segunda-feira, janeiro 24, 2011

São Paulo Veneziana: um bárbaro exemplo para o mundo

Mauro Carrara

Noite funda de domingo, dia 23, quase o 24, véspera do aniversário da maior cidade do Brasil. Já caiu a chuvarada prevista. Pinga pouco, aos poucos.

Este experiente jornalista aposentado retorna do Jabaquara, na Zona Sul da cidade, para o seu Brás, o bairro mais brasileiro do Brasil.

Ao volante, a jovem e lépida Giana Carrara. Mas antes precisamos entregar o vetusto tio Savério no Belém, pouco mais adiante.

Logo no início do trajeto, uma surpresa aos olhos. Um viaduto alagado. Alagado vinte metros acima do chão.

Savério dispara sarcasticamente, sem rir: são as piscinas suspensas da São Paulo Babilônica, obra de Tucanodonosor.

Atravessamos a raia espalhando água em arcos altos, para os lados.

Em seguida, reparamos que poucos semáforos realmente se mostram úteis à coordenação do trânsito.

No bairro da Saúde, um deles marca o verde no sentido Centro por ralos dois segundos. Sim, dois segundos, cronometrados no velho Citizen de Savério.

Felizmente, muitos dos outros equipamentos luminosos apresentam-se dormentes, apagadinhos, em férias janeireiras.

Aqui e ali, não se pode distinguir o pavimento de asfalto da lâmina d’água.

Savério sorri, ainda enlevado de um Brunello caro que provou bem no jantar informal dos Di Giacomo.

- Não temos prefeito nem governador, mas acredito que tenhamos um “doge”. Está convertendo nossa São Paulo numa bárbara Veneza sulamericana – observa.

Segundo Savério, essa conversão é facilitadora do controle da gestão pública. Bastará, doravante, que o líder da municipalidade jure um “promissio ducalis”, no qual elencará todas suas promessas administrativas. E por elas será cobrado.

Na velha Radial Leste, outro mar, este de automóveis, inundando a noite de lanternas vermelhas.

Giana corta lateralmente por aqui e por ali, até que topa com uma rua da Mooca convertida em canal aquático.

Engata-se a ré. Retrocedemos. Outros nos seguem. Espetacularmente, uma dúzia de veículos paulistanos trafegam em fila, de costas, em mostra inequívoca de nossa criatividade coreográfica.

- Mais uma obra magnífica do dux Veneciarum – celebra Saverio.

Deliberamos desistir da entrega do parente. Vai pernoitar em minha casa. Assim, empreendemos fuga para o outro lado da linha de trem.

O Viaduto Bresser, entretanto, é outro desses espetaculares lagos suspensos. Navegamos em alta rotação, bravamente.

Mais adiante, em ruas de iluminação perdida, percebo uma luzinha vermelha no painel.

- Giana, está marcando o que aí? – pergunto.

- Ihhhh, aqueceu, vai fritar...

- Mas este carro não é novo, moderno? – insisto.

- Vendem como se fosse, pelo menos. Mas não é anfíbio.

Estancamos adiante. Ela abre o capô. Preocupo-me. Ela gira a tampinha de leve. E ouço um apito de panela de pressão. Mais um pouco e um vapor oleoso se levanta denso na esquina deserta.

- O que foi? – pergunto.

- Sei lá, acho que pifou a ventoinha. Queimou o relé.

Logo percebo Saverio agachado do outro lado da rua. Inclina-se sobre a torrente da sarjeta, captando água numa garrafa de Coca-Cola.

- Isso é água suja. Vai estragar o motor e o senhor vai pegar uma leptospirose – ralha Giana.

Pouco depois, outro veículo passa pela rua, o motor soluçando. Soluça, soluça, até que para, desmaia.

Ouvimos uma discussão de marido e mulher. Uma criança parece reclamar. O motorista desce do carro e anda de cá para lá.

Mais uns gordos minutos e Giana se rende. Suspirando de prévio arrependimento, utiliza a água da chuva para reabastecer o radiador.

Prosseguimos pelo labirinto, procurando caminho firme e transitável. Vamos parar no Pari, nas franjas do rio maior que corta a cidade.

Ali, a cena é notável. Há lagos imensos e silenciosos, carros amontoados, lixo ensacado boiando lentamente.

- A Marginal transbordou de novo – anuncia um.

Logo vemos uma família avançando pela água. A criança de cavalinho no pai. A mulher com água pelas coxas, carregando uma bolsa e sapatos de saltos altos.

- Larguei o carro lá. Não vou arriscar. Chega, cansei. Vamos embora de São Paulo – revolta-se o sujeito, numa declaração ao bando de curiosos.

- Você não pode largar o carro lá, mano. A prefeitura vai processar você – intromete-se um baixinho de camisa regata.

- F...-se! – retruca o cidadão. – Quero um hotel. Estamos cheirando a bosta.

Damos meia volta, pegamos a avenida na contramão. Agora, sou o guia. Seguimos por caminhos estreitos, num ziguezague prudente.

Até que o motor ferve novamente. Resolvemos parar e esperar o resfriamento natural.

Passa um carro por nós, soluçando. Morre logo à frente. É o mesmo. Talvez o motorista estivesse nos seguindo. Aquieto-me.

Savério continua a exercitar seu humor de Toscano, seco e de taninos exuberantes, como alguns dos melhores vinhos de sua região.

- Nosso doge, além de tudo, é homem de humildade ímpar. Atribui todas as suas incríveis obras a São Pedro.

- Pois é, pois é – assinto eu, sem animação.

- E nossa mídia é fiadora dessa modéstia. Nas tragédias da Serra fluminense, deu todo crédito a Lula e Dilma. Aqui, tudo é obra de Pedro. Se não é Pedro, é o povo que se excede em brincadeiras irresponsáveis com o lixo.

Giana arranca as sandálias.

- Olhaaa, tem um pedaço de jornal grudado aqui – aponta com nojo, erguendo o pé molhado à altura do volante.

- Agora infectou mesmo – aterroriza-se Saverio, de olhos arregalados.

- Será que vamos chegar em casa antes de amanhecer? – pergunto, sem obter resposta.

- Olha... Essa é a hora do Marcos, o goleiro deles, se aposentar e assumir um cargo de acordo com sua qualidade e condição de milagreiro... – afirma Saverio, um anarcorinthiano radical.

- O que tem esse goleiro deles? – dispara Giana, um pouco impaciente, quase indignada.

- Ora, quem é o padroeiro de Veneza? São Marcos. Temos um aqui, de carne e osso. Que assuma logo a defesa da São Paulo Veneziana, esse exemplo bárbaro de metamorfose urbana.

Faz-se silêncio. A luz é escassa.

Agora, à volta do carro à frente, marido e mulher gesticulam. Há um bate-boca espetacular cujo conteúdo não logramos decifrar.

Agachada, a criança brinca com a água que corre no meio fio. Incessante.

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