GIUSEPPE COCCO
(Folha de S.Paulo, TENDÊNCIAS/DEBATES, 20/2/2009, p. 2, em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2002200909.htm)
Fechar feridas dos anos 70, reconhecer a sua dimensão política
e, portanto, a do caso Battisti, é essencial para o futuro da democracia
OS CRIMES atribuídos a Cesare Battisti datam de mais de 30 anos. Mas são tratados como se tivessem acontecido ontem. Apareceu até um pequeno pelotão de supostos finos conhecedores da realidade italiana para sustentar que seus "crimes" não seriam políticos, pois a Itália seria então, como hoje é, uma democracia; que a repressão à luta armada da década de 1970, esquerdista ou direitista, teria sido feita dentro do marco da Constituição, sem leis especiais.
A vasta literatura de crítica às leis de "emergência" desenvolvida por juristas de porte internacional -como Luigi Ferrajoli e Alessandro Baratta- é simplesmente ignorada. Mas o que mais impressiona é a mistura de "palpites" sobre a história italiana e as definições policialescas do conceito de democracia.
"Depois de 20 anos de fascismo, os italianos, em 1948, elegeram o modelo republicano. A partir daí a Itália passou a viver democraticamente", escreveu Wálter Maierovitch nesta Folha (7/2/2009). Ora, o referendo que escolheu a república data de 2 de junho de 1946. Ao mesmo tempo, antes do fascismo, a Itália já era uma democracia (monarquia constitucional), e Mussolini -aliás, como Hitler- chegou ao poder pelas vias e mecanismos daquela democracia.
Mais importante: o "depois do fascismo" não foi fruto de eleições; foi uma conquista que passou pela guerra e pela luta armada. A data de referência na Itália é justamente o 25 de abril de 1945, "festa da libertação do fascismo", quando a Resistência e a população insurrecta ocuparam a cidade de Milão.
Cabe aqui perguntar: uma luta armada contra as ameaças do fascismo, na democracia dos anos 1920, não teria sido legítima? Não poderia ter conseguido evitar 20 anos de ditadura, os lutos da guerra e a vergonha das leis raciais e da deportação dos judeus italianos? Não teria faltado, na democracia italiana dos anos 1920, uma luta capaz de barrar o fascismo e assim consolidar a democracia mediante a sua renovação?
Também nesta Folha (12/2/2009) podemos ler que, em 1948, a nova Carta Constitucional entrou em vigor e, a partir de então, "a Itália é uma República democrática". Pedro Del Picchia parece não saber que 1948 é também o ano do atentado contra Togliatti, líder do Partido Comunista.
Por dois dias, quase toda a Itália do norte esteve sob controle das forças comunistas e da população insurrecta, à beira de uma guerra civil que só foi evitada pelos apelos do próprio Togliatti. Del Picchia ignora também que a Constituição democrática italiana sempre co-habitou com um emaranhado de leis e instituições fascistas: o Código Penal Rocco, o "concordato" entre Estado e Vaticano, o seguro-desemprego não-universal.
Já com esses poucos elementos, podemos ver que as dimensões formais da democracia italiana foram consolidadas pelas lutas dos que as conquistaram, defenderam e renovaram, com risco da própria vida -fosse contra os fascistas, os ocupantes nazistas ou as forças de polícia dos governos da Democracia Cristiana que não hesitavam em usar, nos anos 1950, as milícias mafiosas (o "bandido" Giuliano) para massacrar camponeses sem terra.
E, nos anos 1960 e 1970, os atentados "de Estado", bem no estilo do que no Brasil foi feito no Riocentro e foi tentado no Gasômetro do Rio. O Brasil era uma ditadura; a Itália, uma democracia. A Guerra Fria, no entanto, era uma só!
A potência da democracia -nos ensinam os grandes constitucionalistas- não está na obediência, mas no direito à revolta. Para afirmar a Constituição, "foram necessários protestos e luta, nas ruas e nos tribunais, por meio de uma guerra civil e da desobediência civil". Não é slogan de Battisti, mas discurso de Barack Obama na Filadélfia (18/3/2007), na trilha de Thomas Jefferson.
Hoje mesmo, os direitos dos trabalhadores estrangeiros na Itália não são protegidos pela Constituição formal, mas dependem das ruas, quer dizer, da capacidade de mobilização social, por exemplo, contra ou a favor a nova lei que obriga os médicos italianos a denunciar os imigrantes ilegais.
Os erros políticos da luta armada na Itália dos anos 1970 não cancelam a evidência de que o conteúdo democrático da democracia dependia e depende da vitalidade dos movimentos. A repressão dos movimentos significou o enfraquecimento da democracia italiana e o desaparecimento da esquerda: a xenofobia no poder!
Fechar as feridas da década de 1970, reconhecer a dimensão política daqueles eventos e, portanto, a do caso Battisti é fundamental para o futuro da democracia, na Itália e alhures.
GIUSEPPE COCCO , 53, cientista político, doutor em história social pela Universidade de Paris, é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entre outras obras, escreveu, com Antonio Negri, o livro Glob(AL): Biopoder e Luta em uma América Latina Globalizada".
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