segunda-feira, fevereiro 27, 2006


Quem está matando os cortadores de cana? (1)
Este relato pode ser lido como uma obra de ficção policial, mas é o retrato de uma tragédia de carne e osso que está em curso: cortadores de cana estão morrendo de exaustão nas usinas de São Paulo. Em pleno século 21, no estado mais desenvolvido do Brasil, tombam vítimas do mesmo mal que três séculos atrás matava os seus ancestrais escravizados nos engenhos de cana do Recôncavo Baiano, descritos por Antonil.* É o que relata, em detalhes, o professor Francisco Alves,** da Universidade Federal de São Carlos, na denúncia que serve de base a esta série.
A ocorrência macabra gerou um pedido de CPI na Assembléia Legislativa paulista, por iniciativa da deputada Ana Martins (PCdoB), ela própria, na infância, uma trabalhadora do campo. A base de apoio ao governador Geraldo Alckmin na Assembéia impede a instalação da CPI, como vem fazendo com outras 66 no segundo mandato do pretendente tucano à Presidência da República (clique aqui para ver a série de Rodrigo de Carvalho a respeito).
Timba, 47, morreu de trabalhar, por R$ 38,20
Uma morte específica gerou a iniciativa de Ana Martins. Em outubro passado, José Mário Alves Gomes, conhecido como Timba, 47 anos, morreu depois de uma jornada em que cortara 410 metros de cana, ou 25 toneladas, na usina Santa Helena, do Grupo Cosan, em Rio das Pedras, a 155 km da capital paulista.
Timba foi contratado na base de R$ 0,08 (oito centavos) por metro cortado. Ele iria receber, ao fim do dia, exatos R$ 32,80.
Segundo a Pastoral do Migrante, entre as safras 2004/2005 e 2005/2006 (de maio a outubro) morreram dez cortadores de cana na Região Canavieira de São Paulo. Tinham idades entre 24 e 50 anos. Todos eram migrantes, vindos do Norte de Minas, Bahia, Maranhão, Piauí. As causa mortis em seus atestados de óbitos são vagas; apontam morte por parada cardíaca. O pedido de CPI aponta cerca de 20 mortes, só em 2005. E Francisco Alves, que estuda a questão há 20 anos, estima que as mortes contabilizadas "são uma amostra insignificante do total que deve morrer clandestinamente".
O sistema de trabalho na cana
O exame das condições de trabalho das vítimas joga mais luz sobre essas causas.
O corte da cana se dá em um retângulo, com 8,5 metros de largura, equivalendo a 5 "ruas" (linhas em que é plantada a cana) e um comprimento que varia conforme a produtividade do trabalhador. Este retângulo é chamado eito; a distância medida ao final do dia indica o ganho diário do trabalhador. Os metros lineares de cana, multiplicados pelo valor da cana pesada na usina, dão o valor da diária a receber.
Estima-se que 6 toneladas de cana (considerando uma cana de primeiro corte, de crescimento ereto) correspondem a um comprimento de 200 metros. O trabalhador, além de cortar a cana contida neste retângulo de, deve cortar também as pontas e transportar
No Centro-Sul o utensílio de trabalho do cortador de cana é o podão, espécie de machete de ponta chata, pesando cerca de meio quilo, que o próprio trabalhador mantém afiado como uma navalha, graças à lima que leva para o eito. A vestimenta precisa cobrí-lo por inteiro, apesar do calor, numa armadura para escapar das folhas de cana que cortam como facas. Inclui botina com biqueira de aço, perneiras de couro até o joelho, calças de brim, camisa de manga comprida com mangote de brim, luvas de raspa de couro, lenço no rosto e pescoço e chapéu ou boné. Hoje, pode incluir óculos protetores.
No princípio de cada jornada, o supervisor da turma designa o eito do cortador e este e inicia o trabalho: começa a cortar pela linha central, onde será depositada a cana, em seguida corta as duas linhas laterais à central, sem deixar linhas sem cortar ("deixar telefone").
áéPerda de gua em média de 8 litros/dia
Em sua rotina de trabalho, o cortador abraça um feixe, de cinco e dez canas, curva-se e corta. Os cortes são bem rente ao chão (uma vantagem do corte manual sobre a colheitadeira), pois é no pé da cana que se concentra a sacarose; mas não podem atingir a raiz para não prejudicar a rebrota. Se a cana estiver "deitada" ou "acamada", exigirá mais cortes. A seguir, o trabalhador corta o "palmito" – a parte de cima das canas, onde estão as folhas verdes, que são jogadas ao solo. Por fim, transporta o feixe para a linha do meio (3ª linha) que dista 3 metros das extremidades do eito. Depois começa tudo de novo. Um bom cortador de cana é como um corredor fundista: não depende tanto da massa muscular, mas da resistência, em uma atividade repetitiva e exaustiva, a céu aberto, sob o sol, às vezes aguentando fuligem, poeira e fumaça, por um período que varia entre 8 a 12 horas.
O dispêndio de energia do trabalhador, sob o sol, com esta vestimenta, leva a suar abundantemente, perder muita água (em média, 8 litros/dia) e sais minerais. Isso produz desidratação e câibras frequentes. As câibras começam em geral nas mãos e pés, avançam pelas pernas e chegam no tórax, o que provoca fortes dores e convulsões, dando a impressão de que um ataque epiléptico. Para conter as câibras e a desidratação, algumas usinas ministram aos trabalhadores soro fisiológico, e até suplementos energéticos.

Leia amanhã, na parte final deste artigo, como e por que a produtividade do trabalho do cortador de cana, usando o mesmo podão, quadruplicou em duas gerações.* O livro do padre Antonil, é "Culturae opulências do Brasil por suas drogas e minas" (1711); foi confiscadopela Coroa portuguesa, que viu nele a revelação de segredos dosistema produtivo dos engenhos.

** Professor adjunto do Departamento de Engenharia de Produção da UFSCar
Fonte: http://www.vermelho.org.br/diario/2006/0226/www.pastoraldomigrante.org.br

Quem está matando os cortadores de cana? (2)
Na primeira parte deste artigo,vimos como o cortador de cana em São Paulo trabalha, e como morre de trabalhar. Examinemos agora como e por que a produtividade do seu trabalho, usando o mesmo podão, quadruplicou em duas gerações.
A remuneração deste trabalhador é por quantidade de cana cortada no dia, portanto um pagamento por produção. Constitui forma de salário já denunciada por Adam Smith no século 18 e por Karl Marx no século 19, pois o trabalhador tem o seu ganho atrelado à força de trabalho despendida. E tanto Adam Smith quanto Marx denunciavam este tipo de pagamento, chamando-o de perverso e desumano, ao examinar situações em que o trabalhador controlava o seu processo de trabalho e tinha, ao final do dia, pleno conhecimento do valor que tinham ganho. No corte de cana é pior: os trabalhador sabe quantos metros de cana cortou, mas não o seu valor, que depende do peso da cana cortada.
O sistema que provocou a greve de Leme
As usinas pesam a cana e atribuem um valor ao metro, através da relação entre peso da cana, valor da cana e metros que foram cortados. Tudo isto é feito nas usinas, onde ficam as balanças, longe do controle do trabalhador. Portanto, entre os tecelões dos séculos 18 e 19 e os canavieiros dos séculos 20 e 21, a enorme distância é o não controle do trabalhador sobre o seu salário.O trabalhador termina sua jornada sem saber o quanto ganhou. Mesmo cortando muitos metros, pode ter um ganho pequeno, a depender da conversão feita pelo departamento técnico da usina.
Este sistema alimenta incontáveis desavenças entre trabalhadores e usineiros. Em 1986 elas levaram à greve de Leme, que se alastrou para outras cidades e regiões canavieiras de São Paulo. Dois anos antes, a greve de Guariba, pioneira de uma onda grevista dos assalariados rurais de São Paulo, conseguiu barrar a tentativa de introduzir um sistema de corte em sete ruas.Na greve de 1986 os canavieiros exigiam o pagamento por metro e não por tonelada. A reivindicação era simples: cada metro de cana cortada, dependendo do tipo, teria um preço definido no acordo coletivo de trabalho. Os trabalhadores, ao final do dia receberiam um recibo ("pirulito"), onde constaria a quantidade de metros cortados e o valor do metro de cana naquele eito. A reivindicação foi atendida e consta até hoje nos acordos, mas até hoje só aplicada parcialmente.Os usineiros contra-argumentam que é impossível adotar o pagamento por metro, pois a tonelada é a unidade utilizada em todas as etapas do processo produtivo. Essa argumentação esconde o essencial: se os trabalhadores ficassem sabendo quanto iriram ganhar, as usinas perderiam seu principal meio de pressão para aumentar a produtividade.
Produtividade quadruplicou
O processo de trabalho nos canaviais paulistas passou por mudanças significativas desde a década de 80. Então, o setor sucro-alcooleiro vivia o período áureo deplena vigência do Proálcool, que incentivava a produção de álcool hidratado e anidro em destilarias autônomas. Em 1985, 96% da frota de automóveis usava unicamente o novo combustível. O Proálcool foi o maior programa público mundial de produção de combustível alternativo. A mecanização ainda não chegara ao corte da cana.O Proálcool elevou o número de empregos no setor. Elevou a produtividade, de 50 toneladas de cana por hectare para mais de 80, entre as décadas de 50 e 80. Elevou também a produtividade do trabalho, medida em toneladas de cana cortadas por dia e por trabalhador. Na década de 60 esta era, em média, de 3 toneladas/dia; na década de 80 passou para 6 toneladas.
No final da década de 90, a produtividade deu novo salto. O assalariado precisa cortar no mínimo 10 toneladas para se manter empregado. A média agora é de 12 toneladas/homem/dia, o dobro dos anos 80, o quádruplo dos anos 50, usando sempre o mesmo podão.Um trabalhador que corta 12 toneladas de cana no dia percorre um talhão de 400 metros, o que totaliza um retângulo 3.400 m2. Como ele desfecha cerca de 50 golpes de podão por feixe de cana, totaliza 366.300 golpes no dia, e 36.360 flexões de perna. Caminha 8.800 metros pelo eito, em 800 trajetos, levando nas mãos cerca de15 kg, por uma distância de 1,5 a 3 metros, até completar as 12 toneladas.
José Mário Alves Gomes, no dia em que morreu, carregou 25 toneladas nos braços. E deve ter vibrado algo em torno de 763 mil golpes de podão.
Os fatores da superprodutividade
A elevação da produtividade dos cortadores de cana se deve a um conjunto de fatores:

Aumentou a quantidade de trabalhadores disponíveis para o corte de cana. Estes passaram a concorrer com as colheitadeiras mecânicas, cada uma fazendo o trabalho de 80 a 120 homens. Em 2005 já superavam um terço da cana cortada, roubando 250 mil postos de trabalho. Passaram a concorrer também com os que perderam seu emprego em outros segmentos, durante as décadas perdidas pós-1980. E, ainda, com os ex-camponeses expulsos pela xpansão da fronteira do agrobusiness, por exemplo no sul do Piauí e na pré-amazônia maranhense.

Com isso, os departamentos de recursos humanos das usinas de São Paulopassaram a fazer uma seleção mais apurada de trabalhadores. Agora escolhem mais jovens, reduzem a contratação de mulheres e dão preferência aos que vêm de regiões distantes, como o Norte de Minas (com destaque para o Vale do Jequitinhonha), Sul da Bahia, Maranhão e Piauí.

As usinas também passaram a recorrer à contratação para um período de experiência. Os trabalhadores que não conseguem atingir a nova exigência, de 10 toneladas/dia, são demitidos antes de completarem três meses de contrato.

Mais recentemente, a prosperidade das usinas e destilarias também pressiona no sentido de aumentar a carga de trabalho do cortador. No ano passado o Brasil exportou 17,8 milhões de toneladas dee açúcar e 2,7 bilhões de litros de etanol; os preços são os mais altos desde 1980; nos próximnos 10 anos, estes números se elevarão, respectivamente, 34,8% e 215%. E o aumento da frota "flex" (carros que podem consumir tanto gasolina como álcool) elevou em 26,2% o consumo interno de etanol, cujo preço sobe sem parar. Tudo isso faz os usineiros pressionarem por mais produtividade.
O eficaz chicote do século 21
Isso explica por que morrem os cortadores de cana em São Paulo; e, de certa maneira, quem os mata. E os estudiosos do tema avaliam que as mortes por excesso de trabalho vão continuar enquanto o setor sucro-alcooleiro mantiver o assalariamento por produção.
Há quase cinco séculos o Brasil é o maior e mais produtivo plantador de cana de açúcar do mundo (com breves intervalos em que foi suplantado, pelo Haiti, no século 18, e por Cuba, no século 20). Somos responsáveis portanto por uma grande parte do que existe de doce neste planeta. Com o petróleo tendo aparentemente iniciado sua curva descendente de produção, o biocombustível encontra possibilidades ainda insuspeitadas de expansão, como fonte de energia mais limpa e renovável. O agrobusiness sucro-alcooleiro emprega tratores e máquinas agrícolas de última geração, agricultura de precisão, controlada por geoprocessamento via satélite. E tudo isso é muito bom.
Ao mesmo tempo, é sempre bom lembrar que no pé deste sistema estão os Josés Mário Alves Gomes, a morrer de trabalhar. Tal como morriam, há 300 anos, os trabalhadores escravizados que Antonil conheceu nos engenhos da Bahia.
Em seu livro de 1711, Antonil reproduz um dito da época: "Para o escravo são necessários três letras P a saber, Pau, Pão e Pano". E lamenta que o P mais "abundante" é "o castigo, com instrumentos de muito rigor".
Nos canaviais de hoje, já não se usa o pau ou o relho de couro. Achou-se outro açoite muito mais eficaz: aquele que levou José Mário Alves Gomes a cortar cana até morrer, na esperança de ganhar R$ 38,20.* O livro do padre Antonil, é "Culturae opulências do Brasil por suas drogas e minas" (1711); foi confiscado pela Coroa portuguesa, que viu nele a revelação de segredos do sistema produtivo dos engenhos.

** Com base no estudo deFrancisco Alves professor a djunto do Departamento deEngenharia de Produção da UFSCarFonte: http://www.vermelho.org.br/diario/2006/0227/www.pastoraldomigrante.org.br
Clique aqui para ver a primeira parte deste artigo
http://www.vermelho.org.br/diario/2006/0227/0227_cortacana.asp

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