sábado, janeiro 07, 2006



‘Mídia’ e política: batata frita não causa câncer

Num dos itens do índice do caderno “Ciência”, da Folha de S.Paulo, hoje, na Internet [http://www1.folha.uol.com.br/fsp/indices/inde06012006.htm], lê-se: “Nutrição: Batata frita não causa câncer, diz estudo”.

Esse título é, no mínimo, engraçado. Afinal de contas, cocaína não causa câncer, homens-bomba não causam câncer, FHC-Bornhausen não causam câncer e a falta de imprensa democrática tampouco causa câncer. Nem por não causarem câncer esses agentes fazem menos mal à saúde pessoal ou social dos cidadãos; e a batata frita continua a matar 'normalmente', pelo colesterol. Além disso, esse estranhíssimo título da Folha de S.Paulo significaria uma coisa, no caderno “Ciência” e significaria coisa bem diferente na coluna do Macaco Simão; e significaria ainda um terceira coisa na página 2, como editorial da Folha de S.Paulo. E não faria falta a ninguém se JAMAIS fosse publicado.
O tal índice-piada das ‘ciências’ de Folha de S.Paulo fez-me pensar na importante polêmica que está rolando solta, bem-vinda, no Observatório da Imprensa.
Lá, Alberto Dines escreveu “Até quando Lula vai continuar massacrando a imprensa?” [em http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/canaldoleitor2.asp?edi=362&cod=361JDB004#{03D4EE45-6A3C-4EC8-BCF0-FB2AC7A21C45].
Imediatamente, choveram respostas, em que muitos leitores reagem ao texto de Dines. Jornal democrático, o Observatório publica tudo. As respostas dos leitores podem ser lidas em “Diagnóstico oposto” [em http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/canaldoleitor2.asp?edi=362&cod=361JDB004#{03D4EE45-6A3C-4EC8-BCF0-FB2AC7A21C45]. Um dos leitores, por exemplo, nessa coluna-resposta, escreve:
“Nada disso, Dines. Lula não massacra nenhuma imprensa. Lula é massacrado, pode-se dizer programaticamente, em toda a mídia de jornalão, no Brasil. Que "massacre" é esse em que os jornais publicam o que quiserem, independentemente da existência de provas? [...] Que "massacre" é esse em que a imprensa faz o contrário do confessado pelo ex-ministro Ricupero, ou seja: "o que é ruim a gente mostra, o que é bom a gente esconde"? Que "não-massacre" é esse em que as reportagens só ouvem um lado da notícia?”
Antes de tudo e em todos os casos, deve-se festejar que ainda haja um Observatório da Imprensa, no Brasil. Alberto Dines não causa câncer.
Por menos que eu concorde com o que Dines escreve – e, nisso, estou de acordo com os leitores que responderam ao Dines, contraditando-o –, entendo que todas as opiniões devem encontrar espaço na chamada “imprensa”, que deve publicar diferentes opiniões, sempre, em todos os casos. Dentre outros motivos, porque os jornalistas e empresários da mídia têm desejos políticos, como todo mundo; têm partido; e isso é inevitável. Portanto, embora Alberto Dines carregue muito de seus desejos políticos eleitorais, tb no que ele escreve; e embora o que se lê sobre Lula, acima, seja, em primeiro lugar, a opinião pessoal de Alberto Dines, ainda assim o artigo de Dines-jornalista é bem-vindo.
Deve-se festejar também – e muito! – que ainda haja um Observatório da Imprensa que publica também o contraditório, quer dizer, as opiniões pessoais dos leitores, mesmo que, como nesse caso, a opinião dos leitores seja totalmente divergente da opinião de Dines-jornalista. Dines, afinal, sempre escreverá como cidadão eleitor, jornalista, dono do jornal e colunista. E parece até milagre encontrar-se jornal como o Observatório, no Brasil-2005, que publica as respostas dos leitores, mesmo quando são tão majoritariamente opostas à opinião do jornal-empresa.
Mas, passada a fase dos parabéns, sou de opinião que, nesse caso, TUDO está mal posto, também no Observatório.
De um lado, porque acho que Lula massacra a imprensa, sim, e faz muito bem em massacrá-la; mas massacra pouco e massacra errado. De outro lado a imprensa massacra Lula, sim -- e tá na cara que massacra --, mas massacra demais e massacra errado. E Dines não ensina seus leitores a perceberem que, sim, há duas imprensas ativas no Brasil, dois massacres diferentes e, possivelmente, os dois massacres estão mal feitos; os dois massacres são errados, e errados de diferentes modos, com diferentes erros.
Assim, fica Dines de um lado massacrando (também) o presidente, o meu voto e voto dos leitores-eleitores de Lula; e de outro lado, ficam os leitores-eleitores de Lula, esperneando como podem, mas, coitados de nós, ainda ser ver com clareza a questão política que, no Brasil, parece estar criando duas imprensas... que nem Dines vê; e, se vê, não mostra nem ajuda os leitores a verem.
Cria-se assim uma briga de cegos, com faca, no escuro, na qual todos sempre podem ter alguma razão, em algum momento da briga; e também pode acontecer de ninguém jamais ter toda a razão, em nenhum momento da briga; e também pode acontecer de os galos se matarem na rinha, sem melhorar a qualidade do jogo. Puro desperdício, até, de rinha.
Ocorre-me que, nessa disputa sobre quem massacra quem, em 2005, no Brasil pós-tucanaria (“Lula massacra a imprensa?” ou “A imprensa massacra Lula?”), podemos estar todos presos numa arapuca desse tipo, de conceitos mal discutidos. Pode ter-se criado, também nesse caso, uma daquelas arapucas brabíssimas, em que a discussão vai subindo de tom, na agressividade, sem que nada melhore sequer uma vírgula, na direção de alguém ver e entender o quê, de fato está em discussão e em disputa.
Podemos, todos, estar-nos enrolando em briga de torcedor, em que um grita que foi pênalti e o outro grita que foi abraço&beijo-na-boca, e imediatamente o pau quebra... apenas porque (i) ninguém tem qualquer interesse em ver (e gritar) que ‘foi’, mesmo, as duas coisas, ao mesmo tempo [tapas e beijos e pênalti e tudo] -- e a decisão não poderá depender, portanto, só dos 'fatos'; e porque (ii) ninguém tem poder suficiente pra fazer parar o quebra-pau, pra pôr ordem no galinheiro.
É mais ou menos como um jornal ‘noticiar’ que batata frita não causa câncer: isso não é, propriamente, nem ‘notícia’ nem informação; é uma completa besteira, mal pautada, mal pensada e mal escrita. O ‘caso da batata frita’, portanto, não pode ser discutido, sequer, como se fosse ‘jornalismo’. Mas ‘deu no jornal’; portanto, parece que pode ser discutido como se fosse ‘jornalismo’.
Aí, então, em dois parágrafos, a arapuca está armada, pronta pra engolir incautos de todos os tipos: 25% do público leitor se ‘engajará’ em apaixonada defesa dita ‘científica’ da batata frita; 25% do público leitor abraçará apaixonadamente a causa oposta e se ‘engajará’ no ataque dito ‘científico’ à batata frita; 25% do público não dará bola alguma à discussão, porque não come batata frita; e 25% do público preferirá o câncer. As duas últimas parcelas aí citadas perfazem metade do eleitorado que, nesse caso, estará a um passo de 'escolher' o voto nulo, em todas as discussões sociais. Não consigo pensar em pior cenário do que esse, para a democracia brasileira.
NINGUÉM, em todo o público-leitor -- a chamada "opinião pública" --, até aqui, foi ensinada, por nenhuma imprensa, nem por nenhum presidente/governo/Estado, nem pela discussão social, nem pela universidade, a perguntar, antes de ‘engajar-se’ na tal ‘discussão’: “Que imprensa publica essa notícia? Em que coluna saiu a tal notícia? Quem escreveu? Por que escreveu?”
Sem responder, no mínimo, essa pergunta, não pode haver NENHUMA discussão consistente, nem sobre imprensa nem sobre coisa alguma. E, de fato, não há, mesmo, proposta, até aí, nenhuma discussão, nem sobre batata frita, nem sobre câncer, nem sobre imprensa, nem sobre Lula nem sobre o governo Lula – e nem no Observatório.
Eu já disse que, na minha opinião, Lula deveria massacrar mais a imprensa e massacrá-la melhor. É essa, sim, exatamente, a minha opinião.
No caso da polêmica oferecida pelo Observatório, pode-se dizer que Lula, ao massacrar a imprensa, deveria cuidar, também, de explicar que há uma específica ‘imprensa’, no Brasil 2005, que é mais empresa, afinal de contas, do que imprensa, e que essas empresas de imprensa têm interesses econômico-político-partidários-e-negociais muito importantes. E que esses interesses estarão em jogo e em disputa (enlouquecidamente feroz, em briga de vida ou morte) nas próximas eleições de outubro.
Para começar a organizar o argumento e a discussão, pode-se dizer que há duas imprensas, no Brasil.
A imprensa-P, de "propaganda" eleitoral antecipada e ilegal, pró PFL-PSDB
A imprensa de que o presidente Lula fala pode-se chamar de imprensa-P.
Essa imprensa-P existe, sim. E ela massacra o presidente Lula. E massacra sem parar. De fato, essa imprensa-P massacra também o meu voto e o voto de mais de 60 milhões de brasileiros que elegemos Lula em 2002. E o faz incansavelmente e programaticamente, todos os dias, sem folgas nem domingos. Há, portanto, sim, uma imprensa-P, no Brasil, que massacra Lula, indecentemente, golpistamente, e sem parar um dia, de fato, sem parar, mesmo, desde o primeiro dia do governo Lula. Até Danuza Leão massacra o presidente Lula e o meu voto. O presidente Lula, portanto, reclama com muita razão.
Mas essa imprensa-P já praticamente nada tem ou faz de ‘jornalismo’. Essa imprensa-P está sendo usada, hoje, exclusivamente, como instrumento de propaganda de idéias econômico-político-partidárias. De fato, essa imprensa-P é usada como instrumento de ‘malho de marketeiro’, malhando a opinião pública, em movimento que me parece bem claro, de propaganda eleitoral antecipada e ilegal.
Essa imprensa-P não tem nenhum interesse em informar alguém sobre alguma coisa; seu único interesse é ‘malhar’, ‘malhar’, ‘malhar’, em empreitada de propaganda de desdemocratização do leitor-eleitor. Já não se trata de fazer nenhum jornalismo, no caso dessa imprensa-P. No Brasil-2005-6, toda essa imprensa-P é partidária e tucana. Ou, dito de outro modo: essa imprensa-P tem, de jornalismo, o mesmo que há, de ‘científico’, no título sobre câncer e batatas fritas: nada.
Há centenas de exemplos desse discurso-malho-de-marketeiro-tucano, que já nada tem de ‘jornalístico’, nas páginas 2 do Estadão, da Folha de S.Paulo, de Veja, de O Globo, do Jornal do Brasil, do Correio Braziliense e, afinal, nos editoriais de TODOS os grandes jornais e revistas, no Brasil. Há exemplos dessa imprensa-P também nas colunas assinadas e, nos últimos tempos, também nos blogs dos mesmos colunistas e de outros. O presidente Lula reclama dessa imprensa-P -- e só dela.
A imprensa-C, de "Conceitual"
Do outro lado dessa argumentação, há (ou, pelo menos, deve-se desejar que AINDA haja) uma outra imprensa. Podemos chamá-la de imprensa-C, para lembrar que essa imprensa só tem existência Conceitual.
Dines fala dessa imprensa-C e exige que o presidente pare de massacrá-la. A imprensa que Dines defende é alguma coisa como “a imprensa em estado ideal”.
No geral, é sempre muito importante defender essa imprensa-C, porque, se esquecermos de vez, e para sempre, o que a imprensa ‘pode ser’, aí mesmo é que nunca, na vida, teremos imprensa democrática. Não defender essa imprensa-C, ‘ideal’, é mais ou menos como não defender a beleza, a justiça, a liberdade, a felicidade. Digam o que disserem os sociólogos uspeanos da tucanaria, todos temos de defender esses valores, mesmo que já não interessem a nenhum mercado.
Mas, na minha opinião, Dines também defende mal o seu argumento. Afinal, se é verdade que os cidadãos brasileiros JAMAIS são ensinados, nem pela universidade nem pelos jornalistas de nenhuma imprensa a verem que há duas imprensas, no Brasil... também é verdade que Dines, sim, sabe que há duas imprensas, no Brasil e a conhece muito bem. Mas Dines, no artigo acima, não fala em duas imprensas; só fala em uma, como se fosse única e todas fossem a imprensa-C e não houvesse imprensa-P. Há. E, dessa imprensa-P, Dines não trata.
O leitor só conhece a imprensa-P
Ora! Os leitores-eleitores, em 2005-6, no Brasil, já praticamente NUNCA lêem nenhuma imprensa-C, em NENHUM jornal. O que os leitores-eleitores lêem é, sempre, sempre, sempre, a imprensa-P. Disso, aliás, não se precisa de melhor prova do que a opinião dos leitores que contraditaram Dines. Eles reagem como cidadãos-sem-argumento. Reagem como vítimas desarmadas, como interlocutores argumentalmente desamparados. Reagem movidos apenas por algum vago instinto de cidadão, que anseia por melhor democracia e melhor imprensa, mas não conhece nenhum meio argumental para construí-la, seja pela via política seja pela imprensa. Desamparados, os cidadãos partem para uma espécie de esperneio cívico-democrático, que é o que se ouve nas respostas dos leitores.
Não por acaso, quase todas as ‘respostas’ à matéria de Dines, escritas pelos leitores... são PERGUNTAS.
É onde me parece que o governo Lula massacre pouco e mal, quando, sim, ele tente massacrar – em legítima defesa – a imprensa que o massacra. Massacra pouco e mal a imprensa-P, que o massacra, antes de mais nada, porque o governo Lula não cuida de RESPONDER às muitas perguntas dos cidadãos leitores-consumidores dessa maldita imprensa-P que, sim, nos massacra todos, no Brasil – e só poupa os Azeredos, os Virgílios, os FHC etc.
De grave, no campo argumental, é que, ao massacrar pouco e mal a imprensa que o massacra golpistamente, o presidente Lula massacra também, no mesmo saco, a imprensa-C. E é assim que, meio que sem perceber o que faz, o governo Lula abre o caminho para que Dines defenda essa imprensa-C – que é, em si, no plano conceitual, altamente defensável e tem de ser defendida, mas que não EXISTE, de fato, na luta política, em 2005-6, no Brasil. Nisso, ao mesmo tempo em que ecoa o desamparo dos seus eleitores, o governo Lula facilita a vida da imprensa-P.
As manchetes pró câncer
Ora... se Dines-cidadão-eleitor fosse eleitor de Lula, ainda poder-se-ia esperar que Dines-jornalista ou Dines-cidadão se sentisse obrigado a explicar melhor as coisas; a explicá-las mais pela raiz do que pela rama. Mas Dines-cidadão-eleitor não é eleitor de Lula... e, então, em nome de defender uma imprensa-C Dines acaba por fazer, exatamente, o que faz a imprensa-P, quer dizer, Dines também massacra Lula e o meu voto. Assim, Dines também alivia prô lado do câncer e facilita a vida do câncer.
Contudo, mesmo nessa operação em que se misturam e confundem os interesses partidários pessoais do jornalista-editor-dono-do-jornal e os conceitos de uma imprensa-C, cujos conceitos são tradicionalmente muito mal estudados e discutidos no Brasil, há séculos, ainda se salva, mesmo assim, no Observatório, algum último vestígio de alguma imprensa-C democrática, no Brasil.
De qualquer modo, e em resumo: nem Dines nem o governo Lula estão dando a devida atenção ao perigo que é, hoje, deixar-se aí, livre, leve e solta toda a imprensa-P, operando muito ativamente contra a democracia brasileira.
Em outras palavras: por mais que mudem os nomes, os conceitos, as siglas, as máscaras e as gerações dos Mesquitas, Civitas, Frias, Marinhos e as batatas fritas, NINGUÉM, no Brasil, está prestando atenção ao risco que são, hoje, todas as manchetes, linhas & entrelinhas, grana, colunas assinadas e cantilenas que defendem... o câncer.

Caia Fittipaldi [6/1/2005. Para publicação no Observatório, enviado dia 6/12/2005]

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