PATRIOTISMO SELETIVO
Por que em Ímola a Globo ignorou a homenagem de Frank Williams ao Brasil?
Por Raimundo Rodrigues Pereira
Entre os dias 21 e 24 de abril, a TV Globo produziu dez matérias sobre a corrida de Fórmula 1 de Ímola, disputada no domingo 23. Foram três matérias na sexta, dia em que os pilotos treinam livremente na pista onde vai ser realizada a corrida; duas no sábado, quando são feitas as provas de classificação que definem a ordem em que os 22 carros que disputam se colocarão no grid de largada; duas no domingo, a grande cobertura da corrida e uma matéria no Fantástico; e mais três na segunda, duas de reportagem e mais uma do tradicional comentarista da emissora sobre esses assuntos, Reginaldo Leme.
Quase despercebido.Os carros com o adesivo permaneceram por meros 91 segundos na telinha
Em nenhuma dessas matérias foi mencionado o fato de Frank Williams, o chefe da famosa escuderia de Fórmula 1 que leva seu sobrenome, ter colocado, nos seus dois veículos que disputaram a prova, um adesivo com uma bandeira do Brasil e os dizeres “2006 auto-suficiente”, para comemorar o fato de que o País está se tornando auto-suficiente em petróleo.
A Williams tem entre seus patrocinadores a Petrobras. Em carta à empresa, Frank Williams diz que colocou a bandeira e os dizeres totally free of charge, in recognition of this exciting – and almost unique – development for Brazil and Petrobras; ou seja, que não cobrou nada, em reconhecimento à importância do acontecimento, para o Brasil e para a Petrobras.
O fato era mais que conhecido da TV Globo. A emissora recebeu a nota da Petrobras anunciando que os carros da Williams fari am a homenagem à auto-suficiência, “sem custo algum para a companhia”. Durante os treinos livres dos pilotos, o repórter e o produtor da TV Globo em Ímola viram os carros com a homenagem e receberam de um funcionário da Petrobras a sugestão de que o fato fosse mencionado. Um outro piloto de Fórmula 1 que passava pelo local quis saber o que significavam os dizeres e a bandeira do Brasil nos carros da Williams e isso foi motivo para que o funcionário da Petrobras, que cuida da promoção da empresa há quase 30 anos, reforçasse junto aos homens da emissora a sua sugestão para as matérias.
O que explica a omissão da Globo? Foi uma decisão política, para impedir que o governo, como se diz, “faturasse” o evento? Em tese, não deveria ser. As administrações petistas, na Petrobras e no governo, parece que não discriminam a TV Globo, a despeito do conhecido conservadorismo da emissora.
É a Petrobras que patrocina as transmissões da Fórmula 1 pela TV Globo, uma conta que se pode estimar em perto de 40 milhões de reais no ano. Já no governo de Luiza Erundina, a prefeitura petista de São Paulo apoiou a realização da Fórmula 1 na cidade, no Autódromo de Interlagos, com vários milhões de reais em obras. A administração de Marta Suplicy também apoiou o evento com quantias também na casa de vários milhões de reais. Uma das primeiras medidas provisórias do governo Lula em 2003 foi a que abriu uma exceção na lei do governo Fernando Henrique Cardoso, que proíbe a propaganda do fumo em eventos esportivos, para permitir a propaganda de cigarros na transmissão, pela Globo, da Fórmula 1, que naquele ano abriu seu campeonato em Interlagos.
Galvão Bueno, que narrou a última corrida de Ímola para a TV Globo, do Rio, por suposto também não deve ter nada contra a Petrobras e o Brasil. Como se sabe, ele é um especialista na narração de grandes feitos esportivos nacionais. Pode-se associar seu nome à vinheta sonora que a Globo inventou – a que dizia Brasil, sil, sil, sil, sil, sil – sempre que um herói da pátria realizava algum grande feito esportivo. Galvão, através de um assessor de imprensa, disse que não podia falar sobre o fato de a Globo não ter divulgado a homenagem da Williams ao Brasil. O assessor disse que “casos delicados”, que envolvem as relações da Globo com o governo, não podem ser respondidos por Galvão, cuja relação com a empresa seria “a de um funcionário”. Pessoalmente, pode-se imaginar, Galvão não teria motivos para nã o gostar da Petrobras: seu filho, “Cacá” Bueno, foi patrocinado pela estatal em 2003, 2004 e 2005, nos campeonatos automobilísticos da Stock Car.
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O dono da escuderia não cobrou pelo anúncio do feito brasileiro
O fato de Frank Williams ser personagem da história e ela ocorrer em Ímola num campeonato de Fórmula 1 é outro motivo que torna difícil compreender por que a Globo a ignorou. A Fórmula 1 foi iniciada oficialmente em 1950. E, com a cobertura pela televisão, tornou-se o terceiro evento esportivo mais visto e mais famoso do mundo, logo depois da Copa Mundial de Futebol e das Olimpíadas, com a vantagem de as corridas serem disputadas 18 vezes por ano e não, como a Copa e as Olimpíadas, de quatro em quatro anos. O velho Frank – ele está hoje com 63 anos – é uma legenda nesses campeonatos, nos quais está há cerca de 40 anos. Vive em cadeira de rodas, depois de um acidente de carro em 1986. É um homem rico. Um patrocínio como o que a Petrobras paga anualmente à sua equipe está na casa dos 10 milhões de dólares anuais.
Frank tem uma ligação dramática com o Brasil. Deu, em 1983, a oportunidade para Ayrton Senna pilotar um carro de Fórmula 1 pela primeira vez. E o piloto brasileiro morreu exatamente em Ímola, no dia 1º de maio de 1994, na sua primeira temporada pelo time de Frank Williams.
Na linguagem jornalística, “ganchos” para fazer as matérias, portanto, não faltaram. Por que a Globo não as fez? Ela errou?
O repórter que estava em Ímola não quis responder a essa pergunta oficialmente. Galvão Bueno também não, como já se disse. O editor responsável pela pauta da Fórmula 1 na TV Globo também disse que não lhe cabia aparecer na história. Oficialmente, a emissora negou que tenha errado: “Não consideramos que todo tipo de homenagem tenha interesse jornalístico. Nesse caso específico, avaliamos que a homena gem teve mais interesse comercial do que jornalístico”.
Será que não faltou à Globo patriotismo? O conceito é complicado. Como dizia Bernard Shaw, há canalhas que se disfarçam de patriotas. Mas parece caber nessa história. Em Ímola, a Williams teve um tempo de exposição excepcionalmente baixo na transmissão do evento pela RAI, a rede de televisão italiana que gerou as imagens básicas que todas as outras televisões do mundo utilizaram.
Somando tudo, os dois carros da Williams apareceram apenas 91 segundos, 0,7% do total, a pior marca das 11 escuderias que disputaram. A Ferrari, de Michael Schumacher, e a Renault, de Fernando Alonso, tiveram 5.220 segundos e 3.865 segundos, ou 40,4% e 29,9% do tempo, respectivamente. Como Schumacher ganhou a prova e Alonso ficou em segundo, os carros da Williams – que ficaram em sexto e décimo terceiro, respectiva mente – de fato não poderiam ter cobertura comparável. Mas por que a Williams ficou tão abaixo mesmo de escuderias como a Red Bull e a Toro Rosso, que tiveram desempenho pior, mas bem mais cobertura de tevê – 2,4% e 1,6%, respectivamente?
Frank Williams, irritado com os números da cobertura da RAI, reclamou com Bernie Ecclestone, o milionário que é uma espécie de dono da Formula One Holdings. Disse, depois, que um problema grave em Ímola, com o qual o próprio Ecclestone concorda, é que os italianos torcem pelos carros nacionais, da Ferrari, e os focalizam exageradamente.
Com a TV Globo, o problema na cobertura da Fórmula 1 em Ímola não foi de excesso de patriotismo, com certeza. A auto-suficiência brasileira em petróleo foi mais que um fato nacional relevante; foi um fato jornalístico global, de importância política internaciona l; e, obviamente, muito significativo. A homenagem de Frank Williams ao Brasil e à Petrobras, nos termos em que ele a fez, era um fato jornalístico a ser divulgado na forma própria, a mais óbvia das quais poderia ser uma reportagem com Frank Williams e os carros com a bandeira brasileira e os dizeres sobre a auto-suficiência, por ocasião dos eventos em Ímola. Não seria necessário que, depois da reportagem, entrasse a vinheta com o Brasil sil sil sil sil sil. Mas que a Globo errou, errou.
Se não foi um erro, foi uma opção? O passado da TV Globo – que, não se pode esquecer, tentou esconder a campanha das Diretas Já, em 1984, e editou contra Lula o seu debate com Collor, no final da campanha presidencial de 1989 – não permite excluir essa hipótese.
Revista CartaCapital