Cartografias para a mudança social
3/8/2009, Irene G. Rubio, Diagonal, n. 107
http://www.diagonalperiodico.net/Cartografias-para-el-cambio-social.html
Utilizados para dominar o território, os mapas mostraram ser ferramenta muito útil para tornar visível o poder e promover a mudança social. Hoje, já há várias iniciativas que propõem novos modos de olhar o território.
Mafalda teve uma revelação, quando pediu ao pai que lhe mostrasse a Argentina no globo terrestre: “Vivimos boca abajo!”. A heroína de Quino não está longe da verdade: ela apenas viu que os ricos vivem "de cabeça para cima" – o que mostra bem claramente que o 'mapa', como o conhecemos, é uma convenção. Se Mafalda resolveu seu problema, na história em quadrinhos, virando ao contrário o globo terrestre oficial, o australiano Stuart MacArthur, em 1979, desenhou um mapa do mundo em que América Latina, Oceania e África aparecem na parte superior. São dois exemplos que mostram que, embora os mapas sempre sirvam para imaginar o território, o modo como os elementos aparecem distribuídos não é isento nem inocente: pôr umas regiões acima e outras abaixo, à esquerda ou à direita, sempre implica destacar umas mais que outras.
Em 1979, o australiano Stuart MacArthur apresentou seu mapa do mundo,
no qual América Latina, Oceania e África aparecem na porção superior.
Governar espaços, liberar espaços
Embora já se usem mapas desde a antiguidade, a cartografía só se constituiu como disciplina científica no final do século 19. Como destacam os geógrafos Jeremy Crampton e John Krygier, "o conhecimento espacial ordenou-se e o mundo tornou-se cognoscível mediante cálculos específicos do espaço, necessários por questões de governo". Não por acaso, o uso de mapas viveu sua idade de outro durante o desenvolvimento dos impérios coloniais.
A partir da segunda metade do século 19, a certeza de que os mapas mostram a realidade – e que, de fato, a inventam – desencadeou uma corrente crítica na disciplina. Para essa corrente, os mapas, por mais que os percebamos como 'retrato' objetivo e fidedigno, carregam sempre, implícita, uma visão política: cada mapa propõe uma determinada mirada sobre o território. Apesar disso, a cartografia viveria nova e mais virulenta agitação: hoje, o desenvolvimento de novas ferramentas para explorar o território e a para visualizar dados permite que qualquer pessoa, com um computador e alguma noções de informática desenhe seus próprios mapas. Para Crampton e Krygier, a disciplina “está sendo liberada das prateleiras e campos acadêmicos, para abrir-se ao homem comum”.
Os saberes que se utilizaram para conhecer e dominar o mundo já expuseram suas potencialidades libertadoras: os mapas são ferramenta muito útil para tornar visível o poder. Permitem desenhar conceitos e abstrações, e permitem desenhar relações entre os elementos. Nos últimos anos, com o rápido desenvolvimento tecnológico e o advento da Web 2.0, assistimos a uma ebulição de experiências e projetos que põem em prática uma cartografia crítica e radical que visa à mudança social.
Mapear conflitos
Um dos detonadores mais poderosos para gerar mapas alternativos são, é claro, as guerras. Pouco antes da invasão do Iraque, um grupo de ativistas distribuía pelas ruas de New York o "Guia da Cidade de New York" em que se assinalavam detalhadamente todas as empresas e instituições e diferentes agentes que se beneficiavam com a guerra e que, naquele momento, promoviam a guerra. Depois, dois desenhistas, Trevor Paglen e John Emerson, desenharam um mapa em que se viam os voos secretos da CIA e as relações entre os países que divulgavam e promoviam a "guerra ao terror". Os recentes bombardeios contra a Faixa de Gaza e o bloqueio israelense aos meios de comunicação despertaram as potências criativas, dentre outras, da rede de televisão Al-Jazeera que, valendo-se de informações colhidas e divulgadas em tempo real por internautas, desenhou mapas da Guerra de Gaza.
Esses mapas interativos mostram números de mortos e feridos, ataques, a localização das colônias exclusivas de judeus israelenses e as mobilizações de protesto.
Em dimensões mais humildes, o coletivo "Solidarity Maps" criou um blog pelo qual distribuem mapas críticos sobre os diferentes conflitos no Oriente Medio (em http://kharita.wordpress.com/category/gaza-maps/).
Os abusos cometidos por grandes empresas transnacionais é outro dos alvos preferidos da cartografía crítica. Assim, enquanto a rede Exxon Secrets (http://www.greenpeace.org/usa/campaigns/global-warming-and-energy/exxon-secrets), criada e mantida pela ONG Greenpeace, mostra as relações financeiras entre as empresas petroleiras e as instituições que minimizam os problemas da mudança climática, outra página, Bank Secrets (http://www.banksecrets.eu/), mapeia os diferentes lugares do mundo onde vários bancos importantes mantêm negócios, no mínimo, muito estranhos.
Metrópoles e migrações
Dar visualidade aos poderes e aos processos de resistência é o objetivo de vários grupos que trabalham [na Espanha] para produzir mapas. Um desses grupos, atualmente muito ativo, acaba de produzir o livro ¿Madrid, la suma de todos? (Traficantes de sueños, 2008), elaborado peçp Observatorio Metropolitano de Madri, que oferece documentadísima radiografía da capital. O volume inclui vários mapas que ilustram os processos complexos que se analisam no livro, desde o desenvolvimento histórico da cidade e dos fluxos de capital que a atravessam, até os espaços de lazer e cultura, as trilhas dos migrantes, das lutas para criar espaços públicos ou resistência à privatização.
Além disso, também a Cartografía del Estrecho (http://medialab-prado.es/article/cartografia_del_estrecho_20) propõe uma leitura alternativa sobre um contexto geográfico chave. O projeto, surgido da colaboração entre artistas e ativistas dos dois lados do estreito, produziu vários mapas em que se veem os fluxos (de capitais e de pessoas) e os conflitos desse espaço de fronteira, além dos processos de dominação e as redes e movimento que trabalham para enfrentá-los. A lista de projetos de cartografía crítica é longa e poderia continuar: mapas dos espaços verdes, zonas acessíveis para cadeiras de rodas, recursos ecológicos etc. De fato, muitos movimentos, ativistas e artistas já trabalham empenhadamente na tarefa de redesenhar o território.
AS ZONAS OBSCURAS DOS MAPAS "GOOGLE"
Uma das ferramentas provavelmente mais conhecidas e que levaram à popularização das tecnologias cartográficas são "Google Maps" e "Google Earth" – ferramentas que permitem que os usuários acrescentem dados pessoais aos mapas. Mas é aplicação ainda controlada por um dos 'gigantes' da informação e sujeita às leis de copyright.
Felizmente, há opção alternativa: MapOmatix (em http://mapomatix.sourceforge.net/) oferece as mesmas funções e os mesmos recursos, em software livre e sem visar a lucro: também é ambiente colaborativo para criar e editar mapas. O mapa que se vê ao visitar a página dá boa ideia do projeto: representa as deportações de migrantes africanos do Marrocos.
"Google Earth", por sua vez, inspira também projetos artísticos. Os cineastas Isaki Lacuesta e Isa Campo interessaram-se por conhecer melhor as zonas 'obscuras', que o satélite se negava a exibir com clareza e decidiram fotografá-las. Para isso, partiram da praia da Casería, em Cádiz. Os mapas Google não mostram que, ali está sendo construído uma marina esportiva e seis prédios de apartamentos com 20 andares. A viagem em busca das zonas 'obscuras' dos mapas Google levou os fotógrafos a áreas cercadas para manobras militares, zonas de conflito e reservas naturais nas quais estão sendo construídos prédios ilegais (sobre o trabalho cartográficos das zonas 'obscuras' dos mapas Google, ver
http://www.elmundo.es/papel/2008/07/25/catalunya/2461029.html).
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