segunda-feira, dezembro 26, 2011

Occupy 2012

23/12/2011, de You Scoop It, in Possible Futures
http://jdeanicite.typepad.com/i_cite/2011/12/occupy-next-year.html
“Vendeiro, vendeira! Vamos, vamos! Vamos ouvir nossa mamãezinha Mirabeau!”(Michelet, 1855, Les Femmes de La Révolution, cap. V: “Les Femmes Du 6 Octobre [1789]”)
http://www.gutenberg.org/files/18738/18738-h/18738-h.htm

“E insisto mais uma vez sobre o ‘plano’ de criarmos um jornal político para toda a Rússia”
(Lênin, "Por Onde Começar?". Iskra, n.º 4, maio de 1901)

Epígrafes acrescentadas pelos tradutores


Semana passada, fui para New York. Queria participar da tomada da Duarte Square. A ação acabou antes da nossa chegada. Mas assisti a uma interessante conferência, do grupo n+1. Houve painéis sobre finanças, ação direta, despejos e dívida. Entre os que falaram, estavam Doug Henwood and David Graeber. Havia cerca de 200 pessoas (mas não sou boa nesses cálculos).

McKenzie Wark estava sentado à minha frente. Disse duas coisas que me marcaram.

Primeira: vê-se que os EUA já são país do Terceiro Mundo, porque aqui praticamente todos os grupos organizados de ativistas já são, quase todos, ONGs.

Segunda: As questões do movimento são simples – falta de empregos, ‘austeridade’, dívida e sistema político fracassado.

Esse postado tem a ver, sem muito rigor, com essas duas ideias. A primeira é deprimente, mas não só porque nos põe diretamente, cara a cara, com a situação a que os EUA chegaram (a cidade de NY é hoje mais desigual que o Brasil). A ideia é deprimente, porque se vê que o modelo de ativismo via ONGs, por mais que tenha conseguido alguns poucos avanços, ainda não parou de devastar o chamado Terceiro Mundo, também chamado Sul Global.

O modelo de ativismo das ONGs é modelo que coopera com o capitalismo. As ONGs são orientadas para questões específicas e mantidas e movidas por dinheiro doado pelas corporações. Dependem sempre de especialistas e experts cuidadosamente selecionados pelos patrocinadores.

Geert Lovink, Jon Anderson e eu (na introdução da coleção “Reformatting Politics” que editamos) vemos, nos governos dos quais as ONGs participem, o que chamamos de “governalidade pós-democrática”. Dizemos “pós-democrática” porque as ONGs não têm representação democrática; até tentam ajudar, mas não representam, no sentido de que não são nem eleitas nem escolhidas sequer pelos que as ONGs se propõem a representar. Como logo se comprova, as ONGs não têm contas a prestar aos que dizem representar: só devem responder aos próprios membros, às diretorias e aos financiadores de cada ONG.

Para não deixar dúvidas: “pós-democrático” não é termo de crítica: é termo descritivo. Designa um tipo de ação política que surge e cresce quando a democracia ou já não tem fôlego; ou ainda não emergiu. Os traços “pós-democráticos” podem existir ao lado de práticas e instituições democráticas, como elemento pós-democrático (assim como as práticas e instituições democráticas também coexistem com elementos feudais).

Minha preocupação, no caso do movimento Occupy, é que pode acontecer de essa governalidade pós-democrática vir a truncar, ou vir a deslocar, as partes mais radicais e coletivistas do movimento. Preocupo-me com isso, por causa da alta qualidade das contribuições dos que falaram na Conferência n+1. Todos falaram focadamente, inteligentemente, sabiam do que falavam – e mostraram que haviam refletido dedicadamente às questões que discutiam. Eram especialistas, com saberes especializados. Alguns acabam de graduar-se. É possível que só agora tenham refletido, pela primeira vez, sobre algumas daquelas questões, porque o movimento radicalizou a discussão, e os pontos cruciais puderam ser identificados. Mesmo assim, ainda tive a impressão de que a discussão sobre algumas das questões e tópicos especiais passam ainda por momento de reflexão singular, ainda não conjunta nem coletiva.

As pessoas queriam que outros se juntassem a elas numa ou noutra questão especial, ou num ou noutro setor do movimento (dívida dos estudantes, moradia), mas ninguém estava cuidando de manter conectadas todas as partes[1]. Claro, é parte do ideário autonomista, tão influente: cada um deve perseguir com independência o que deseja, servindo-se da ‘marca’ política do movimento Occupy.

É surpresa que o público presente às Assembleias Gerais esteja diminuindo, que as Assembleias Gerais sejam cada vez menos cruciais (Boots Riley, músico e ativista do movimento de Oakland, escreveu recentemente sobre isso)? As Assembleias Gerais são muito cansativas e consomem muito tempo. E quebram a rotina das práticas, forçando as pessoas a um outro tipo de engajamento. Tudo que torna sensacionais as Assembleias Gerais também as torna difíceis e vulneráveis ao cansaço, à exaustão física; o que, por sua vez, torna as Assembleias Gerais vulneráveis a ‘conclusões’ que se aproximam perigosamente das práticas políticas já conhecidas, que servem ao sistema e à sobrevivência do sistema – as práticas do ‘ONGuismo’ e dos grupos ‘de cidadãos’ que atuam a favor de uma ou outra posição que une, só, o próprio grupo, contra todos os demais grupos.

O segundo ponto: há questões coletivas aqui; e são elas que mantêm a coesão do movimento. São as questões da justiça e da responsabilidade. Nossa economia promove injustiça e nosso sistema político não está respondendo responsavelmente àquela injustiça. Tudo, no movimento, tem de estar focado nessa direção: empregos e dívida.

O desafio do movimento para o próximo ano, parece-me, é crescer. Gente. Precisamos de mais gente. Não falo de alguma maioria do país. Falo de mais gente, para que mais ações sejam possível, ações maiores, mais dramáticas. Precisamos de gente para podermos fazer uma greve geral, para ocupar o Senado, para derrubar mercados financeiros. Precisamos de mais gente, para empurrar o sistema falido para o fundo do poço.

Como se faz tudo isso? Com serviços e ação direta. Nada disso e fácil e tudo consome muito tempo. O risco de todas as nossas ações é que rapidamente se tornam personalizadas, são localizadas, des-radicalizadas, reinseridas nos quadros ‘regulares’ da ‘normalidade’ (protestos de massa também podem tornar-se ‘regulares’ e ‘normais’). Por isso, quanto mais serviços (suspender despejos e execução de dívidas, por exemplo, ações que tiveram tanta importância nos eventos de 6/12) conseguirmos oferecer, para trazer mais gente para um movimento mais amplo, mais fortaleceremos o movimento – como uma força nacional e global que ele deve ser.


[1] Sobre isso, ver A “farsa democrática” e o desafio de inventar a democracia futura (1 e 2), 7/11/2011, Samir Amim, em http://redecastorphoto.blogspot.com/2011/12/farsa-democratica-e-o-desafio-de.html, onde se lê:

“A condição fundamental que permitirá que esse reagrupamento de combatentes realmente trabalhe pela mesma causa é a tomada de consciência do caráter imperialista do sistema que há. (...) Se insisto na dimensão anti-imperialista dos combates a fazer, é porque essa é a condição da possibilidade de construir uma convergência entre as lutas do Norte e do Sul do planeta [negritos dos tradutores]”.

O artigo aqui traduzido, escrito ao calor da hora do movimento Occupy, está ainda muito longe desse tipo de clareza: aqui só se fala da necessidade de manter todo o movimento Occupy focado em torno de algumas causas gerais. Mas o artigo faz BOA CRÍTICA das ONGs e ONGuismos. E é estimulante que já se encontre aí, pelo menos, um ponto onde inserir, embora ainda só em NOTA DE RODAPÉ, alguma reflexão mais madura sobre a importância de fazer convergir todas as lutas de todos os pobres do mundo – importância da qual o movimento Occupy ainda não se deu conta.

Pode-se até dizer que descobrir (ou reconstruir?) o ‘elo imperialista’ que conecta entre eles todos os movimentos de todos os pobres do mundo pode vir a ser o teste crucial pelo qual o movimento Occupy ainda terá de passar. Que seja! Só a luta ensina [NTs].