sábado, julho 25, 2009

Guerra serial: o novo american way of life



Dica de TomDispatch, "The Nation"
Guerra serial: o novo american way of life
21/7/2009, David Bromwich, http://www.tomdispatch.com/post/175098/david_bromwich_america_s_serial_warriors

Recentemente, o secretário de Defesa dos EUA Robert Gates defendeu sua decisão de não mais produzir o F-22 Raptor, mostrengo & atual rei dos jatos de combate da Força Aérea dos EUA. "Considerem", disse o secretário de Defesa,

"que se prevê que em 2020 os EUA terão cerca de 2.500 aeronaves tripuladas de combate de vários tipos. Dessas, cerca de 1.100 serão a mais avançada 5ª geração de F-35s e F-22s. A China, por outro lado, ainda não terá aeronaves de 5ª geração em 2020. Até 2025, a distância aumentará. Os EUA terão cerca de 1.700 aeronaves da mais avançada 5ª geração de jatos de combate, versus um punhado de jatos chinesas. Só o universo paralelo de Washington DC. poderia gerar a ideia de que essa nossa defesa seria 'defesa destripada'."

Então, já sobrevivemos até 2025 e, diz-nos o secretário de Defesa, já temos garantida, conforme o planejamento feito pelo Pentágono, Força Aérea sem rival no planeta. E não é só isso. Até aí, só vimos os planos de médio prazo do poder bélico dos EUA.

Segundo David Axe, do Blog "Danger Room" da revista Wired, a Força Aérea dos EUA acaba de divulgar seu "Plano 2009-2047 para Sistemas de Voo de Aeronaves Não-tripuladas" (ing. Unmanned Aircraft Systems Flight Plan 2009-2047)[1]. Em volume que Axe descreve como "82 páginas mais densas que uma sigla densa", o blog sugere que "os cães de briga de amanhã serão aviões sem piloto." Conforme o Plano, "robôs voadores cada vez maiores e mais sofisticados poderão substituir todas as aeronaves tripuladas conhecidas – de aeronaves para combate aéreo a bombardeiros e aviões para reabastecimento."

Seja isso fantasia ou realidade, o que mais assusta é a data: 2047. É o planejamento de mais longo prazo jamais feito por qualquer setor do governo dos EUA. Por isso, afinal, se pode dizer, como disse David Bromwich [leia adiante], que os EUA já se veem, no futuro mais distante, como guerreiros seriais; que esse é o novo american way of life.

Guerra serial: o novo american way of life

21/7/2009, David Bromwich, TomDispatch
http://www.tomdispatch.com/post/175098/david_bromwich_america_s_serial_warriors

David Bromwich é jornalista, colaborador de
The New York Review of Books e do Huffington Post.

Dia 16/7, em palestra no Economic Club de Chicago, o secretário de Defesa dos EUA, Robert Gates, disse que a "questão central" da defesa dos EUA é o modo como os militares devem ser "organizados, equipados – e pagos – nos próximos anos, para vencer as guerras em que estão envolvidos hoje, ao mesmo tempo em que se preparem para enfrentar as ameaças que se veem no horizonte e além do horizonte.[2]" A expressão "além do horizonte" ali estava para meter medo em todos. (...)

Fato é que os EUA já falam sobre suas guerras como coisa corriqueira. Contudo, nada há de corriqueiro em guerras, e muito nos deveria surpreender que os EUA falem de guerras como hoje falam, por várias razões. A guerra, na história dos EUA, jamais foi considerada situação corriqueira ou estado normal das coisas. Por duzentos anos, os norte-americanos fomos ensinados a ver a guerra como aberração; e "guerras", no plural, sempre nos pareceram pluralmente aberrantes. Hoje, os mais jovens estão aprendendo a conviver com guerras sem fim e a não esperar o fim da guerra – de fato, já, das guerras, assim, no plural.

Para os nascidos durante a II Guerra Mundial, ou nos anos iniciais da Guerra Fria, a esperança de que o mundo progridiria rumo ao fim dos conflitos armados ainda é lembrança palpável. Afinal, a ameaça que vinha dos poderes do Eixo, cujos aparelhos de Estado alimentavam-se de guerras, havia sido definitivamente derrotada pela ação conjunta de URSS, Grã-Bretanha e EUA. A criação da ONU fazia aumentar ainda mais a esperança de paz universal. Organizações como o SANE (ing. Committee for a Sane Nuclear Policy) e a União dos Cientistas Responsáveis (ing. Union of Concerned Scientists) lembravam os cidadãos do mundo ocidental, tanto quanto os do bloco comunista, de uma verdade que, então, todos já conhecíamos: o mundo conseguira avançar além do horizonte das guerras. (...) Os anos imediatamente posteriores à pior de todas as guerras que o mundo conheceu foram marcados por um sentimento universal que rejeitava a mera ideia de guerra, de qualquer guerra.

Nos anos 1950s, a única guerra possível entre as 'grandes potências', EUA e URSS, seria guerra atômica; e o horror da destruição da humanidade era tão imenso, o crime tão monstruoso e tão imperdoável, que a paz impôs-se como única alternativa pensável. John F. Kennedy viu isso, quando pressionou para que se ratificasse imediatamente o Tratado para Proibição de Testes Nucleares (ing. Nuclear Test Ban Treaty) – principal feito de seu governo.

O Tratado foi assinado dia 7/10/1963, seis semanas antes de o presidente Kennedy ser assassinado, e marcou o primeiro grande passo contra a guerra, em uma geração. Quem adivinharia que o passo seguinte só seria dado 23 anos depois, quando a imaginação de Ronald Reagan incendiou-se no contato com Mikhail Gorbachev em Reikjavik? Depois de Reikjavik, já se passou quase um quarto de século. De Barack Obama, ainda não se sabe com certeza se terá seja coragem de Kennedy seja a imaginação candente de Gorbachev e Reagan.

Esquecer o Vietnam

No século 20, como no século 19, várias pequenas guerras implantaram a ideia de guerras no plural, que já dura uma década ou mais. A Guerra da Coreia pôs os norte-americanos em necessário estado de medo, para manter vivos os medos da Guerra Fria – um dos truques para esse fim, chamar de China a ilha de Formosa, foi ideia do lobby pró-guerra reunido em torno de Chiang Kai-Chek, da China Nacionalista. Mas a Guerra da Coreia aconteceu, em certa medida, sob os auspícios da ONU, e nem essa guerra nem a Guerra do Vietnam, por destrutivas e terríveis que tenham sido, alteraram a ideia de que guerras daquele tipo fossem uma espécie de relíquia de nosso passado bárbaro.

O Vietnam foi subproduto de uma política de "contenção" contra a União Soviética, que fugiu do controle: uma pequena contra-insurgência que cresceu e chegou à escala de guerra total, praticamente sem limites. Mesmo assim, houve persistentes conversações de paz – de um tipo do qual já absolutamente não se ouve falar hoje –, que foram como o contraponto aos seis últimos anos de guerra no Vietnam; e jamais alguém disse ou pensou que aquela guerra seria a primeira de muitas, que em seguida viria outra guerra, porque os EUA têm inimigos em todo o planeta e os EUA, no que tenha a ver com negociar a paz, só sabem invadir, bombardear, ocupar.

O fracasso dos EUA em matéria de consciência moral em relação ao Vietnam teve pouco a ver com alguma espécie de paixão por guerra como tal. Em certo sentido, a verdade foi o contrário disso. O fracasso deveu-se, em larga medida, a uma tendência a tratar a guerra do Vietnam como algum tipo especial de "pesadelo" incompreensível, além das possibilidades da compreensão histórica; uma coisa que aconteceu aos EUA, não algo que os EUA fizeram. Apoiadores e opositores da guerra do Vietnam partilhavam a mesma crença: de que nunca mais os EUA admitiriam que 'aquilo' voltaria a nos acontecer.

Mesmo assim, o Vietnam ensinou aos EUA uma lição: jamais comece uma guerra sem saber claramente o que lhe interesse conseguir e sem ter noção de como sair da guerra que você invente. Colin Powell deu seu nome a essa nova doutrina; e, ao converter a violência que há em todas as guerras em equação de custo-benefício, ajudou a apagar das consciências todo o mal que os EUA fizeram ao Vietnam. O aviso estranhamente gélido e sem qualquer solidariedade, de Powell a George W. Bush, sobre invadir o Iraque – "Você começou. A guerra é sua." – manifesta o pragmatismo militar desse estado mental.

Já há mais de 30 anos, duas ilusões continuam a dominar o pensamento norte-americano sobre o Vietnam. À direita, a ilusão de que "lutamos com uma mão atada às costas." (De fato, os EUA na Indochina só não usaram as bombas atômicas.) Do outro lado, no establishment liberal, a ilusão preferida é a do 'criminoso que agiu sozinho': como na guerra do Iraque, em que toda a culpa é atribuída ao secretário da Defesa Donald Rumsfeld, também na guerra do Vietam o culpado de sempre seria um só e tinha nome: Robert McNamara, ministro da Defesa.

Essa conveniente super-redução nas culpas e responsabilidades pela guerra do Vietnam tornou-se ainda mais visível agora, depois da morte de McNamara, dia 6 de julho. Até o obituário honesto escrito por Tim Weiner para o New York Times apagou da história atores relevantes como o secretário de Estado Dean Rusk e o general William Westmoreland. O presidente Richard Nixon e seu conselheiro de Segurança Nacional, Henry Kissinger, também foram completamente desmaterializados – como se apenas tivessem "herdado" a guerra. A verdade é que Kissinger e Nixon ampliaram a guerra do Vietnam e são responsáveis pelos crimes lá praticados. Basta lembrar a ordem do presidente que Kissinger transmitiu, por telefone, ao líder de Nixon no Congresso, Alexander Haig. Os EUA, disse Kissinger, passando adiante o que lhe dissera Nixon, "iniciarão campanha massiva de bombardeio [usando] qualquer coisa que voe contra qualquer coisa que ande."

Como o Iraque, o Vietnam não foi guerra de arquiteto único, nem que interessasse só a um partido. Todo o establishment político norte-americano – e, pelo maior tempo possível, também a cultura popular – manifestaram-se a favor da guerra e denunciaram como desleais, traidores, não-patriotas, todos os que se opuseram e resistiram à guerra. A opinião pública foi dirigida para admirar e admirou e apoiou a Guerra do Vietnam durante os cinco anos de governo de Lyndon Johnson; e Nixon, eleito em 1968 com a promessa de por fim à guerra sem desonra para os EUA, jamais foi chamado a explicar por que a prorrogou além do fim do primeiro mandato, nem por que, como se não bastasse a prorrogação, acrescentou à guerra do Vietnam mais uma guerra atroz, do Cambodia.

De qquer modo, desde que o sen. Joe McCarthy acusou os Democratas por "vinte anos de traições" – acusou-os de responsabilidade, nos governos de Franklin Delano Roosevelt e Harry Truman, por os EUA terem perdido uma guerra contra agentes comunistas que viviam nos EUA; e sem nem perceber que os EUA estavam em guerra –, passou a ser verdade indiscutível no folclore político nos EUA que o partido que mais entenderia de guerra seria o Republicano: entenderia de começar e de acabar guerras.

Na prática, isso implica que os Democratas vivam sempre muito aflitos para provar que são 'de guerra' (não só sábios, prudentes ou justos). Como o comprova o legado de Lyndon Johnson e Bill Clinton – tendência já confirmada no primeiro semestre de governo Obama –, os presidentes do Partido Democrata sentem-se obrigados ou a iniciar ou a ampliar guerras, para provar que, sim, merecem a confiança dos eleitores. Obama mostrou sua adesão à lógica da guerra dos Democratas já na campanha de 2007 para as primárias, quando assegurou ao establishment militar-político que a retirada do Iraque seria 'compensada' com guerra ainda maior no Afeganistão e, depois, no Paquistão.

Os EUA já estamos bem próximos de codificar um padrão, segundo o qual cada novo presidente não deve por fim a guerra alguma, antes de o país já estar metido noutra.

Da intervenção humanitária às guerras escolhidas

A confiança dos EUA em que selecionaremos bem as guerras e que as matanças nos serão perdoadas pelos importantes beneficiários delas vem, sobretudo, da ideia popular sobre o que houve em Kosovo. De fato, as onze semanas de bombardeio pela Otan, de março a junho de 1999 – à primeira vista, exercício de compromisso humanitário (nenhum avião foi derrubado), em defesa de um povo oprimido – também foi um teste para a estratégia e o armamento.

Kosovo, nesse sentido, foi exemplo ampliado do mesmo tipo de guerra-teste que Ronald Regan promoveu, em 1983, em Grenada (onde e quando uma invasão apresentada como guerra para proteger os norte-americanos lá residentes serviu também como cobertura agressiva para a retirada do mesmo presidente, do Líbano); e que George Bush (pai) promoveu em 1989 no Panamá (onde e quando um ataque contra um ditador impopular serviu para testar a propaganda e o armamento a ser usado na Primeira Guerra do Golfo, um ano depois). O ataque da Otan contra a ex-Ioguslávia para defender Kosovo foi também guerra pública – legal, feliz, justa, pelo menos, até onde a mídia dominante viu-a acontecer –, guerra, de fato, abertamente organizada e discutida e levada adiante sob bandeira de consciência democrática. A generosidade, pode-se dizer: a bondade daqueles bombardeios, era visível no olhar radiante de Tony Blair. Kosovo, mais que qualquer outra guerra dos últimos 50 anos, contribuiu para implantar um consenso político-militar na opinião pública nos EUA a favor das guerras seriais contra inimigos transnacionais de qualquer tipo.

Antídoto contra a ficção dita humanitária da guerra do Kosovo encontra-se em recente artigo de David Gibbs, em seu livro First Do No Harm. Gibbs mostra que não foram os sérvios, mas o Exército de Libertação do Kosovo (ing. Kosovo Liberation Army, KLA) que, em 1998, quebrou o acordo de paz negociado por Richard Holbrooke e, assim, tornou a guerra inevitável. (...)

O público norte-americano foi informado que que os sérvios, naquela guerra, eram os opressores e que os albaneses eram vítimas: uma mitologia em tudo semelhante à que se viu reproduzida também nos relatórios da atividade militar no Iraque, onde os sunitas eram culpados e os xiitas, inocentes. Mas o KLA, diz Gibbs, "sempre foram racistas, em nada diferentes do exército de Milosevic (sérvio)." Longe de evitar matanças em massa, os "ataques cirúrgicos" da Otan só tornaram as matanças mais regulares e frequentes. O número total de mortos dos dois lados, antes da guerra, não chegava a 2.000. Depois da guerra, havia 10 mil mortos pelas forças de segurança sérvias. E quanto mais se investiga o caso Kosovo, mais se vê que foi a primeira das "intervenções humanitárias" que depois viriam.

Clinton e Kosovo, antes de Bush e Iraque, inauguraram o período em que hoje os EUA vivem. Por trás da legitimação das duas guerras, contudo, há amplo investimento ideológico, que criou e implantou a ideia de "guerras justas" – principalmente, de fato, guerras que as democracias comerciais lutam em nome da democracia, para implantar seus próprios projetos e interesses sem que se possa entrever sequer um traço de interesse escuso ou criminoso.

Michael Ignatieff, um dos teóricos da "guerra justa" que apoiaram as guerras do Kosovo e do Iraque, publicou influente artigo sobre a invasão do Iraque "The American Empire: The Burden," dia 5/1/2003 na New York Times Magazine, poucas semanas antes de começar a operação "choque e horror" contra Saddam. Ignatieff perguntava se o povo dos EUA seria generoso o bastante para lutar a guerra que o presidente planejava iniciar contra o Iraque. Escreveu que aquele momento seria

"um momento de definição no longo debate dos EUA consigo mesmo, sobre se o papel a desempenhar em outros continentes, como império, ameaça ou fortalece a existência dos EUA como república. O eleitor norte-americano, ao mesmo tempo em que apoia o presidente, pergunta-se se declarar guerra sem fim contra terroristas e tiranos não fará aumentar a vulnerabilidade do país, ao mesmo tempo em que agride liberdades individuais e a saúde econômica na nação. Nação que raramente contabiliza o custo de defender seus valores deve, agora, perguntar se vale a pena 'libertar' o Iraque."

Canadense que vive nos EUA, Ignatieff continuou a apoiar a guerra como dever cívico dos EUA, com indulgente ironia em relação aos que se opunham à guerra do Iraque:

"Mudar regimes é, por excelência, tarefa imperial, uma vez que se assume que os interesses do império sobrepõem-se à soberania de cada Estado. (...) Mudar regimes também levanta difícil questão para os norte-americanos, de decidir se a sua liberdade implica o dever de defender a liberdade de outros além-fronteiras. (...) Pensem o que pensarem, nada altera o fato – por desagradável que pareça aos esquerdistas que veem o imperialismo norte-americano como essência do mal; e, também, aos isolacionistas de direita, para os quais o mundo além do território dos EUA não é problema dos EUA – de que muitos povos há que devem sua liberdade ao exercício do poder militar dos EUA. (...) Há os bósnios, cuja nação sobreviveu por causa do poderio aéreo e da diplomacia dos EUA, que puseram fim a uma guerra que os europeus não conseguiram encerrar. Há os kosovares, que continuariam prisioneiros na Sérvia, não fossem o general Wesley Clark e a Força Aérea. A lista de povos cuja liberdade depende do poder aéreo e terrestre dos EUA inclui também os afegãos e, de modo ainda mais complexo, também os iraqueanos."

Para Ignatieff, o caso de Kosovo é exemplo central e persuasivo. Só os "esquerdistas" e os "isolacionistas" não entendem. Do outro lado, os estrategistas e soldados dispostos a carregar o "peso" da responsabilidade imperial são não só os que sabem e veem longe, com espírito humanitário, mas são também realistas, os que sabem que nada de bom se conquista sem pagar o preço; em resumo, nenhum povo jamais será grande se a grandeza não for resultado de guerras justas em série.

Guerras além do horizonte

Combine-se a guerra aérea sem-baixas que a Otan fez na Ioguslávia e a doutrina Powell de múltiplas guerras com saída segura, e chega-se a algo bem próximo da guerra do Afeganistão-Paquistão do presente. Guerra num país, pode agora atravessar a fronteira praticamente sem pausa para qualquer discussão pública e sem perder tempo com apropriações. Quando as guerras eram vistas como, no melhor dos casos, um mal necessário, sempre se perguntava se cada guerra seria estritamente necessária. Hoje, quando a guerra está convertida em meio de vida, pergunta-se com que força os EUA se implantarão seja onde for, ao mesmo tempo em que o país já se prepara para a guerra seguinte.

A nova prática já se implantou na língua inglesa, para facilitar a mudança no modo de pensar. Na língua dos documentos publicados pelos think-tanks e artigos de jornal, nos últimos dois anos, já se encontra um estranho conceito, exposto como se fosse natural: a plausibilidade de os EUA planejarem uma sequência de guerras. Robert Gates deu forma convencional a esse pensamento, mais uma vez, em entrevista ao programa "60 Minutes", em maio. Falando da necessidade de o Pentágono concentrar-se na guerra do Afeganistão, disse Gates: "Queria um departamento que soubesse assoviar e mascar chiclete ao mesmo tempo, que pudesse fazer guerra, como fazemos hoje e, ao mesmo tempo, já se preparasse para as guerras de amanhã."

A macabra expressão "guerras de amanhã" está virando rotina: os EUA já se preparam para várias guerras em futuro próximo. Somos a democracia em ascenção, a nação que sobrepuja todas as demais nações do mundo. Guerrear é destino e dever dos EUA. A palavra "guerras" – cada dia mais frequentemente usada no plural – é o modo pelo qual os EUA identificamos todas as guerras, as que fazemos hoje e as que se espera que façamos no futuro.

Caso impressionante de adaptação jornalística à nova língua aparece em perfil escrito por Elisabeth Bumiller para o New York Times, de nome político importante no governo Obama, a subsecretária de Defesa Michele Flournoy. Diferente de seu antecessor no cargo, Douglas Feith – neoconservador e apóstolo da guerra, que decretou que prisioneiros de guerra não têm direitos de nenhum tipo –, Flournoy não é ideóloga. O perfil publicado chama atenção para isso. Mas que consolo se poderia obter da informação de que uma política profissional em ascenção, manifesta-se claramente a favor das "nossas (plural!) guerras"? O trabalho de Flournoy, escreveu Bumiller,

"resume-se ao seguinte: avaliar as ameaças contra os EUA, propor a estratégia para enfrentá-las e fazê-la funcionar mediante a devida alocação de recursos nos quatro ramos das forças armadas. O principal problema para a "Revisão Quadrienal da Defesa" [ing. Quadrennial Defense Review, QDR], como o serviço é conhecido no Pentágono, é como equilibrar a preparação para futuras guerras de contrainsurgência (como no Iraque e no Afeganistão), com os planos para guerras convencionais contra inimigos potencialmente bem armados (como Coreia do Norte, China e Iran.

"Outra dificuldade, dado que a guerra do Iraque e a guerra do Afeganistão já duraram mais tempo do que a participação dos EUA na II Guerra Mundial, é como preparar os EUA para conflitos nos quais as forças armadas dos EUA tenham de permanecer em luta por décadas."

Observem a progressão dos substantivos: ameaças, guerras, conflitos, décadas. Os critérios que se usam hoje para escolher guerras são os mesmos que, há alguns anos, usavam-se para escolher carros. E o artigo prossegue, com elogios à objetividade de Flournoy, em parágrafo pedregoso:

"Miss Flournoy é força motriz de uma nova estratégia militar que será tema central da QDR, o conceito de guerra 'híbrida', segundo o qual os conflitos de amanhã são uma complexa mistura de combates convencionais, insurgências e ameaças cibernéticas. 'Estamos tentando nos habituar à ideia de que a guerra, no futuro, será oferecida com diferentes sabores', disse Miss Flournoy."

Entre a descrição jornalística em termos de "complexa mistura de combates" e a expressão técnico-política em termos de "diferentes sabores", difícil saber se estamos num bunker ou na mesa da cozinha. Aí, exatamente, está o problema. Os EUA já tratam suas guerras como se não fossem guerras. (...)

Falar de guerra perpétua contra "ameaças" que nos esperam "além do horizonte", como fazia o Pentágono de Bush e hoje faz o Pentágono de Obama, é fugir da discussão sobre se alguma das guerras de hoje seria, propriamente dita, guerra de autodefesa.

No fundamento dessa fuga jaz a ideia de que os EUA são nação predestinada a fazer guerra em série. A ideia já sugere que vivemos em estado de perpétua carência de inimigos realmente ameaçadores e não há qualquer sinal real de perigo. Em The Sorrows of Empire, Chalmers Johnson oferece convincente argumentação sobre a situação da segurança nacional nos EUA, sua base industrial-militar e a rede de fábricas que a alimenta.

Não é apenas o imenso poder nem a extensão do exército dos EUA que faz gorar qualquer movimento de reforma. Tampouco há meio fácil pelo qual se consiga rastrear a busca infindável por tecnologias de morte ou os motivos pelos quais os EUA cercaram o planeta com bases militares, nem os interesses financeiros – as Halliburtons e Raytheons, as DynCorps e Blackwaters que conspiram contra a paz, com demandas comparáveis às da British East India Company no momento de influência máxima. Há uma espécie de quebra-cabeças profundo e inextrincável, no relacionamento entre o poder militar e o resto da sociedade dos EUA. (...)

Barack Obama comparou a mudança que quer fazer na política externa, com manobrar um grande navio no mar. A verdade é que, nas mãos de Obama, a projeção planetária dos EUA já mudou, mas mudou em várias direções. Obama fixou limites retóricos internos além dos quais os EUA não podem continuar a provocar guerras, ao não falar – diferente, nisso, de seu antecessor – em levar a democracia, pelas armas, a outros países; ou ao não falar, tampouco, em mudar regimes como vingança contra governos hostis. Ao mesmo tempo, (...) nenhum dos planos atualmente em preparação, a julgar pelo artigo de Bumiller, visa a salvaguardar os EUA contra poderes que poderiam nos derrotar em casa. Para encontrar ameaça assim tão grande, foi preciso andar até muito além do horizonte.

As guerras futuras, que serão 'guerras de escolha' do Departamento de Defesa, serão guerras de bombardeio pesado e ocupação entre leve e média.

Armas, serão robôs não-tripulados; e os soldados serão, na medida do possível, forças especiais encarregadas de "operar nas sombras", de vila em vila ou de tribo em tribo. Parece pouco provável que essas guerras – nas quais será indispensável que Exército, Marinha e Força Aérea tenham passagem livre por Estados soberanos, além da total eliminação de qualquer resistência local contra a ocupação – avancem sem troca de regimes (porque muito dependerá de os regimes locais não serem hostis). Só governos fantoches são perfeitamente confiáveis, sempre que se trate de agir contra populações locais, para apoiar potência estrangeira.

Essas, afinal, são as guerras planejadas e lutadas hoje em nome da segurança dos EUA. Incorporam uma política absolutamente oposta ao idealismo da liberdade que persistiu nos EUA desde a origem até já bem adiantado o século 20. É fácil descartar o contraste que Washington, Paine e outros marcaram, bem claro, entre a moral de uma república e os apetites de um império. Não se pode, disseram eles, continuar a ser nação livre, ao mesmo tempo em que se colhem e aceitam os frutos de conquista e dominação. Beneficiários passivos dos capitães-de-mato também são escravos.

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[1] Sobre isso, ver, interessante "Small Wars, Big Changes", John M. Donnelly, 28/1/2008, em http://public.cq.com/docs/cqw/weeklyreport110-000002661193.html:

"O Exército, por exemplo, investirá provavelmente menos em tecnologias (p.ex., sensores sofisticados) para reunir dados sobre interceptação eletrônica e assinaturas digitais; e investirá mais em espionagem. Muito provavelmente reduzirá o investimento em pesquisa de outros tipos de veículos e dirigirá o dinheiro para a formação de especialistas. (...) Exército para enfrentar pequenas guerras locais investirá sempre menos em tanques e artilharia e mais em unidades de infantaria.
     Se menos dinheiro é alocado em unidades mecanizadas, mais dinheiro será alocado no recrutamento, no treinamento e na retenção de pessoal qualificado, dizem os especialistas. (...)
     Para dificultar ainda mais as coisas, soldados treinados para guerra urbana em cidades complexas ou na selva, terão de receber treinamento diferente e muito mais sofisticado – e esse treinamento é caro."