Mino Carta, a italianidade e o rancor de ocasião
Mauro Carrara
Num eventual acróstico, combinam nossas iniciais. Assim como foram comuns algumas de nossas crenças no campo político. Como eixo de relação, compartilhamos a bela Itália. Há, porém, é evidente, o que faça prosperar entre nós a saudável divergência.
Mino nasceu na Itália, em 1.933, e chegou ao Brasil em 1.946, depois da II Guerra Mundial. Sou um broto (!!), nasci em 1.939, no Brás, o mais paulistano e miscigenado dos bairros, filho de italianos que o fascismo pouco antes expulsara da terra natal.
Mino chegou ao Brasil quando contava 12 anos de idade. De alguma forma, como se diz, era um homenzinho sagaz e elegante. Nessa época, tinha eu meus sete anos de idade, vividos entre o ritual católico, o aprendizado das letras em ambiente doméstico e as fugas travessas ao Gasômetro e aos campinhos que sobravam da feroz urbanização da Várzea do Carmo.
Mais ou menos quando Mino dobrou de idade, no final dos anos 50, fiz o caminho contrário. Arrumei as malas e parti para a Itália. Lá, fui acolhido e também desprezado. Senti-me de todo italiano e também integralmente estrangeiro.
Talvez existam elos entre a minha italianidade e aquela de Mino. No entanto, é certo que sentimos de modo distinto a cultura de nossos antepassados europeus. Em meu caso, essa paixão foi tão ardente quanto dicotômica.
Amei demais a Itália dos combatentes garibaldinos, alguns também abrasileirados, cuja coragem amparou as melhores ambições dos insurretos farroupilhas. Odiei demais a Itália dos camisas negras, de Benito Mussolini, exportadores da doutrina fascista.
Aprendi a admirar a Itália de Antonio Gramsci e de Ângelo Roncalli (o papa João XXIII), assim como aprendi a temer a Itália enlouquecida por Ítalo Balbo e Giovanni Gentile.
Caí de amores pela Itália dos figurantes protagonistas de Pasolini, mas temi seus algozes, talvez os mesmos que, em 1.924, haviam assassinado Giacomo Matteotti.
Minha Itália particular é tão santa quanto pecadora. É franciscana e mafiosa. É inteligente como Ítalo Calvino e estúpida como Silvio Berlusconi.
Minha italianidade é construída sobre os pilares do antagonismo e da tentativa dialética de compreender o ethos desse povo, tão espetacular em Malatesta e tão idiota em Gianfranco Fini; tão heróica nos partigiani quanto covarde nos terroristas de direita que desenvolveram com explosivos a strategia della tensione.
A verdade sobre a guerra suja italiana
Aliás, uma sufocada e dolorosa guerra civil teve início na Itália em 1.969, tendo como marco a o atentado de Piazza Fontana, em Milão, que tirou a vida dos inocentes Giovanni Arnoldi, Giulio China, Eugenio Corsini, Pietro Dendena, Carlo Gaiani, Calogero Galatioto, Carlo Garavaglia, Paolo Gerli, Vittorio Mocchi, Luigi Meloni, Mario Pasi, Carlo Perego, Oreste Sangalli, Angelo Scaglia, Carlo Silvia, Attilio Valè, Gerolamo Papetti.
Esse episódio inaugurou um terrível período de ação terrorista neo-fascista. A estratégia internacional, da qual participavam importantes autoridades italianas, tinha por objetivo espalhar o pânico e criar demanda popular por um governo com poderes ilimitados, num regime de exceção.
A partir desse momento, o céu da Itália manteve-se escuro por muito tempo, naqueles que foram denominados "anos de chumbo".
Por anos, grupos assassinos de extrema-direita, como Avanguardia Nazionale e Fronte Nazionale, levaram o terror ao povo italiano. Inúmeras dessas ações eram realizadas pela Operação Gládio, associada à Otan, cujo objetivo seria resistir a uma invasão da Europa Ocidental pela então União Soviética.
Como ocorrera em outros casos semelhantes na história européia, os primeiros atentados foram atribuídos a um anarquista. O militante Pinelli foi submetido a interrogatório durante três dias.
Depois disso, despencou do quarto andar do prédio do centro de investigação e morreu, num episódio que ainda não totalmente esclarecido. A polícia seguiu no encalço dos anarquistas, responsabilizados publicamente pelo terror.
Os atentados promovidos pela extrema-direita, parte dela chapa branca, logo instauraram um clima de desconfiança e insegurança no país, com prisões, torturas e delações premiadas.
Pessoas escolhidas pelos aparatos de repressão tinham suas casas invadidas, eram detidas e interrogadas.
Em 1.970, recebi uma carta cifrada do amigo Guido Martelli. Dizia que eu, como "estrangeiro" e simpatizante das idéias libertárias, estaria na mira dos investigadores e de agentes do Estado.
"Não fiz mal a uma barata", reagi, num imprudente telefonema noturno. "Mas tem o perfil do culpado clássico, além de ser brasileiro", argumentou Martelli. Três dias depois, pisávamos já território iugoslavo, iniciando um período de novas aventuras.
O que vem a seguir, pelo menos em minha biografia, interessa menos que o destino na Itália, vítima do terrorismo privado e do terrorismo de Estado, operado também por setores expressivos da mídia.
Nesse tempo de trevas, que invade a década de 80, a Itália converteu-se no país das negociatas, do poder paralelo da máfia, das operações criminosas de Licio Gelli e dos pecados do "Banqueiro de Deus", Monsenhor Paul Marcinkus.
Essa é a realidade sombria de uma Itália que viveu longo inverno de falsa democracia.
Mino Carta certamente não conhece bem a realidade italiana da época. Não sabe dos caíram nem das complexas razões de seus verdugos. E ignora os motivos da quase extinção da esquerda italiana, aos poucos enfraquecida, atemorizada e, depois, cooptada, parte dela hoje oculta sob o manto de um bizarro reformismo cínico.
Olhos fechados à realidade brasileira
Mino Carta tem desculpas para ignorar a história italiana. Não as tem, entretanto, para desconhecer a realidade brasileira.
É espantosa sua emotiva Carta de Despedida, que por vezes resvala no preconceito e em certa arrogância de classe.
Lula passa a ser o motivo de suas decepções, muitas delas talvez originadas em pequenos fracassos pessoais. Afinal, Carta acredita piamente que a honestidade e as boas intenções sejam suficientes para lhe atrair o aplauso permanente.
Cabe, no entanto, uma série de reparos a sua missiva lamuriosa. Primeiramente, seria pândega imaginar que o governo Lula deveria, em 6 anos, substituir a exportação de commodities por bens manufaturados.
Assim como é argumento falacioso botar na conta do presidente barbudo a inoperância das polícias, controladas basicamente pelos governadores.
Depois, perverso atribuir ao Bolsa Família o papel de sistema distribuidor de "esmolas". Eitcha, Mino! Até a oposição admite o papel estratégico do programa na dinamização da economia, na geração indireta de empregos e no estabelecimento de novos empreendimentos, especialmente nas regiões tradicionalmente esquecidas pelas elites dirigentes do Centro-Sul.
No que tange à distribuição de renda, valem alguns números esparsos, mas esclarecedores. Somente em 2.004, por exemplo, a renda per capita dos mais pobres engordou em 14,1%, ao passo que renda per capita média cresceu 3,6%.
À parte o cenário da crise externa e o terrorismo produzido pela mídia, a economia brasileira tem crescido substanciamente e gerado inclusão. Ampliou-se tremendamente a chamada classe média.
Segundo o Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (RJ), a renda per capita das pessoas de 15 a 60 anos saltou, em 6 anos, de R$ 514 para R$ 605. O índice Gini, que Mino Carta deveria estudar em seu recesso ressentido, caiu de 0,627, em abril de 2.002, para 0,584, em abril de 2.008. Para quem conhece essa Matemática, o resultado é notável.
A denominada miséria trabalhista (a linha das 135 pilas), em abril de 2.004, vitimava 30,4% dos cidadãos na faixa de 15 a 60 anos, nas seis grandes regiões metropolitanas. Em 2.008, esse número havia caído a 18,3%.
A classe média compunha uma fatia de 44,19% da população no último ano de governo do FHC. Em 2.008, chegou a 51,89%, segundo o CPS/FGV, com dados do PME/IBGE.
Esse número é mais expressivo se levarmos em conta que indivíduos da classe C migraram para as classes A e B. Essa ponta da pirâmide, que tinha 12,99% da população, em 2.002, engordou para 15,52% em 2.008.
Os estudos da FGV mostram que em 2.002, 45,72% dos jovens de 20 a 24 anos faziam parte da classe C. Em 2.008, já eram 55,75%. Entre aqueles entre 55 e 59 anos, o número saltou de 37,95% para 45,67%.
O rancor é uma arma poderosa, capaz de cegar, paralisar e expor o homem ao ridículo, mesmo quando lhe conduz uma mente prodigiosa.
Mino Carta é homem de talento, sábio e que muito tem a contribuir para a construção de um Brasil forte, democrático e pluralista. Que o bravo jornalista se livre do ódio e da vaidade e volte a jogar o bom jogo dos justos.
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