Mentira na manchete
Elias Thomé Saliba 10 de novembro de 2010 às 11:39h
Em dois livros sobre a Segunda Guerra Mundial são relatados os fatos horrendos e pitorescos que a imprensa do período escondeu. Por Elias Thomé Saliba. Foto: Roger Viollet/AFP
Em dois livros sobre a Segunda Guerra Mundial são relatados os fatos horrendos e pitorescos que a imprensa do período escondeu
Prevalecia nas trincheiras uma única certeza: tudo poderia ser verdade, exceto aquilo que chegava até nós na forma impressa.” Apesar de paradoxal, a frase, citada pelo historiador francês Marc Bloch em 1942, descrevia exatamente como circulavam as informações durante a Segunda Guerra Mundial. Ninguém mais acreditava nos jornais, que sofriam todas as formas de censura e fortes pressões, e muitos desconfiavam até mesmo das cartas, muito vigiadas e de periodicidade irregular e incerta. Raras exceções foram alguns jornais norte-americanos, e mesmo assim só até o ano de 1941, quando os Estados Unidos entraram na Guerra e o controle sobre a mídia voltou com tudo. Em Fumaça Humana – O início da Segunda Guerra, o fim da civilização (Companhia das Letras, 462 págs., R$ 58), o escritor e ensaísta Nicholson Baker, de 53 anos, aproveita-se dessas “raras exceções”.
Esmiuçando o dia a dia dos diários The New York Times e Herald Tribune, Baker, norte-americano também autor de ficções (a mais bem-sucedida delas é Fermata, de 1994), compilou centenas de notícias menores, transcrições de programas radiofônicos, declarações de líderes políticos e depoimentos anônimos para compor uma imensa colcha de retalhos que cobre os três primeiros anos da Guerra. O título de seu trabalho foi inspirado na frase de um militar preso em um dos campos de extermínio, que, ao ver flocos de fumaça dos crematórios penetrarem em sua cela, exclamou: “É fumaça humana”.
Embora seja da mesmíssima época, a fumaça que aparece em O Charuto de Churchill – Um caso de amor na paz e na guerra (Record, 208 págs., R$ 39,90) já é de outra modalidade. O gosto do primeiro-ministro britânico pelos charutos é apenas um pretexto para o jornalista Stephen McGinty rever, de forma pitoresca e interessante, toda a trajetória de vida do estadista, com especial ênfase nos anos críticos da Segunda Guerra Mundial. Winston Churchill virou um ímã totêmico capaz de atrair milhares de interpretações, das mais disparatadas às mais elogiosas, o que resultou em centenas de livros, uma autêntica biblioteca churchilliana. Em 1999, na enquete da emissora BBC sobre o “homem do milênio”, ele só perdeu para o dramaturgo William Shakespeare. McGinty sai-se muito bem simplesmente por explorar com originalidade a imagem pública de Churchill inseparável do seu charuto, que se tornou canônica, porque, afinal, o político nunca foi visto sem ele. Até a famosa frase do primeiro-ministro (que já era pastiche de uma frase original do revolucionário italiano Giuseppe Garibaldi) chegou a ser parodiada: “Só tenho a oferecer sangue, trabalho, lágrimas, suor… e as guimbas dos meus charutos”. Era uma daquelas brincadeiras sérias, já que até hoje o Museu Churchill conserva muitas dessas guimbas como autênticas relíquias. O tal charuto virou até monumento: uma estátua de quatro metros de altura, colocada na entrada numa pequena cidade da Austrália, chamada Churchill.
Do gosto de Churchill pelos charutos nasceu a amizade com o empresário cubano Antonio Giraudier, um dos grandes fornecedores do fumo para o premier britânico. Um dos episódios narrados por McGinty é a festiva visita de Churchill a Havana, em fevereiro de 1946, na qual ele foi recebido como verdadeiro herói. Depois de uma longa baforada, o esperto estadista, que se hospedou no magnífico hotel estilo art déco onde já haviam estado os astros de Hollywood Clark Gable e Humphrey Bogart, anunciava: “Cuba sempre estará nos meus lábios”. Nem sempre esteve, porque, após a Revolução Cubana em 1958, a imagem churchilliana do estadista das grandes baforadas seria apropriada por outro líder, um Fidel Castro em roupas militares, barbudo, com revólver na cintura e ao qual atribuíram a frase que figurou como uma espécie de resposta a Churchill: “Quem governa Cuba deve governar os Havanas”. Ainda assim, mesmo com a nacionalização da indústria do tabaco na ilha, Castro chegou a enviar de presente a Churchill várias caixas dos melhores charutos cubanos, que, obviamente, não chegaram a ser aceitos, já que barrados pela segurança britânica. Por medo de um possível atentado, durante a conjuntura de guerra e mesmo depois, todos os charutos recebidos por Churchill passaram por testes, nos quais a inteligência britânica se utilizava de ratos e diferentes testes químicos.
Em contraponto a esse universo pitoresco, Fumaça Humana reconstrói o drama de milhares de criaturas, as quais, independentemente das razões de Estado, sempre abstratas, sempre insondáveis, colocavam-se radicalmente contra a guerra. Sem dividir seu livro em capítulos, Nicholson Baker oferece um caleidoscópio verbal de vozes angustiadas, testemunhando até onde podem chegar os limites da perversidade humana quando as sociedades se curvam à urgência das opções políticas. Para quem quiser conhecer os bastidores da guerra, com ênfase na teimosa resistência dos pacifistas, vai encontrar inúmeras notícias das multidões em passeatas gigantescas. Como a que reuniu mais de 10 mil pessoas em Nova York, em maio de 1935. Na frente dos manifestantes, vinham faixas com a inscrição “Nenhuma nação pode conjugar guerra e civilização” acompanhadas, logo após, por dezenas de crianças com seus cachorros, cada um com suas respectivas plaquetas, que diziam “Eu não quero ser cão de guerra”.
O leitor de Nicholson Baker encontrará ainda relatos de eventos surpreendentes. Poderá saber que os 12 mil dólares de honorários da palestra de Churchill no Bond Club de Nova York, em 1932, foram pagos por sir Harry McGowan, presidente de um conglomerado britânico que produzia fertilizantes, pólvora, TNT, bombas, munição e gás venenoso. Poderá saber ainda que, no ano de 1938, espalhou-se uma ferrenha onda antissemita nos jornais romenos, italianos, alemães e poloneses. As manifestações chegavam de todos os lados, discutindo qual seria o melhor lugar para alojar as populações desses países, ameaçadas por pogroms terríveis. “O mundo que se encarregue de arranjar moradia para os judeus do mundo. Madagáscar parece ser o lugar mais indicado”, declarou o enfático ministro do governo romeno, Alexander Cuza. Saberá também que o fotógrafo contratado pelos nazistas para retratar as pessoas antes que fossem mortas em Hartheim, na Áustria, só conseguia trabalhar alcoolizado. Na localidade austríaca morreram centenas de pessoas, a maioria deficientes físicos e mentais. “Convém pedir à imprensa e à rádio que tratem dos ataques aéreos num tom que faça diminuir o interesse público. Rogo-lhe que tente impor isso aos chefes de redação e os convença a colaborar”, escreveu Churchill para o seu ministro da Informação em 26 de junho de 1940.
Se há algum fio condutor no caleidoscópio montado pelo pesquisador americano só pode ser aquele de um entranhado pacifismo, de Mahatma Gandhi, de Clarence Pickett, dos quacres, de um punhado de gente anônima que tentou salvar refugiados judeus, ciganos ou órfãos, abastecer a Europa de alimentos, entrar como voluntário na Cruz Vermelha, reconciliar os Estados Unidos com o Japão e impedir o advento da guerra. “Fracassaram, mas estavam cobertos de razão”, conclui Baker. Uma gente que nem sequer foi reconhecida na história. E a forma como o autor montou o livro, diluindo completamente qualquer traço autoral, afasta possíveis indicações de ingenuidade. São todos retalhos jornalísticos carregados de autenticidade, de pessoas que acabariam morrendo depois daquele trágico ano de 1941. Por isso, muitos viraram autênticos bilhetes de sobreviventes, daqueles que emitem suas derradeiras palavras, quase sagradas, guardadas apenas pelo acalanto de uma furtiva nota de jornal, sem a solenidade ou a grandiloquência dos grandes homens. E bem ao contrário da fumaça dos charutos de Churchill, petrificada em museus ou em monumentos de cidades australianas, permaneceram apenas como uma evanescente fumaça humana.
Prevalecia nas trincheiras uma única certeza: tudo poderia ser verdade, exceto aquilo que chegava até nós na forma impressa.” Apesar de paradoxal, a frase, citada pelo historiador francês Marc Bloch em 1942, descrevia exatamente como circulavam as informações durante a Segunda Guerra Mundial. Ninguém mais acreditava nos jornais, que sofriam todas as formas de censura e fortes pressões, e muitos desconfiavam até mesmo das cartas, muito vigiadas e de periodicidade irregular e incerta. Raras exceções foram alguns jornais norte-americanos, e mesmo assim só até o ano de 1941, quando os Estados Unidos entraram na Guerra e o controle sobre a mídia voltou com tudo. Em Fumaça Humana – O início da Segunda Guerra, o fim da civilização (Companhia das Letras, 462 págs., R$ 58), o escritor e ensaísta Nicholson Baker, de 53 anos, aproveita-se dessas “raras exceções”.
Esmiuçando o dia a dia dos diários The New York Times e Herald Tribune, Baker, norte-americano também autor de ficções (a mais bem-sucedida delas é Fermata, de 1994), compilou centenas de notícias menores, transcrições de programas radiofônicos, declarações de líderes políticos e depoimentos anônimos para compor uma imensa colcha de retalhos que cobre os três primeiros anos da Guerra. O título de seu trabalho foi inspirado na frase de um militar preso em um dos campos de extermínio, que, ao ver flocos de fumaça dos crematórios penetrarem em sua cela, exclamou: “É fumaça humana”.
Embora seja da mesmíssima época, a fumaça que aparece em O Charuto de Churchill – Um caso de amor na paz e na guerra (Record, 208 págs., R$ 39,90) já é de outra modalidade. O gosto do primeiro-ministro britânico pelos charutos é apenas um pretexto para o jornalista Stephen McGinty rever, de forma pitoresca e interessante, toda a trajetória de vida do estadista, com especial ênfase nos anos críticos da Segunda Guerra Mundial. Winston Churchill virou um ímã totêmico capaz de atrair milhares de interpretações, das mais disparatadas às mais elogiosas, o que resultou em centenas de livros, uma autêntica biblioteca churchilliana. Em 1999, na enquete da emissora BBC sobre o “homem do milênio”, ele só perdeu para o dramaturgo William Shakespeare. McGinty sai-se muito bem simplesmente por explorar com originalidade a imagem pública de Churchill inseparável do seu charuto, que se tornou canônica, porque, afinal, o político nunca foi visto sem ele. Até a famosa frase do primeiro-ministro (que já era pastiche de uma frase original do revolucionário italiano Giuseppe Garibaldi) chegou a ser parodiada: “Só tenho a oferecer sangue, trabalho, lágrimas, suor… e as guimbas dos meus charutos”. Era uma daquelas brincadeiras sérias, já que até hoje o Museu Churchill conserva muitas dessas guimbas como autênticas relíquias. O tal charuto virou até monumento: uma estátua de quatro metros de altura, colocada na entrada numa pequena cidade da Austrália, chamada Churchill.
Do gosto de Churchill pelos charutos nasceu a amizade com o empresário cubano Antonio Giraudier, um dos grandes fornecedores do fumo para o premier britânico. Um dos episódios narrados por McGinty é a festiva visita de Churchill a Havana, em fevereiro de 1946, na qual ele foi recebido como verdadeiro herói. Depois de uma longa baforada, o esperto estadista, que se hospedou no magnífico hotel estilo art déco onde já haviam estado os astros de Hollywood Clark Gable e Humphrey Bogart, anunciava: “Cuba sempre estará nos meus lábios”. Nem sempre esteve, porque, após a Revolução Cubana em 1958, a imagem churchilliana do estadista das grandes baforadas seria apropriada por outro líder, um Fidel Castro em roupas militares, barbudo, com revólver na cintura e ao qual atribuíram a frase que figurou como uma espécie de resposta a Churchill: “Quem governa Cuba deve governar os Havanas”. Ainda assim, mesmo com a nacionalização da indústria do tabaco na ilha, Castro chegou a enviar de presente a Churchill várias caixas dos melhores charutos cubanos, que, obviamente, não chegaram a ser aceitos, já que barrados pela segurança britânica. Por medo de um possível atentado, durante a conjuntura de guerra e mesmo depois, todos os charutos recebidos por Churchill passaram por testes, nos quais a inteligência britânica se utilizava de ratos e diferentes testes químicos.
Em contraponto a esse universo pitoresco, Fumaça Humana reconstrói o drama de milhares de criaturas, as quais, independentemente das razões de Estado, sempre abstratas, sempre insondáveis, colocavam-se radicalmente contra a guerra. Sem dividir seu livro em capítulos, Nicholson Baker oferece um caleidoscópio verbal de vozes angustiadas, testemunhando até onde podem chegar os limites da perversidade humana quando as sociedades se curvam à urgência das opções políticas. Para quem quiser conhecer os bastidores da guerra, com ênfase na teimosa resistência dos pacifistas, vai encontrar inúmeras notícias das multidões em passeatas gigantescas. Como a que reuniu mais de 10 mil pessoas em Nova York, em maio de 1935. Na frente dos manifestantes, vinham faixas com a inscrição “Nenhuma nação pode conjugar guerra e civilização” acompanhadas, logo após, por dezenas de crianças com seus cachorros, cada um com suas respectivas plaquetas, que diziam “Eu não quero ser cão de guerra”.
O leitor de Nicholson Baker encontrará ainda relatos de eventos surpreendentes. Poderá saber que os 12 mil dólares de honorários da palestra de Churchill no Bond Club de Nova York, em 1932, foram pagos por sir Harry McGowan, presidente de um conglomerado britânico que produzia fertilizantes, pólvora, TNT, bombas, munição e gás venenoso. Poderá saber ainda que, no ano de 1938, espalhou-se uma ferrenha onda antissemita nos jornais romenos, italianos, alemães e poloneses. As manifestações chegavam de todos os lados, discutindo qual seria o melhor lugar para alojar as populações desses países, ameaçadas por pogroms terríveis. “O mundo que se encarregue de arranjar moradia para os judeus do mundo. Madagáscar parece ser o lugar mais indicado”, declarou o enfático ministro do governo romeno, Alexander Cuza. Saberá também que o fotógrafo contratado pelos nazistas para retratar as pessoas antes que fossem mortas em Hartheim, na Áustria, só conseguia trabalhar alcoolizado. Na localidade austríaca morreram centenas de pessoas, a maioria deficientes físicos e mentais. “Convém pedir à imprensa e à rádio que tratem dos ataques aéreos num tom que faça diminuir o interesse público. Rogo-lhe que tente impor isso aos chefes de redação e os convença a colaborar”, escreveu Churchill para o seu ministro da Informação em 26 de junho de 1940.
Se há algum fio condutor no caleidoscópio montado pelo pesquisador americano só pode ser aquele de um entranhado pacifismo, de Mahatma Gandhi, de Clarence Pickett, dos quacres, de um punhado de gente anônima que tentou salvar refugiados judeus, ciganos ou órfãos, abastecer a Europa de alimentos, entrar como voluntário na Cruz Vermelha, reconciliar os Estados Unidos com o Japão e impedir o advento da guerra. “Fracassaram, mas estavam cobertos de razão”, conclui Baker. Uma gente que nem sequer foi reconhecida na história. E a forma como o autor montou o livro, diluindo completamente qualquer traço autoral, afasta possíveis indicações de ingenuidade. São todos retalhos jornalísticos carregados de autenticidade, de pessoas que acabariam morrendo depois daquele trágico ano de 1941. Por isso, muitos viraram autênticos bilhetes de sobreviventes, daqueles que emitem suas derradeiras palavras, quase sagradas, guardadas apenas pelo acalanto de uma furtiva nota de jornal, sem a solenidade ou a grandiloquência dos grandes homens. E bem ao contrário da fumaça dos charutos de Churchill, petrificada em museus ou em monumentos de cidades australianas, permaneceram apenas como uma evanescente fumaça humana.