sábado, janeiro 14, 2006



LEITURAS DA VEJA
A relevância pragmática das capas da crise

Flávio Paranhos (*)
Não é preciso ser doutor em Comunicação ou profundo conhecedor da Teoria da Relevância de Sperber & Wilson para imaginar o esforço empenhado pelos capistas e editores de primeira página para chamar nossa atenção nas bancas de revista. Cores, imagens, tamanhos de fontes, enfim, toda sorte de recursos é utilizada para aumentar nosso interesse e diminuir nosso esforço de captação da mensagem transmitida, e, com isso, vender o produto.
Sim, as capas de revistas e primeiras páginas de jornal são elas próprias uma entidade comercial, como lembra a oportuna matéria "Capa de revista transforma notícia em produto", assinada por Carlos Haag, publicada na revista Pesquisa Fapesp de dezembro de 2005. Embora haja diferenças de conteúdo associadas aos aspectos temporal (jornais são diários, revistas, semanais) e espacial (primeiras páginas são grandes, capas, pequenas), ambos, jornais e revistas, sofrem a angústia da atenção. E na busca incessante desse bem precioso (nossa atenção) valem-se de tudo.
O assunto tratado, no caso das revistas, é um dos recursos. Já se sabe, por exemplo, que temas como saúde, dieta, sexo etc. são sucessos quase certos de vendagem. Haag cita a tese de Maria Alice Carnevalli, que analisou as capas da Veja durante o ano de 2000. Mais de 50% trataram desses assuntos. Os assuntos ligados diretamente à semana obtiveram apenas 23% das capas. O que me reporta ao meu assunto.
A última edição de 2005 de Veja, numa de suas matérias retrospectivas, traz o seguinte subtítulo: "Capa por capa, a história da crise que abalou o Brasil". São 18 capas que saíram entre 18/5 e 2/11/2005, que nos fornecem excelente matéria-prima para a análise de elementos da Pragmática e Teoria da Relevância no cuidadoso desenho de cada uma delas. Mas antes, um detalhe: já não se fala aqui (pelo menos não somente) das capas como um produto comercial a ser consumido, mas como um produto político (também a ser consumido). Há uma intenção, que vai ficando gradativamente mais clara, de se intervir no jogo político, à medida que se avança pelas capas.
Exposta nas bancas durante uma semana inteira, a revista não precisa nem ser vendida, necessariamente. Basta que se vejam as capas. E se milhares compram, milhões vêem. Se os milhares que compram fazem parte da classe média predisposta a absorver o que diz (defende) Veja, os milhões que a vêem podem não ter sequer dinheiro para comprá-la (ou seja, não deixaram de comprar por opção, por preferirem outra revista, mas por não terem como, mesmo), ainda assim absorvem pelo menos o que está na capa, algo quase tão (ou mais) valioso quanto comprar, dependendo do objetivo almejado.
O início é tímido. Embora já traga a importante denúncia da peteca nos Correios (como a classificou o tenor Roberto Jefferson), a capa de 18/5 tem a sorridente foto de Raul Cortez em primeiro plano, com a frase em destaque: "Câncer. Não quero que sintam pena de mim." A seguinte (25/5) já é mais atrevida e relevante: a figura de uma pessoa engravatada, cabeçorra de uma ratazana, com a palavra CORRUPTOS. Trata-se, evidentemente, de um símbolo para políticos corruptos, algo facilmente apreendido pela maioria dos brasileiros (pelo menos aos milhares, senão aos milhões). Entretanto, há ainda um problema. Falta especificidade, personificação. Quem é a ratazana?
Campeão de aparições
Na capa seguinte (1º/6) essa curiosidade é quase saciada. Digo quase porque, embora com uma foto grande do tenor, tomando todo o espaço da capa, os dizeres são ambíguos: "O homem bomba". Ora, homem-bomba também pode ser herói, não pode? E não é nisso em que ele (quase) se transformou? A apreensão será, conseqüentemente, também ambígua. Será essa a intenção da revista?
Na próxima (8/6), uma recaída. Apesar da palavra "corrupção" bem grande, há destaque maior para a "Amazônia à venda". Da capa de 15/6 em diante retoma-se a crise com uma cara, já que todas, exceto duas, passam a ter uma pessoa na capa (Lula, na maioria delas). Note-se que esse recurso maximiza em muito o estímulo transmitido ao receptor-vedor (vedor mesmo, não leitor). Um vidro que quebra chama menos a minha atenção do que um vidro MEU que quebra, lembram Sperber e Wilson (Relevance Theory, 2004). Da mesma forma, um rato vestido de político chama menos a minha atenção do que um rosto meu velho conhecido.
Lula é o campeão de aparições, com cinco. Seguido de Marcos Valério, com duas. Delúbio, Dirceu, Palocci, Severino e Fidel têm uma cada. O tenor, como vimos acima, têm uma, além de ser coadjuvante da de Delúbio.
Vale a pena que nos detenhamos nas cinco de Lula. A primeira (22/6) mostra sua figura em forma de estátua e os dizeres, bem grandes: "Tem conserto?". O detalhe engenhoso fica por conta da rachadura na estátua. Do ponto de vista pragmático-relevante ainda representa uma dificuldade. Nem todos os milhões (mas certamente todos os milhares) apreenderão a contento o que se tenta passar. As duas próximas (13/7 e 20/7) se complementam. Primeiro a foto de Lula coçando a barba com feição preocupado-pensativa e a pergunta: "Ele sabia?". A resposta deverá nos parecer óbvia, sem que precisemos abrir e ler a revista. Mas se nos sobrar alguma dúvida, a segunda dirime: "Mensalão. Quando e como Lula foi alertado", e a sombra sinistra do presidente.
Uma bobagem
As duas últimas são um primor de desenho pragmático-relevante de capa. Também se complementam. A de 10/8 tem fundo preto, com a foto pequenina de Lula e a palavra LULLA (sendo os dois eles em verde e amarelo) bem grande. Qualquer um que tivesse mais de 10 anos de idade quando Collor foi presidente sabe bem o que isso significa. A seguinte é inteligentíssima. A foto de Lula discursando com a palavra IMPEACHMENT enorme e em amarelo. Acima, a frase (em branco, com fontes bem menores, mas bem legíveis): "A luta de Lula contra o".
Silveira e Feltes (Pragmática e Cognição – A textualidade pela relevância, Educs e Edipucs, 2002), analisando uma peça publicitária "Sapato Worker – para quem gosta de ficar sem sapato", apontam para a aparente inconsistência de se propagandear sapato para quem não gosta de sapato, como um estímulo ostensivo extremamente eficiente. Algo parecido foi tentado com essa última capa dedicada a Lula. A frase que antecede a palavra impeachment (estando esta em grande destaque) parece ser amenizadora de sua contundência, mas serve na verdade como levantadora. Ponto para Veja.
Não é segredo para ninguém, nem é novidade, que faz parte do jogo democrático, para o bem ou para o mal, veículos de comunicação participarem ativamente da política. Imparcialidade é uma bobagem com que sonham bobos. No caso da Veja, a considerarmos a coluna de seu porta-voz mais polêmico, Diogo Mainardi, a posição da revista é clara: "quer derrubar Lula". Isso não está em discussão (muito menos em julgamento). O que se pretende aqui é apenas analisar os meios utilizados para mover as peças do jogo no sentido desejado, a partir das oculares da Pragmática e Relevância.

(*) Médico, doutor (UFMG) e postdoc fellow (Universidade de Harvard) em Oftalmologia, mestre (UFGo) e doutorando (UFSCar) em Filosofia

Observatório da Imprensa

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