28/7/2011, M K Bhadrakumar, Asia Times Online
http://www.atimes.com/atimes/Middle_East/MG29Ak02.html
Depois de ter permanecido na sombra por quase oito meses, tentando entender o significado e avaliar os riscos da Primavera Árabe, Israel de repente voltou à cena, na 3ª-feira. Em movimento sem precedentes, o presidente israelense Shimon Peres convocou a imprensa árabe e anunciou que Israel apóia a mudança de regime em Damasco, Síria.
Até agora, Israel dedicara-se, atentamente, a não se identificar com a Primavera Árabe. Preferiu concentrar-se mais no que viria depois de mudados os regimes, do que em promover revolucionários nas barricadas. No caso da Síria, até se chegou a suspeitar que Israel estivesse secretamente envolvida na preservação do regime do presidente Bashar al-Assad, vendo-o como uma espécie de barreira de proteção, entre Israel e o dilúvio (a ascensão de um governo da Fraternidade Muçulmana).
Na 3ª-feira, Peres, num só golpe, apagou qualquer vestígio de ambigüidade estratégica. “Assad tem de sair. Quanto antes sair, melhor para o povo sírio” – disse Peres. O presidente israelense saudou os manifestantes anti-Assad: “É fácil [para os Sírios] sair à rua e protestar. Mas e quando o exército [sírio] atira contra o próprio povo? É espantoso. A coragem e a firmeza são prova da honra dos sírios”.
Peres insistiu em que a mudança de regime em Damasco trabalha a favor da paz entre árabes e israelenses. Mostrou-se absolutamente confiante de que o regime que suceda Assad em Damasco firmará um tratado de paz com Israel: “Os que buscam a paz prevalecerão”.
É novidade absoluta.
Por que Israel optou por expor a própria ambigüidade estratégica em relação à Síria? Israel, afinal, sabe, é claro, perfeitamente, que qualquer mudança de regime em qualquer ponto do mundo árabe, sob as atuais condições, sempre, e necessariamente trabalhará contra os interesses de Israel. O Egito é caso típico em que, se e quando o governo de transição passar o poder a governo eleito, não haverá como algum governo eleito deixar de considerar o forte desejo popular de que uma nova política externa egípcia opere para distanciar o país, ao mesmo tempo, de EUA e Israel.
Uma grande maioria de egípcios exigirá que seu governo eleito distancie-se de qualquer modalidade de cooperação próxima com Israel, em questões econômicas e de segurança. Israel assiste, com ansiedade, a possibilidade de que se construam laços de simpatia entre o Egito e o Irã. O chefe da inteligência militar israelense major-general Aviv Kochavi fez, recentemente, declaração espantosa: disse que o Irã estaria financiando secretamente a Fraternidade Muçulmana no Egito. Em resumo: para Kochavi, Israel não se poderia dar o luxo de ser otimista em relação ao resultado de uma mudança de regime na Síria.
O cálculo de Peres parece ser diferente. O que transparece é que Israel, agora, completou uma avaliação ‘fria’ e concluiu que, de fato, são mínimas as possibilidades de que haja qualquer tipo de mudança de regime em Damasco. Patrick Seal, arabista e autor conhecido, resumiu bem, semana passada:
http://www.atimes.com/atimes/Middle_East/MG29Ak02.html
Depois de ter permanecido na sombra por quase oito meses, tentando entender o significado e avaliar os riscos da Primavera Árabe, Israel de repente voltou à cena, na 3ª-feira. Em movimento sem precedentes, o presidente israelense Shimon Peres convocou a imprensa árabe e anunciou que Israel apóia a mudança de regime em Damasco, Síria.
Até agora, Israel dedicara-se, atentamente, a não se identificar com a Primavera Árabe. Preferiu concentrar-se mais no que viria depois de mudados os regimes, do que em promover revolucionários nas barricadas. No caso da Síria, até se chegou a suspeitar que Israel estivesse secretamente envolvida na preservação do regime do presidente Bashar al-Assad, vendo-o como uma espécie de barreira de proteção, entre Israel e o dilúvio (a ascensão de um governo da Fraternidade Muçulmana).
Na 3ª-feira, Peres, num só golpe, apagou qualquer vestígio de ambigüidade estratégica. “Assad tem de sair. Quanto antes sair, melhor para o povo sírio” – disse Peres. O presidente israelense saudou os manifestantes anti-Assad: “É fácil [para os Sírios] sair à rua e protestar. Mas e quando o exército [sírio] atira contra o próprio povo? É espantoso. A coragem e a firmeza são prova da honra dos sírios”.
Peres insistiu em que a mudança de regime em Damasco trabalha a favor da paz entre árabes e israelenses. Mostrou-se absolutamente confiante de que o regime que suceda Assad em Damasco firmará um tratado de paz com Israel: “Os que buscam a paz prevalecerão”.
É novidade absoluta.
Por que Israel optou por expor a própria ambigüidade estratégica em relação à Síria? Israel, afinal, sabe, é claro, perfeitamente, que qualquer mudança de regime em qualquer ponto do mundo árabe, sob as atuais condições, sempre, e necessariamente trabalhará contra os interesses de Israel. O Egito é caso típico em que, se e quando o governo de transição passar o poder a governo eleito, não haverá como algum governo eleito deixar de considerar o forte desejo popular de que uma nova política externa egípcia opere para distanciar o país, ao mesmo tempo, de EUA e Israel.
Uma grande maioria de egípcios exigirá que seu governo eleito distancie-se de qualquer modalidade de cooperação próxima com Israel, em questões econômicas e de segurança. Israel assiste, com ansiedade, a possibilidade de que se construam laços de simpatia entre o Egito e o Irã. O chefe da inteligência militar israelense major-general Aviv Kochavi fez, recentemente, declaração espantosa: disse que o Irã estaria financiando secretamente a Fraternidade Muçulmana no Egito. Em resumo: para Kochavi, Israel não se poderia dar o luxo de ser otimista em relação ao resultado de uma mudança de regime na Síria.
O cálculo de Peres parece ser diferente. O que transparece é que Israel, agora, completou uma avaliação ‘fria’ e concluiu que, de fato, são mínimas as possibilidades de que haja qualquer tipo de mudança de regime em Damasco. Patrick Seal, arabista e autor conhecido, resumiu bem, semana passada:
"A situação em Damasco não chegou à massa crítica. Damasco não se levantou contra Assad, os serviços de segurança não deixaram de apoiar Assad, a economia não entrou em colapso. O regime parece fraco, mas a oposição parece ainda mais fraca. Quanto mais tempo passar, e mais mortos houver, mais difícil será encontrar uma solução. É indispensável encontrar solução negociada. Se não se conseguir isso, haverá guerra civil.”
Israel também parece estar decepcionada por não ver nem sinal de ação internacional concertada contra a Síria, como aconteceu na Líbia. No mínimo, as humilhações e baixas que Muammar Gaddafi lhes está impondo na guerra da Líbia parecem ter ensinado as potências ocidentais a avaliar mais objetivamente a ideia de abrir novo flanco de guerra na Região, dessa vez na Síria, pelo menos em futuro próximo.
Os BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – com o Líbano – estão contendo qualquer movimento das potências ocidentais, impedindo até uma discussão no Conselho de Segurança da ONU sobre a Síria. Recente visita a Damasco, do secretário-geral da Liga Árabe Nabil Elaraby, mostrou que, sim, os ventos regionais já sopram a favor de Assad.
A Turquia, outra vez, contra Israel
Por algum tempo, recentemente, Israel acalentou esperanças de reaquecer os laços hoje moribundos que a ligaram à Turquia, no campo da segurança; e de construir um movimento de pinça ascendente, contra a Síria, pelo norte e pelo sul. As coisas até pareceram estar andando bem nas últimas semanas, rumo a uma normalização das relações Israel-Turquia, com diplomatas dos dois lados trabalhando para neutralizar a amarga lembrança do ataque israelense contra o comboio humanitário que tentava chegar a Gaza vindo de Istambul, ano passado; naquele ataque, morreram nove cidadãos turcos.
Mas a coisa novamente desandou. Transpiraram notícias de que Ancara insiste na exigência de que Israel apresente desculpas formais, o que dificilmente acontecerá porque, se acontecer, implicará expor o exército de Israel a acusação também formal, de prática de crime. Os turcos agora ameaçam punir Israel.
“A bola está no campo israelense. Se pedir desculpas, tudo bem. Se não, teremos de recorrer ao Plano B” – disse um alto funcionário da Turquia à Agence France-Presse. Acrescentou que a Turquia considera acusar e processar formalmente os comandos israelenses que atacaram o comboio humanitário; e que analisa também a possibilidade de “diminuir ainda mais a representação diplomática e adiar o reconhecimento de novos enviados que Israel mande à Turquia”.
O ministro turco das Relações Estrangeiras fez declaração em que critica o recente movimento de Israel, de construir novas colônias nos territórios palestinos ocupados.
Antes, no sábado, o primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, ao falar numa conferências de enviados palestinos em Istambul, disse, na presença de Mahmoud Abbas, da Autoridade Palestina: “A menos que recebamos pedido formal de desculpas pela morte de nove cidadãos turcos, até que suas famílias sejam indenizadas e até que o bloqueio de Gaza seja completamente levantado, as relações entre Turquia e Israel não serão normalizadas”. E ameaçou visitar Gaza.
Ancara sabe que são exigências humilhantes que, ainda que o primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu desejasse atender, num espírito de realpolitik ou pragmatismo, não seriam aceitas pela opinião pública em Israel. Pode-se concluir que os turcos estão trabalhando exclusivamente para dificultar o mais possível, para Israel, o trabalho de recompor as relações entre os dois países. Repentinamente, os turcos parecem ter perdido o ímpeto na direção de “normalizar” as coisas com Israel (como os norte-americanos desejam), na atual conjuntura.
A secretária de Estado dos EUA Hillary Clinton visitou a Turquia há dez dias e fez inúmeras declarações elogiosas ao grande destino da Turquia como líder no Oriente Médio. O novo diretor da CIA-EUA, David Petraeus, também passou pela Turquia, na viagem de volta aos EUA, ao deixar o comando no Afeganistão. Tudo levava a crer que a Turquia morderia o fruto-tentação de aceitar alguma proposta para agir como cabeça de ponte, numa intervenção concertada, contra a Síria.
Mas Ancara avaliou cuidadosamente as vantagens de pôr-se como agente instigador de uma mudança de regime em Damasco. E parece ter chegado à conclusão de que os perigos que se criariam para sua própria integridade territorial ultrapassam em muito qualquer vantagem geopolítica que Washington possa prometer. Em palavras mais simples: não interessa à Turquia ser vista como ‘aliada’ de Israel nesse momento. E assim, desmoronam quaisquer esperanças que Israel acalentasse de começar a romper seu isolamento regional, reinventando um eixo Israel-Turquia, contra a Síria.
O que preocupa Ancara é que os desenvolvimentos na Síria parecem estar tomando rumo perigoso na direção de guerras religiosas, sem qualquer tipo de contenção possível, como as guerras religiosas que devastaram o Líbano nos anos 1980s – o que seria terrível, em país tão próximo da Turquia.
A sequência de eventos disparados pelo terrível assassinato de três famílias da tribo Alawi, mortos por extremistas salafitas na cidade de Homs, próxima da fronteira turca, é prova das consequências gravíssimas que adviriam de qualquer desvio incontrolado que aconteça nos movimentos democráticos na Síria – que, nos últimos meses, têm sido patrocinados por Ancara.
Uma onda de ressentimento anti-salafitas varre a Região, entre xiitas e alawitas. As paixões sectárias e religiosas ameaçam como vírus adormecido. Ancara é suficientemente sensível para saber que há extremistas salafitas, muitos dos quais ligados à al-Qaeda e veteranos calejados da guerra do Iraque, infiltrados nas manifestações de rua na Síria.
Se irromper na Síria uma guerra civil semelhante a que houve no Líbano, será apenas questão de tempo, e a Turquia também se incendiará. Os xiitas e alawitas na Turquia (cerca de 20% da população turca) envolver-se-ão instintivamente na guerra síria. Na sociedade turca, as tensões entre alawitas e salafitas são visíveis, bem à superfície.
Os grupos alawitas na Turquia formaram uma organização guarda-chuva conhecida como Fundação Alawi-Bektashi, que regularmente distribui manifestos para sensibilizar a comunidade mundial sobre alegadas “violações de direitos dos alawitas, casos de tratamento desigual e discriminatório” e “crimes de ódio” cometidos por salafitas associados à comunidade Fetullah Gulen.
O último desses manifestos alawitas, intitulado “A comunidade Gulen contra os alawitas” detalha que a comunidade Gulen de salafitas na Turquia está empenhada em “guerra negra de propaganda contra os alawitas”, acusados de ter “tomado o judiciário e o exército. Na Turquia há um secularismo sectário. Uma elite alawita governa como quer as massas sunitas”, e por aí vai.
Reação dos curdos
Mas o risco contra o qual a Turquia tem realmente de precaver-se é a quase inevitável reação dos curdos, cujos primeiros sinais começam a aparecer. O apoio da Turquia à oposição síria já expôs alguns sinais da proximidade entre os curdos e Damasco.
Se for empurrada para as cordas, Damasco pode retaliar contra a interferência turca, garantindo a cidadania síria aos colonos curdos que vivem no nordeste da Síria, sobretudo em Qamishli, o que sem dúvida será causa de graves dores de cabeça para Ancara, no longo prazo.
Bem visivelmente, os partidos curdos já se estão separando dos salafitas no norte da Síria, e sinalizam a disposição para trabalhar a favor do regime sírio. Há quem diga que, se a situação deteriorar, Damasco poderá ficar sem alternativa senão armar os grupos curdos para oporem-se aos salafitas.
Em resumo, Ancara sabe que patina sobre gelo muito fino, se contribuir para empurrar o regime sírio na direção de uma posição sem volta. A verdade mais simples é que os curdos como fazem invariavelmente adotarão a posição que Ancara adote. Abudllah Ocalan, líder do Partido dos Trabalhadores do Curdistão, viveu muitos anos exilado na Síria.
A questão da interferência da Turquia na Síria já levou os destacados líderes curdos Jalal Talabani (que é presidente do Iraque) e Massoud Barzani (que é presidente da Região Curda) a manifestarem apoio a Damasco. (O primeiro-ministro do Iraque, Nuri al-Maliki, também manifestou solidariedade ao regime sírio, ao assinar acordo para fornecer 150 mil barris de petróleo à Síria.)
Noutro momento, foi vitória histórica da “diplomacia coercitiva” da Turquia que, em 1998, Ancara tenha reunido tropas na fronteira síria, ameaçando invadir o país e, com isso, conseguiu literalmente obrigar Damasco a aceitar a “desmilitarização” das regiões de fronteira com a Turquia – e a expulsar Ocalan.
Agora, no contexto de uma possível interferência turca na atual situação, Damasco já enviou forças especiais para a região da fronteira com a Turquia, depois de 13 anos de “desmilitarização” daquela área.
Além disso, Damasco optou por mandar para a fronteira a 15ª Divisão de seu exército, formada predominantemente de sunitas e comandada por oficiais sírios sunitas – esvaziando o fácil pressuposto dos turcos, de que os oficiais sunitas do exército sírio estariam a ponto de desertar e abandonar o regime de Assad.
Em termos gerais, Israel acertou ao avaliar que os turcos começam a entender a mensagem de Assad, e preparam-se para alinhar-se ao lado do regime sírio.
Ancara já começa a baixar o tom da retórica anti-Síria e gradualmente está retomando sua velha plataforma de “zero problemas” com os vizinhos difíceis.
Ironia, nesse processo, é que Ancara também está sendo compelida a retomar termos mais amigáveis com o Irã e lançou ofensiva militar concertada contra guerrilheiros curdos no norte do Iraque, depois que 13 soldados turcos foram mortos, dia 14 de julho, na província de Diyarbakir, no leste da Turquia.
Em movimento brilhante, de timing impecável, o exército do Irã iniciou operações dia 16 de julho contra os rebeldes curdos nas montanhas Kandil no norte do Iraque. Paralelamente, os militares turcos também iniciaram operação no território iraquiano próximo da fronteira, na província de Hakkari, no leste da Turquia.
Ancara está fazendo o que pode, declarando que as operações iranianas e turcas não foram coordenadas. Talvez não, no plano oficial. Teerã não desmentiu. Mas os israelenses são suficientemente espertos e sabem perfeitamente bem o que está acontecendo – que alguém está trabalhando para refrescar a memória dos turcos, obrigando-os a considerar que ainda há um problema curdo não resolvido; que Ancara tem de prestar atenção aos curdos; e que, quanto a isso, Turquia, Síria, Iraque e Irã têm interesses comuns.
Evidentemente, Israel concluiu que o eixo Síria-Irã permanece intacto em larga medida, apesar da descomunal pressão que faz a Arábia Saudita, para que Assad rompa com Teerã; que o regime sírio absolutamente não está à beira do colapso, apesar da pressão organizada que sofre da Turquia, da Arábia Saudita, da França e dos EUA; e que o Qatar – o qual, dentre os estados árabes do Golfo Persa, sempre é o mais rápido – já adivinhou que a Primavera Árabe na Síria será disputa duríssima, muito mais dura que na Líbia; e que Doha de modo algum planeja entrar em luta de pesos muito mais pesados que ela.
Interessante observar que o Qatar fechou sua embaixada em Damasco e deu o fora, depois dos ataques às embaixadas dos EUA e França e à sede da rede al-Jazeera na capital síria. Mais importante que isso, Israel constata que a Turquia já começou a retroceder, na trilha que poderia levá-la a intervir na Síria.
Em resumo, o espectro que ronda Israel é que, se os tumultos na Síria começarem a arrefecer, a atenção da comunidade internacional inevitavelmente voltará a concentrar-se na questão palestina. Abbas ainda não desistiu de obter da ONU que reconheça o Estado da Palestina, na próxima sessão da Assembleia Geral, em New York, em setembro.
A surpreendente declaração do presidente Peres é esperta tentativa para (re)incendiar a questão síria. Interessa muitíssimo a Israel que, no caso de que irrompa na Síria outra guerra civil nos moldes da guerra do Líbano, árabes, curdos e turcos ponham-se a matar-se uns os outros.
Em nenhum outro momento da Primavera Árabe, que raiou no Maghreb em dezembro passado, cobrando a vida de um vendedor de rua em Túnis, alguém previu que chegaria o dia de Israel apresentar-se como garota-propaganda da democracia no Levante, embora para expandir a guerra. O Oriente Médio é caixinha inesgotável de surpresas.
Mas a coisa novamente desandou. Transpiraram notícias de que Ancara insiste na exigência de que Israel apresente desculpas formais, o que dificilmente acontecerá porque, se acontecer, implicará expor o exército de Israel a acusação também formal, de prática de crime. Os turcos agora ameaçam punir Israel.
“A bola está no campo israelense. Se pedir desculpas, tudo bem. Se não, teremos de recorrer ao Plano B” – disse um alto funcionário da Turquia à Agence France-Presse. Acrescentou que a Turquia considera acusar e processar formalmente os comandos israelenses que atacaram o comboio humanitário; e que analisa também a possibilidade de “diminuir ainda mais a representação diplomática e adiar o reconhecimento de novos enviados que Israel mande à Turquia”.
O ministro turco das Relações Estrangeiras fez declaração em que critica o recente movimento de Israel, de construir novas colônias nos territórios palestinos ocupados.
Antes, no sábado, o primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, ao falar numa conferências de enviados palestinos em Istambul, disse, na presença de Mahmoud Abbas, da Autoridade Palestina: “A menos que recebamos pedido formal de desculpas pela morte de nove cidadãos turcos, até que suas famílias sejam indenizadas e até que o bloqueio de Gaza seja completamente levantado, as relações entre Turquia e Israel não serão normalizadas”. E ameaçou visitar Gaza.
Ancara sabe que são exigências humilhantes que, ainda que o primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu desejasse atender, num espírito de realpolitik ou pragmatismo, não seriam aceitas pela opinião pública em Israel. Pode-se concluir que os turcos estão trabalhando exclusivamente para dificultar o mais possível, para Israel, o trabalho de recompor as relações entre os dois países. Repentinamente, os turcos parecem ter perdido o ímpeto na direção de “normalizar” as coisas com Israel (como os norte-americanos desejam), na atual conjuntura.
A secretária de Estado dos EUA Hillary Clinton visitou a Turquia há dez dias e fez inúmeras declarações elogiosas ao grande destino da Turquia como líder no Oriente Médio. O novo diretor da CIA-EUA, David Petraeus, também passou pela Turquia, na viagem de volta aos EUA, ao deixar o comando no Afeganistão. Tudo levava a crer que a Turquia morderia o fruto-tentação de aceitar alguma proposta para agir como cabeça de ponte, numa intervenção concertada, contra a Síria.
Mas Ancara avaliou cuidadosamente as vantagens de pôr-se como agente instigador de uma mudança de regime em Damasco. E parece ter chegado à conclusão de que os perigos que se criariam para sua própria integridade territorial ultrapassam em muito qualquer vantagem geopolítica que Washington possa prometer. Em palavras mais simples: não interessa à Turquia ser vista como ‘aliada’ de Israel nesse momento. E assim, desmoronam quaisquer esperanças que Israel acalentasse de começar a romper seu isolamento regional, reinventando um eixo Israel-Turquia, contra a Síria.
O que preocupa Ancara é que os desenvolvimentos na Síria parecem estar tomando rumo perigoso na direção de guerras religiosas, sem qualquer tipo de contenção possível, como as guerras religiosas que devastaram o Líbano nos anos 1980s – o que seria terrível, em país tão próximo da Turquia.
A sequência de eventos disparados pelo terrível assassinato de três famílias da tribo Alawi, mortos por extremistas salafitas na cidade de Homs, próxima da fronteira turca, é prova das consequências gravíssimas que adviriam de qualquer desvio incontrolado que aconteça nos movimentos democráticos na Síria – que, nos últimos meses, têm sido patrocinados por Ancara.
Uma onda de ressentimento anti-salafitas varre a Região, entre xiitas e alawitas. As paixões sectárias e religiosas ameaçam como vírus adormecido. Ancara é suficientemente sensível para saber que há extremistas salafitas, muitos dos quais ligados à al-Qaeda e veteranos calejados da guerra do Iraque, infiltrados nas manifestações de rua na Síria.
Se irromper na Síria uma guerra civil semelhante a que houve no Líbano, será apenas questão de tempo, e a Turquia também se incendiará. Os xiitas e alawitas na Turquia (cerca de 20% da população turca) envolver-se-ão instintivamente na guerra síria. Na sociedade turca, as tensões entre alawitas e salafitas são visíveis, bem à superfície.
Os grupos alawitas na Turquia formaram uma organização guarda-chuva conhecida como Fundação Alawi-Bektashi, que regularmente distribui manifestos para sensibilizar a comunidade mundial sobre alegadas “violações de direitos dos alawitas, casos de tratamento desigual e discriminatório” e “crimes de ódio” cometidos por salafitas associados à comunidade Fetullah Gulen.
O último desses manifestos alawitas, intitulado “A comunidade Gulen contra os alawitas” detalha que a comunidade Gulen de salafitas na Turquia está empenhada em “guerra negra de propaganda contra os alawitas”, acusados de ter “tomado o judiciário e o exército. Na Turquia há um secularismo sectário. Uma elite alawita governa como quer as massas sunitas”, e por aí vai.
Reação dos curdos
Mas o risco contra o qual a Turquia tem realmente de precaver-se é a quase inevitável reação dos curdos, cujos primeiros sinais começam a aparecer. O apoio da Turquia à oposição síria já expôs alguns sinais da proximidade entre os curdos e Damasco.
Se for empurrada para as cordas, Damasco pode retaliar contra a interferência turca, garantindo a cidadania síria aos colonos curdos que vivem no nordeste da Síria, sobretudo em Qamishli, o que sem dúvida será causa de graves dores de cabeça para Ancara, no longo prazo.
Bem visivelmente, os partidos curdos já se estão separando dos salafitas no norte da Síria, e sinalizam a disposição para trabalhar a favor do regime sírio. Há quem diga que, se a situação deteriorar, Damasco poderá ficar sem alternativa senão armar os grupos curdos para oporem-se aos salafitas.
Em resumo, Ancara sabe que patina sobre gelo muito fino, se contribuir para empurrar o regime sírio na direção de uma posição sem volta. A verdade mais simples é que os curdos como fazem invariavelmente adotarão a posição que Ancara adote. Abudllah Ocalan, líder do Partido dos Trabalhadores do Curdistão, viveu muitos anos exilado na Síria.
A questão da interferência da Turquia na Síria já levou os destacados líderes curdos Jalal Talabani (que é presidente do Iraque) e Massoud Barzani (que é presidente da Região Curda) a manifestarem apoio a Damasco. (O primeiro-ministro do Iraque, Nuri al-Maliki, também manifestou solidariedade ao regime sírio, ao assinar acordo para fornecer 150 mil barris de petróleo à Síria.)
Noutro momento, foi vitória histórica da “diplomacia coercitiva” da Turquia que, em 1998, Ancara tenha reunido tropas na fronteira síria, ameaçando invadir o país e, com isso, conseguiu literalmente obrigar Damasco a aceitar a “desmilitarização” das regiões de fronteira com a Turquia – e a expulsar Ocalan.
Agora, no contexto de uma possível interferência turca na atual situação, Damasco já enviou forças especiais para a região da fronteira com a Turquia, depois de 13 anos de “desmilitarização” daquela área.
Além disso, Damasco optou por mandar para a fronteira a 15ª Divisão de seu exército, formada predominantemente de sunitas e comandada por oficiais sírios sunitas – esvaziando o fácil pressuposto dos turcos, de que os oficiais sunitas do exército sírio estariam a ponto de desertar e abandonar o regime de Assad.
Em termos gerais, Israel acertou ao avaliar que os turcos começam a entender a mensagem de Assad, e preparam-se para alinhar-se ao lado do regime sírio.
Ancara já começa a baixar o tom da retórica anti-Síria e gradualmente está retomando sua velha plataforma de “zero problemas” com os vizinhos difíceis.
Ironia, nesse processo, é que Ancara também está sendo compelida a retomar termos mais amigáveis com o Irã e lançou ofensiva militar concertada contra guerrilheiros curdos no norte do Iraque, depois que 13 soldados turcos foram mortos, dia 14 de julho, na província de Diyarbakir, no leste da Turquia.
Em movimento brilhante, de timing impecável, o exército do Irã iniciou operações dia 16 de julho contra os rebeldes curdos nas montanhas Kandil no norte do Iraque. Paralelamente, os militares turcos também iniciaram operação no território iraquiano próximo da fronteira, na província de Hakkari, no leste da Turquia.
Ancara está fazendo o que pode, declarando que as operações iranianas e turcas não foram coordenadas. Talvez não, no plano oficial. Teerã não desmentiu. Mas os israelenses são suficientemente espertos e sabem perfeitamente bem o que está acontecendo – que alguém está trabalhando para refrescar a memória dos turcos, obrigando-os a considerar que ainda há um problema curdo não resolvido; que Ancara tem de prestar atenção aos curdos; e que, quanto a isso, Turquia, Síria, Iraque e Irã têm interesses comuns.
Evidentemente, Israel concluiu que o eixo Síria-Irã permanece intacto em larga medida, apesar da descomunal pressão que faz a Arábia Saudita, para que Assad rompa com Teerã; que o regime sírio absolutamente não está à beira do colapso, apesar da pressão organizada que sofre da Turquia, da Arábia Saudita, da França e dos EUA; e que o Qatar – o qual, dentre os estados árabes do Golfo Persa, sempre é o mais rápido – já adivinhou que a Primavera Árabe na Síria será disputa duríssima, muito mais dura que na Líbia; e que Doha de modo algum planeja entrar em luta de pesos muito mais pesados que ela.
Interessante observar que o Qatar fechou sua embaixada em Damasco e deu o fora, depois dos ataques às embaixadas dos EUA e França e à sede da rede al-Jazeera na capital síria. Mais importante que isso, Israel constata que a Turquia já começou a retroceder, na trilha que poderia levá-la a intervir na Síria.
Em resumo, o espectro que ronda Israel é que, se os tumultos na Síria começarem a arrefecer, a atenção da comunidade internacional inevitavelmente voltará a concentrar-se na questão palestina. Abbas ainda não desistiu de obter da ONU que reconheça o Estado da Palestina, na próxima sessão da Assembleia Geral, em New York, em setembro.
A surpreendente declaração do presidente Peres é esperta tentativa para (re)incendiar a questão síria. Interessa muitíssimo a Israel que, no caso de que irrompa na Síria outra guerra civil nos moldes da guerra do Líbano, árabes, curdos e turcos ponham-se a matar-se uns os outros.
Em nenhum outro momento da Primavera Árabe, que raiou no Maghreb em dezembro passado, cobrando a vida de um vendedor de rua em Túnis, alguém previu que chegaria o dia de Israel apresentar-se como garota-propaganda da democracia no Levante, embora para expandir a guerra. O Oriente Médio é caixinha inesgotável de surpresas.