Fátima, Virgínia, Jesus, e o Estácio
Ao chegar na alfândega, Virgínia teve que explicar um baú cheio de açúcar. Na Capitania dos Portos, ninguém fora preparado pata tal tipo de contrabando. Em Lisboa ninguém dissera a ela que uma montanha de açúcar podia causar problemas. Virgínia não entendia o corre-corre dos fiscais e o farejar dos cães. "Ai, Jesus, o açúcar vai ficar babado!", gritava, aflita, pedindo a ajuda do Cristo, que tanto adorava seus pastéis de nata. Apelou para a intervenção de Fátima, aquela que perdia a compostura quando comia os fios-d'ovos que Virgínia tão bem fazia.
Ao chegar na alfândega, Virgínia teve que explicar um baú cheio de açúcar. Na Capitania dos Portos, ninguém fora preparado pata tal tipo de contrabando. Em Lisboa ninguém dissera a ela que uma montanha de açúcar podia causar problemas. Virgínia não entendia o corre-corre dos fiscais e o farejar dos cães. "Ai, Jesus, o açúcar vai ficar babado!", gritava, aflita, pedindo a ajuda do Cristo, que tanto adorava seus pastéis de nata. Apelou para a intervenção de Fátima, aquela que perdia a compostura quando comia os fios-d'ovos que Virgínia tão bem fazia.
Mas as santidades não ouviram suas súplicas. Era época de Natal, e Portugal fervilhava caldas em ponto de fio. Não deixariam a Lusitânia por um simples problema alfandegário. Virgínia que os desculpasse e compreendesse que, em se tratando de doces, a santidade também recai em pecado.
O contratempo foi resolvido com uns poucos cobres, e o baú foi liberado, acrescido de uma película gosmenta que os cães deixaram. Não sei se por obra do acaso ou de uma estranha reação química, o açúcar ficou diferente e passou a adoçar o tempo. As pessoas custaram a entender e até Virgínia levou algum tempo para perceber. Enquanto isso, os doces seguiam o passo da eternidade.
O contratempo foi resolvido com uns poucos cobres, e o baú foi liberado, acrescido de uma película gosmenta que os cães deixaram. Não sei se por obra do acaso ou de uma estranha reação química, o açúcar ficou diferente e passou a adoçar o tempo. As pessoas custaram a entender e até Virgínia levou algum tempo para perceber. Enquanto isso, os doces seguiam o passo da eternidade.
Não se desfaziam na boca como as cocadas, as queijadinhas e os pudins. A princípio, ficavam na ponta da língua, depois se aninhavam no lugar dos desejos. Sim, eram isto mesmo: doces desejáveis e desejantes! Corriam de boca em boca pelas vielas do Morro de São Carlos, adoçando sambas-enredos e romances. Dizem que até os mais perigosos malandros (que nessa época só roubavam galinhas e carteiras) trocavam a pinga por uma bocada num pedaço de torta d'aveiro. Dizem também que Pérola Negra, a jóia mais linda do mangue do Estácio, deixava o templo das prostitutas sagradas por um prato de arroz-doce.
A fama dos doces correu léguas e logo chegou à Lusitânia. Cristo e Fátima, gulosos como toda santidade, fizeram as malas e partiram no primeiro navio que encontraram. Vieram na segunda classe (os tempos eram difíceis), misturados aos manoéis, joaquins e marias. Fátima logo encontrou um lugar disponível dentro de uma pequena capela de conchas. Cristo custou a se ajeitar. "Por que será que cismam em me pregar numa cruz?", perguntou a si mesmo, morto de inveja do conforto de Fátima. Depois de muita procura, encontrou abrigo num presépio. Bem verdade que suas pernas ficaram para fora da manjedoura, mas acabou se ajeitando.
O Atlântico foi gentil com os ilustres passageiros. Prendeu as serpentes marinhas numa jaula, no Cabo da Boa Esperança, e proibiu aos ventos que agitassem as águas. Recrutou as Nereidas e pediu-lhes que acompanhassem o navio, mas de longe. As Nereidas obedeceram e seguiram o navio a uma certa distância. Mas o Atlântico se esquecera de proibir que elas cantassem e, numa noite em que a lua se aninhava nos braços de Posídon, Cristo foi atraído para o convés. Encostou-se na mureta do navio e já estava pronto para pular quando foi salvo por uma rapariga que por ali passava.
Depois daquele "quase-suicídio", as Nereidas silenciaram, e a viagem seguiu seu curso sem nenhum contratempo. No navio, Cristo e Fátima estreitaram laços com os lusitanos que carregavam sonhos dentro dos baús. Ouviram lamentações e promessas e trocaram endereços. Ninguém entendia quando Cristo e Fátima escreviam Rua do Céu, sem número, Bairro Paraíso, Infinito, numa folha de papel de pão. Não conheciam a rua nem o bairro e a cidade, mas fingiam que lá tinham estado.
O navio aportou no Rio de Janeiro, numa ensolarada e adocicada manhã de 27 de setembro. Um cheiro de açúcar emanava de todos os cantos da cidade, onde crianças corriam para todos os lados carregando saquinhos de doce. "Doce!", exclamaram as santidades, exibindo para um transeunte um envelope de carta, onde se lia Rua da Capela, Estácio. A esta altura, devo esclarecer que naquela época o Estácio era conhecido e reconhecido por todos. Era exaltado nos sambas e lundus que a cidade cantava e servira de berço para a primeira escola de samba da cidade. Por isso não foi difícil para os santíssimos obter informações precisas. Foram até a Praça XV e lá tomaram um bonde para a Tijuca. Pediram ao motorneiro que os avisasse quando o bonde chegasse no Largo do Estácio. E assim foi feito.
Subiram o morro, seguidos por um bando de crianças a lhes pedir doces. Lembrando-se do dia em que chamara para si as criancinhas, Cristo se deu conta de que, de todos os seus milagres, nenhum tinha sido dirigido a elas. Sentiu uma ponta de remorso remoendo-lhe o peito e confessou a Fátima (que a essa altura também se lembrava das três crianças que a receberam de braços abertos) que já era hora de reparar o descuido. E ali, bem no topo da favela, ergueu os braços para o céu e pediu ao Pai que lhe favorecesse um milagre. Nessa hora o sol deu três voltas sobre si mesmo, e um aroma de cocada invadiu a cidade.
A fama dos doces correu léguas e logo chegou à Lusitânia. Cristo e Fátima, gulosos como toda santidade, fizeram as malas e partiram no primeiro navio que encontraram. Vieram na segunda classe (os tempos eram difíceis), misturados aos manoéis, joaquins e marias. Fátima logo encontrou um lugar disponível dentro de uma pequena capela de conchas. Cristo custou a se ajeitar. "Por que será que cismam em me pregar numa cruz?", perguntou a si mesmo, morto de inveja do conforto de Fátima. Depois de muita procura, encontrou abrigo num presépio. Bem verdade que suas pernas ficaram para fora da manjedoura, mas acabou se ajeitando.
O Atlântico foi gentil com os ilustres passageiros. Prendeu as serpentes marinhas numa jaula, no Cabo da Boa Esperança, e proibiu aos ventos que agitassem as águas. Recrutou as Nereidas e pediu-lhes que acompanhassem o navio, mas de longe. As Nereidas obedeceram e seguiram o navio a uma certa distância. Mas o Atlântico se esquecera de proibir que elas cantassem e, numa noite em que a lua se aninhava nos braços de Posídon, Cristo foi atraído para o convés. Encostou-se na mureta do navio e já estava pronto para pular quando foi salvo por uma rapariga que por ali passava.
Depois daquele "quase-suicídio", as Nereidas silenciaram, e a viagem seguiu seu curso sem nenhum contratempo. No navio, Cristo e Fátima estreitaram laços com os lusitanos que carregavam sonhos dentro dos baús. Ouviram lamentações e promessas e trocaram endereços. Ninguém entendia quando Cristo e Fátima escreviam Rua do Céu, sem número, Bairro Paraíso, Infinito, numa folha de papel de pão. Não conheciam a rua nem o bairro e a cidade, mas fingiam que lá tinham estado.
O navio aportou no Rio de Janeiro, numa ensolarada e adocicada manhã de 27 de setembro. Um cheiro de açúcar emanava de todos os cantos da cidade, onde crianças corriam para todos os lados carregando saquinhos de doce. "Doce!", exclamaram as santidades, exibindo para um transeunte um envelope de carta, onde se lia Rua da Capela, Estácio. A esta altura, devo esclarecer que naquela época o Estácio era conhecido e reconhecido por todos. Era exaltado nos sambas e lundus que a cidade cantava e servira de berço para a primeira escola de samba da cidade. Por isso não foi difícil para os santíssimos obter informações precisas. Foram até a Praça XV e lá tomaram um bonde para a Tijuca. Pediram ao motorneiro que os avisasse quando o bonde chegasse no Largo do Estácio. E assim foi feito.
Subiram o morro, seguidos por um bando de crianças a lhes pedir doces. Lembrando-se do dia em que chamara para si as criancinhas, Cristo se deu conta de que, de todos os seus milagres, nenhum tinha sido dirigido a elas. Sentiu uma ponta de remorso remoendo-lhe o peito e confessou a Fátima (que a essa altura também se lembrava das três crianças que a receberam de braços abertos) que já era hora de reparar o descuido. E ali, bem no topo da favela, ergueu os braços para o céu e pediu ao Pai que lhe favorecesse um milagre. Nessa hora o sol deu três voltas sobre si mesmo, e um aroma de cocada invadiu a cidade.
As crianças multiplicaram-se e aumentaram as vozes que repetiam "moço, me dá um doce!". Milhares de saquinhos caíram do céu. As crianças pularam sobre eles e saíram correndo na direção de outro ponto de doce. Não agradeceram. Cristo só foi entender o descaso quando Virgínia, que a tudo assistira, lhe perguntou: "Meu Jesus, estás a pagar alguma promessa?"
Marcia Frazão
Este texto consta em meu livro Amor se Faz na Cozinha, da Editora Bertrand
Marcia Frazão
Este texto consta em meu livro Amor se Faz na Cozinha, da Editora Bertrand
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