate. Um dos soldados diz ao general: “Eu estava com o senhor quando o senhor foi emboscado. Ajudei a repelir o ataque.” Sumali escreve algo numa folha de papel e entrega ao soldado. A cena continua, até que Sumali volta para o Toyota. Enquanto nos afastamos, ele fala de dentro do veículo blindado, por um alto-falante, aos soldados. “Continuem a luta. Não cedam!”
Sumali diz-me que não pode “nem confirmar nem negar” que o grupo Ansar al Sharia seja de fato parte da AQPA. “O que me importa, como soldado, é que levantaram-se em armas contra nós. Quem quer que ataque nossas instituições e acampamentos militares e mate nossos soldados, será combatido por nós, sejam ligados à Al-Qaeda ou ao grupo Ansar al Sharia”, diz ele. “Pouco me importa o nome que se deem. Não posso confirmar que Ansar al Sharia seja ligado à Al-Qaeda, ou se é grupo independente”.
A tomada de Zinjibar aconteceu num momento em que o regime de Saleh desintegrava-se e o presidente estava absolutamente concentrado na luta contra os que queriam derrubá-lo do poder. “A crescente instabilidade no Iêmen garantiu à eles [AQPA] maior liberdade para planejar e executar suas operações”, disse o diretor da inteligência nacional, James Clapper, à Comissão de Inteligência do Senado, dia 31 de janeiro. “A AQPA explorou a agitação política para adotar estratégia mais agressiva no sul do Iêmen, e continua a ameaçar interesses diplomáticos ocidentais e dos EUA.” E Clapper concluiu: “A AQPA continua a ser o braço deles [da Al-Qaeda] que tem maior probabilidade de tentar ataque transnacional.”
Não há qualquer dúvida de que a AQPA aproveitou a oportunidade, reconhecendo, astutamente, que sua mensagem a favor de um governo baseado no sistema de lei e ordem da Xaria seria bem recebida por muitos, em Abyan, que viam o governo de Saleh como fantoche dos EUA. Os ataques dos mísseis dos EUA, as mortes entre civis, e a quase total falta de serviços públicos, além da miséria crescente, também contribuíram. “Depois que esses grupos de guerrilheiros tomaram a cidade, entrou em cena a AQPA e também tribos de áreas que haviam sido, no passado, atacadas por soldados do governo de Saleh e dos EUA” – diz Iryani, o analista político. “Vieram porque estão em luta contra o regime e contra os EUA. Há um núcleo da AQPA, mas a vasta maioria são pessoas indignadas por terem sido atacadas em seus lares; os ataques os forçaram a sair e lutar.” Segundo estatísticas publicadas pela US Agency for International Development [Agência Norte-americana para o Desenvolvimento Regional], “a insegurança criou mais de 40 mil refugiados em Zinjibar, em 2011.”
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Diferente do movimento guerrilheiro Al-Shabab in Somalia, a AQPA jamais chegou a assumir o controle sobre porções significativas de território no Iêmen. Mas o grupo Ansar al Sharia promete fazer exatamente isso, criando um Emirado Islâmico em Abyan. Tão logo o grupo Ansar al Sharia e aliados firmaram-se no controle sobre Zinjibar, passaram a implementar uma agenda para conquistar corações e mentes. “Ansar al Sharia tem sido muito mais proativo no trabalho de oferecer serviços em áreas do Iêmen de onde o Estado virtualmente desapareceu,” diz Gregory Johnsen, professor iemenita que dá aulas na Princeton University. “Dizem que seguem o modelo Talibã, de prover serviços e governo islâmico, onde o governo central do Iêmen deixou um vácuo.”
O grupo Ansar al Sharia reparou estradas, restaurou as ligações elétricas, distribuiu comida e passou a patrulhar a cidade e arredores. Também estabeleceu tribunais legais pelo sistema da Xaria, onde se resolvem as disputas entre cidadãos. “A Al-Qaeda e o pessoal do grupoAnsar al Sharia trouxe segurança à população, em regiões conhecidas pela violência, por assaltos, por bloqueios de estradas” – diz Abdul Rezzaq al Jamal, jornalista iemenita independente, que regularmente entrevista líderes da Al-Qaeda e tem passado longos períodos em Zinjibar. “As pessoas que encontro em Zinjibar são gratas à Al-Qaeda e ao grupo Ansar al Sharia por lhes garantir condições de segurança”.
Embora os guerrilheiros em Abyan ofereçam lei e ordem, ambas, às vezes, são implantadas mediante táticas terríveis, como amputação da mão de acusados por furtos, e apedrejamento público dos suspeitos de consumir drogas. Num incidente em Jaar, governada pelo grupoAnsar al Sharia, os moradores contam que assistiram a um julgamento horrendo, no qual guerrilheiros usaram uma espada para amputar a mão de dois jovens acusados de roubar cabos de eletricidade. As mãos decepadas foram depois exibidas pela cidade, como alerta a outros tentados a cometer roubos. Um dos jovens amputados, de 15 anos, morreu pouco depois, por hemorragia. Dia 12 de fevereiro, agentes do grupo Ansar al Sharia em Jaar, decapitaram em cerimônia pública dois homens acusados de fornecer informações aos EUA, usadas para orientar os ataques dos aviões-robôs, os drones. Um terceiro homem foi executado em Shebwa.
Em meados de janeiro, o grupo Ansar al Sharia ocupou áreas de outra cidade, Radaa, 100 milhas a sudoeste de Sanaa, o que gerou novos bombardeios pelas forças oficiais, e batalhas de rua entre forças do exército, e guerrilheiros do grupo Ansar al Sharia e da AQPA. “A ameaça da Al-Qaeda é agora mais concreta que nunca e não pode ser subestimada, sobretudo porque já têm apoiadores entre a população e paraíso seguro a partir do qual podem operar” – diz o general Sumali.
A tomada de Zinjibar pode ser indicação de que a AQPA está de fato explorando o crescente vácuo de poder no Iêmen. Mas, ainda mais perigoso que isso, é que o apoio local à agenda da AQPA não pára de crescer, e mistura-se à também crescente fúria, das tribos mais poderosas, contra a política de contraterrorismo dos EUA e contra os muitos anos de apoio que os EUA garantiram ao governo de Saleh.
No final de 2011, os EUA retiraram do Iêmen parte significativa do seu contingente militar, inclusive as forças de Operações Especiais, entregando a coordenação das ações no Iêmen às forças norte-americanas estacionadas no Djibuti, na África Oriental, onde os EUA mantêm uma grande base militar. A Unidade de Contraterrorismo do Iêmen (UCT) e as forças da Guarda Republicana que sempre viveram do apoio norte-americano, já não são nem operadas nem tuteladas pelos patrocinadores norte-americanos.
Comandantes da UCT disseram-me que, em janeiro, não tinham sequer munição para os rifles de assalto M4 que receberam dos EUA. Quando começaram as batalhas na primeira linha de combater em Abyan, no final de dezembro/início de janeiro, o filho de Saleh, Yahya Saleh, comandante da UCT que sempre foi patrocinado pelos EUA, não foi encontrado no Iêmen. Quando visitei uma base de treinamento da Unidade de Contraterrorismo nos arredores de Sanaa, vários de seus comandados disseram não ter qualquer ideia sobre o paradeiro do comandante; exatamente o que disseram também altos comandantes do exército do Iêmen; mas esses, pelo menos, sabiam que Yahya Saleh estava fora do país. Informaram não ter qualquer notícia sobre quando retornaria.
Em vez de combater a AQPA, essas unidades apoiadas pelos EUA – criadas e pagas com o explícito objetivo de conduzir operações de contraterrorismo – operaram em Sanaa exclusivamente para garantir proteção a um regime que agonizava, hostilizado pelo próprio povo.
As unidades que os EUA apóiam existem “principalmente para defender o regime”, disse Iryani. “Na luta em Abyan, as unidades de contraterrorismo nada fizeram de aproveitável. Ainda estão lá, no palácio [em Sanaa], protegendo o palácio. Assim são as coisas, por aqui”. Um dos principais conselheiros para questões de contraterrorismo do presidente Obama, John Brennan, reconheceu, ao final do ano passado, que “o tumulto político” levou as unidades iemenitas treinadas pelos EUA “a se posicionarem para finalidades da política interna, e nada fizeram contra a Al-Qaeda na Península Arábica, AQPA.”
O governo Obama demorou demais para aceitar que Saleh deixasse o poder, em parte por preocupações com o contraterrorismo. Dia 28/1, Saleh chegou a New York, declaradamente para tratamento médico, o que levou seus opositores a divulgar que os EUA lhe garantiam proteção contra a fúria do povo. Durante muitos anos, Saleh permitiu que os EUA executassem operações regulares contra a AQPA em território do Iêmen, e instrutores das forças de Operações Especiais dos EUA treinaram unidades especializadas, cujo comando foi entregue a membros da família de Saleh – vistos pela população como prepostos de Washington. O governo de Saleh conspirou ativamente com agentes dos EUA para encobrir o papel dos EUA no Iêmen, e várias vezes assumiu a responsabilidade por bombardeios dos EUA que matavam civis iemenitas. Mesmo quando começaram as grandes manifestações populares contra o governo de Saleh, altos funcionários do governo dos EUA continuaram a elogiar a colaboração que Saleh lhes dava. “Posso dizer hoje que a cooperação em ações de contraterrorismo com o Iêmen é melhor hoje do que em qualquer outro momento do meu trabalho” – disse Brennan em setembro.
Mas a política de contraterrorismo dos EUA é extremamente impopular no Iêmen. Não se sabe se algum eventual novo governo no país manterá o mesmo tipo de colaboração que sempre houve entre o governo do Iêmen e os EUA, na luta contra o terrorismo. Numa série de entrevistas, Mohammed Qahtan e outros líderes do principal partido de oposição, o Partido Islah, fez duras críticas aos ataques aéreos dos EUA no Iêmen, e contra a prática de “assassinatos seletivos” de suspeitos de terrorismo, dizendo que os acusados, fossem quem fossem, teriam de ser julgados por tribunais no Iêmen. Qahtan, líder do partido Islah da Fraternidade Muçulmana, disse que, durante o governo de Saleh, “O governo do Iêmen atuou, na guerra ao terror, como empresa contratada pelos EUA”. E acrescentou que, se o Partido Islah e seus aliados conquistarem o governo do Iêmen, “não seremos empresa contratada pelos EUA, para implementar os serviços que os EUA desejem ver executados em troca do dinheiro que pagam. Nosso slogan é “Somos parceiros. Não somos empresa contratada”.
Os últimos vários meses abriram uma janela para uma nova abordagem do contraterrorismo pelos EUA, para os novos tempos pós-Saleh. Quando a crise política começou a agravar-se no Iêmen, no ano passado, o governo Obama decidiu retirar a maior quantidade possível do pessoal militar que lá estava, inclusive os instrutores que treinavam as forças iemenitas de contraterrorismo. “Foram-se daqui por causa dos riscos de segurança” – disse-me Abu Bakr al-Qirbi, ministro de Relações Exteriores de Saleh, em seu gabinete em Sanaa. “Com certeza, não voltarão. E se as unidades de contraterrorismo não receberem nem a necessária munição, nem o armamento necessário, haverá grande impacto nas ações de contraterrorismo”. Mas agora os EUA estão apostando no poder aéreo e nos aviões-robôs,drones, foco central de todas as novas operações de contraterrorismo de Washington.
No verão passado, o governo Obama começou a construir uma base aérea secreta na Península Arábica, mais próxima do Iêmen que a base no Djibouti, que pode servir como plataforma de decolagem para mais ataques aéreos com drones, no Iêmen. O ataque dedrones em setembro, que matou Anwar al-Awlaki, cidadão norte-americano, foi disparado daquela nova base, que analistas suspeitam que esteja localizada na Arábia Saudita ou em Omã, dois países que têm fronteiras com o Iêmen. Apesar de os EUA estarem ausentes do campo, no Iêmen, mantém-se a coordenação com a inteligência iemenita nas operações de contraterrorismo. No final de janeiro, houve vários ataques norte-americanos na região de Abyan, e, segundo o general Sumali, forças norte-americanas executaram pelo menos dois outros ataques aéreos na área de Zinjibar, “contra líderes da Al-Qaeda que estão na lista negra de terroristas dos EUA”. E acrescentou logo: “não coordenei diretamente nenhum desses ataques”. Seguindo o general Sumali, helicópteros dos EUA entregaram – em várias ocasiões – suprimentos para a 25ª Unidade Motorizada. Os EUA também tem oferecido inteligência em tempo real, obtida pelos aviões-robôs, às forças iemenitas em Abyan. “Tem sido uma parceria ativa; os EUA entram, principalmente, com logística e inteligência”, disse Sumali. “E nós atacamos as posições, com artilharia e fogo aéreo.”
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Há anos, a elite do Comando Conjunto das Operações Especiais e equipes da CUA mantêm equipes dentro do Iêmen, que tem apoiado o exército iemenita e atuado em operações unilaterais, quase todas de fogo de mísseis e ataques por drones. Alguns desses ataques unilaterais acertaram o alvo previsto, como o ataque da CIA para assassinar Awlaki. Mas outros mataram civis – várias vezes, grande número de civis. E muitos deles foram mortos em Abyan e na vizinha província de Shebwa – exatamente as regiões nas quais se assiste hoje ao aumento considerável da atividade da Al-Qaeda na Península Arábica. A primeira autorização conhecida dada pelo presidente Obama para ataque com mísseis no Iêmen, dia 17/12/2009, matou mais de 40 beduínos, a maioria dos quais mulheres e crianças, na remota vila de al Majala em Abyan. Outro ataque dos EUA, em maio de 2010, matou um importante líder tribal e vice-governador da província de Marib, Jabir Shabwani, assassinatos que dispararam a fúria popular contra os EUA e o governo de Saleh. “Acho que aqueles ataques basearam-se em falsa inteligência saída de dentro do governo, porque isso obedece à lógica da empresa contratada”, acusa Qahtan. “A empresa contratada quer sempre criar oportunidades para vender mais serviços, para receber mais dinheiro”.
O ataque de drones em outubro, que matou Abdulrahman, filho de 16 anos de Awlaki, e cidadão norte-americano, e um primo adolescente, chocou e enfureceu iemenitas de todos os partidos e tendências. “Não tenho dúvidas de que as operações [militares] implementadas pelos EUA prestaram inestimável serviço à Al-Qaeda, porque aquelas operações geraram simpatias locais que a Al-Qaeda jamais antes recebera” – diz Jamal, jornalista iemenita. Os ataques “tem recrutado milhares, para a Al-Qaeda”. Os iemenitas das tribos, diz Jamal, partilham um objetivo comum com a Al-Qaeda: “todos agora querem vingança contra os EUA, porque os que morreram são filhos das tribos, e as tribos nunca, em caso algum, jamais, abrem mão do direito de vingar a morte injusta dos seus”.
Até altos funcionários do regime de Saleh reconhecem o grave dano que os ataques aéreos norte-americanos regime provocaram. “As pessoas sem dúvida ressentem-se dessas intervenções [dos EUA]”, Qirbi, ministro de Relações Exteriores e aliado muito próximo de Saleh, é obrigado a concordar.
Esses ressentimentos muito facilmente se misturam com a mensagem política e religiosa da Al-Qaeda e com a crescente radicalização da paisagem religiosa, sobretudo em áreas empobrecidas, negligenciadas pelo governo do Iêmen, como Abyan. “Claro que, quando o povo vive nesse tipo de contexto, as pessoas tendem a agarrar-se a certo tipo de bandeira ideológica, e começam a falar sobre o Califato e essa conversa toda” – diz Iryani.
Nas grandes manifestações de rua organizadas por opositores de Saleh em Sanaa, destacados imãs conservadores têm falado, nos sermões, sempre denunciando os EUA e Israel.
É possível que os EUA vejam a Al-Qaeda na Península Arábica como organização com número finito de membros, que podem ser aniquilados por fogo dos drones – ou mísseis Tomahawk – e guerra de atrito. Mas a Al-Qaeda já está conquistando diferentes níveis de apoio em amplas fatias da sociedade iemenita. Embora, sim, haja alguns estrangeiros entre os agentes da AQPA, a maioria dos chamados “militantes”, ou “guerrilheiros” são iemenitas e membros de tribos poderosas no país. “Nos últimos meses, o grupo Ansar al Sharia parece ter atraído grande número de novos membros” – diz Johnsen, o professor iemenita que dá aulas em Princeton. “O grupo decidiu acomodar-se ao Iêmen, de modo a conseguir atrair o maior número de pessoas, o que significa que estão divulgando os itens de maior apelo popular da plataforma política da AQPA, deixando na penumbra os itens mais controversos.”
Por mais que o general Sumali fale da necessidade de “limpar” Abyan dos terroristas, nada é tão simples como parece. As bombas dos EUA e o ataque militar do exército iemenita contra Zinjibar só fizeram aumentar o apoio local ao grupo Ansar al Sharia, criando condições que confirma o grupo como defensor do povo, contra o massacre apoiado pelos EUA.
Os ataques também servem como prova irrefutável de que, como diziam Awlaki e os líderes da AQPA, os EUA planejam atacar no Iêmen como atacaram no Afeganistão, Iraque e Paquistão. “Desejo enviar uma mensagem aos irmãos e ao honrado povo de Abyan”, disse Abu Hamza al Murqoshi, emir do grupo Ansar al Sharia, em vídeo intitulado “Mensagem a Abyan”, distribuído no final de janeiro passado. “Todo o mundo está unido contra nós, aliado ao governo traidor de Saleh, que demoliu nossas casas e destruiu a infraestrutura dessa região. Vocês agora estão unidos a nós, na luta contra esse estado e seus aliados, os norte-americanos”.
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A chave para conseguir algum sucesso no Iêmen é aprender a navegar pelo labirinto do sistema tribal. Ao longo de anos, uma rede de apadrinhamento tribal ajudou a manter o governo de Saleh. Muitas tribos são neutras em relação à Al-Qaeda na Península Arábica, ou a veem como problema menor; algumas combateram contra forças da Al-Qaeda; e outras tribos sempre garantiram abrigo ou santuário aos combatentes da Al-Qaeda. A posição de muitas tribos favoráveis à Al-Qaeda depende hoje de as tribos se convencerem de que a Al-Qaeda na Península Arábica tenha condições de levar avante a agenda que estão divulgando.
Mas a ação política dos EUA tem enfurecido muitos líderes tribais que poderiam manter em cheque a AQPA; mas três anos de ataques e bombardeios regulares acabaram por destruir qualquer motivação que houvesse para que os líderes tribais se decidissem naquela direção.
Vários líderes tribais no sul contaram, furiosos, histórias de como EUA e Iêmen atacaram áreas onde as tribos vivem e mataram homens e gado e destruíram ou danificaram muito grande quantidade de casas. Os ataques aéreos pelos drones dos EUA e o apoio dos EUA às unidades de contraterrorismo que os EUA entregaram ao comando de parentes de Saleh só têm feito aumentar as simpatias pela Al-Qaeda. “Por que nós combateríamos contra a Al-Qaeda? Por quê?” – pergunta o xeique Ali Abdullah Abdulsalam, xeique de tribos do sul, em Shebwa, e que adotou o codinome “Mulá Zabara”, em homenagem, diz ele, ao líder Talibã “Mulá Omar”. “Se meu governo construísse escolas, hospitais e estradas e atendesse as necessidades básicas do povo, eu seria leal a ele e o protegeria. Até hoje ainda não temos serviços básicos, como eletricidade e bombas para água. Por que deveríamos combater a Al-Qaeda?” Diz que a AQPA controla grandes porções de território em Shebwa; que o grupo “garante segurança e impede saques”. “Se seu carro é roubado, eles localizam o seu carro e o trazem de volta”. Nas áreas “controladas pelo governo, há roubos e saques. Qualquer um vê a diferença” – diz Zabara, e acrescenta: “Se não prestarmos mais atenção, a Al-Qaeda ocupará e passará a controlar mais áreas”.
Zabara apressa-se a esclarecer que entende que a AQPA é grupo terrorista que pode atacar os EUA, mas esse não é problema que ocupe o centro das preocupações dele. “Se os EUA veem a Al-Qaeda como terrorismo, nós aqui só vemos o terrorismo dos drones”, diz ele. “Os drones voam por aí dia e noite, apavorando mulheres e crianças, perturbando o sono de todos. Isso é terrorismo”. Zabara diz que os muitos ataques norte-americanos em sua região mataram muitos e muitos civis, e que sua comunidade continua como que minada por inúmeras bombas de fragmentação que não explodiram, e que, quando detonam matam crianças. Ele e outros líderes tribais pediram ajuda dos governos do Iêmen e dos EUA para remover aquelas bombas. “Até hoje”, diz ele, “não obtivemos qualquer resposta. Então, temos de usar nossas armas, para detoná-las, antes que alguém as detone por acidente.” Diz também que o governo dos EUA deve indenizações em dinheiro às famílias dos civis mortos nos ataques dos mísseis, ao longo dos últimos três anos. “Exigimos compensação, a ser paga pelos EUA, por terem assassinado cidadãos iemenitas, exatamente como no caso de Lockerbie” – declara. “O mundo é uma aldeia. Os EUA receberam indenização da Líbia por causa da explosão na cidade de Lockerbie. Os iemenitas, até hoje, nada receberam”.
Encontrei Mulá Zabara e seus homens no aeroporto em Aden, no sul do Iêmen, junto ao litoral onde o porta-aviões USS Cole foi bombardeado em outubro de 2000, e morreram 17 marinheiros norte-americanos. Zabara veste seus trajes tribais negros, e leva uma jambiya(adaga) à cintura. Como toque de modernidade, leva também uma pistola Beretta enfiada no cinto. Zabara é figura impressionante, a pele curtida de sol e uma grande cicatriz em forma de lua crescente abaixo do olho direito. “Não conheço esse americano”, diz aos jornalistas iemenitas que me acompanham. “Se algo me acontecer por causa dessa entrevista, se eu for sequestrado, vocês serão responsabilizados e executados”. Os jornalistas respondem com risinhos nervosos. Conversamos um pouco num ponto da praia, antes de que ele nos leve de carro para uma volta em torno da cidade. Com cerca de trinta minutos de viagem, ele estaciona num acostamento e compra um pacote de seis latas de [cerveja] Heineken, numa venda; joga uma das latas para mim, faz estalar a tampa de outra e a esvazia em dois tragos. São 11h da manhã.
“Uma vez, fui parado pelos rapazes da Al-Qaeda na Península Arábica num dos postos de controle deles, e eles viram que eu tinha uma garrafa de [uísque] Johnnie Walker” – ele relembra, secando a segunda lata de Heineken em 10 minutos e acendendo um cigarro. “Perguntaram: por que o senhor carrega isso? Respondi: para beber.” E ri uma gargalhada ampla. “Disse a eles que se metessem com outro, e fui embora”. A mensagem é bem clara: os “rapazes da Al-Qaeda” não querem confusão com os líderes de tribos. “Não tenho medo da Al-Qaeda; ando pelos territórios deles e faço reuniões com eles. Temos autoridade nas nossas tribos e eles têm de recorrer a nós para resolver as disputas que surjam entre eles.” Adiante, acrescenta: “Tenho 30 mil combatentes armados na minha tribo. A Al-Qaeda não pode me atacar.”
Zabara serviu como intermediário nos contatos com a AQPA a serviço do governo do Iêmen e muito contribuiu para obter a liberdade, em novembro, das três enfermeiras francesas que o grupo mantinha como reféns há seis meses. Disse que entrou na negociação depois de um telefonema que recebeu de um agente da AQPA. “Alguém telefonou e disse que matariam as francesas, para vingar a morte de al-Awlaki”, Zabara relembra. “Viajei até onde estavam e disse a eles: se matarem as francesas, nós matamos vocês com nossas adagas”. Adiante, Zabara – e quantia de dinheiro nunca revelada – conseguiram convencer a AQPA a libertar as reféns. Apanha o telefone celular e exibe várias fotos das reféns sendo libertadas.
Zabara também atendeu várias vezes a pedidos do ministro de Defesa do Iêmen, para que mediasse contatos com guerrilheiros em Zinjibar, inclusive para recuperar os corpos de soldados mortos em áreas controladas pelo grupo Ansar al Sharia. “Nada tenho contra nem a Al-Qaeda nem o governo”, diz ele. “Comecei a ajudar nos contatos exclusivamente para tentar pôr fim à carnificina e fazer a paz”. Mas em Zinjibar, seus esforços não tiveram resultado. Conta que, enquanto trabalhava naquela mediação, teve encontros com agentes da Al-Qaeda na Península Arábica dos EUA, França, Paquistão e Afeganistão.
Pergunto se alguma vez teve contato com os altos dirigentes da AQPA. “Fahd al Quso é da minha tribo”, ele responde com um sorriso, referindo-se a um dos suspeitos mais procurados, envolvido no ataque ao Cole. Diz que se encontrou com Umar Farouk Abdulmutallab, conhecido como o homem dos “explosivos na cueca”, acusado de planejar a explosão de um avião sobre Detroit em dezembro de 2009. “Vi [Said] al-Shihri e [Nasir] al-Wuhayshi há cinco dias, em Shebwa” – acrescenta, falando dos dois mais altos comandantes da Al-Qaeda na Península Arábica, ambos terroristas caçados pelos EUA. “Nos cruzamos na rua. Eles disseram “Que a Paz Esteja com Você”. Respondi “Que a Paz Esteja com Vocês também”. Não temos nada contra eles. No passado, ninguém jamais cruzaria com eles na rua. Viviam escondidos em cavernas, nas montanhas. Agora andam pela cidade e comem em restaurantes”. E por que as coisas mudaram tanto?, pergunto. “O regime, os ministros e funcionários desperdiçam o dinheiro destinado a combater a Al-Qaeda, e enquanto isso a Al-Qaeda cresce”, ele responde. “Os EUA financiam as forças de Segurança Política e Segurança Nacional, e eles gastam dinheiro viajando de um lado para outro, em Sanaa ou nos EUA, com as famílias. Para as tribos, sobram os ataques aéreos”. Ele diz também que as unidades financiadas e apoiadas pelos EUA tratam o contraterrorismo “como um investimento”. “Se derrotarem o terrorismo, o dinheiro pára. Eles prolongaram o conflito com a Al-Qaeda, para receberem mais dinheiro” dos EUA.
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Em síntese, eis como muitos iemenitas vêem o papel dos EUA no país deles. Os EUA “jamais deveriam ter feito do contraterrorismo uma fonte de lucros para o regime, porque isso só fez disseminar o terrorismo”, afirma Iryani. “A agenda deles sempre foi manter vivo o terrorismo, porque ali está a galinha dos ovos de ouro”. Os bombardeios norte-americanos foram “erro grave”. Muitas vezes as ações militares convertem-se em “tiro que sai pela culatra, porque morrem muitos civis, porque são violações da soberania. Muitos iemenitas sentem-se ofendidos”. Para os EUA, a pergunta mais séria que permanece sem resposta sobre o Iêmen depois de Ali Abdullah Saleh é: a política de contraterrorismo dos EUA contribuiu para aumentar a ameaça que ela visava a eliminar? “Jamais houve fiasco maior” – diz Iryani sobre a política de contraterrorismo dos EUA na última década, no Iêmen. “Sempre penso que, se tivéssemos ficado sozinhos, haveria hoje menos terroristas no Iêmen”.
*Jeremy Scahill é um autor ligado à Puffin Foundation (The Nation) e autor de um “best-seller” sobre a Blackwater