segunda-feira, dezembro 26, 2011

Guerra do Iraque maquiada


Alguém deveria informar aos produtores e distribuidores de noticiário, que os cerca de 4.500 soldados norte-americanos mortos na guerra do Iraque não são as únicas vítimas a lamentar. Morreram também centenas de milhares de iraquianos, resultado da tresloucada invasão norte-americana, e muitos mais foram feridos e/ou mutilados para sempre.

Não fosse a ação alucinada do ex-presidente George W Bush e seu bando de neoconservadores, é alta a probabilidade de que essas vítimas da guerra do Iraque ainda estivessem vivas hoje. O Iraque foi destruído várias, várias vezes, por uma mistura bizarra de ambição evangélica, mania de fazer-se ver como ‘mocinho’ de filme de caubói e desejo patológico de “garantir a segurança de Israel”.

Matéria curta, exibida pela rede WTKR, afiliada da rede CBS de televisão em Vírgina, citada em matéria do Los Angeles Times Online dia 16 de dezembro, mostrava uma bandeira dos EUA sendo hasteada numa pequena base militar em Bagdá. Na cerimônia, o secretário de Defesa Leon E. Panetta reiterou os sacrifícios dos EUA e tentou apresentar sob a luz de alguma racionalidade uma das guerras mais destrutivas, na memória recente do mundo. Vários outros noticiários também declararam terminada a guerra do Iraque, embora alguns manifestassem dúvidas sobre se os iraquianos – apresentados como historicamente, se não geneticamente, violentos – conseguirão administrar a própria vida, agora que os EUA davam por encerrada sua intervenção ‘humanitária’.

Numa revisão rápida dos fatos: Estimativa publicada em The Lancet informou que, entre março de 2003 e junho de 2006, 601.027 iraquianos sofreram morte violenta. Levantamento feito por Opinion Research Business, fixou em 1,03 milhão o número de mortos na guerra do Iraque, de março de 2003 a agosto de 2007. WikiLeaks publicou declaração em que se lia que “dentre os quase 400 mil documentos secretos dos EUA sobre a guerra do Iraque que divulgamos, vários documentos comprovam que os EUA sabem que morreram pelo menos 15 mil iraquianos a mais do que antes supunham.” Isso, além das centenas de milhares de iraquianos mortos ao longo da década de sítio que os EUA impuseram ao Iraque, e as centenas de milhares que foram mortos durante a primeira guerra do Iraque, entre 1990-91.

À parte os números, a imprensa-empresa em todo o mundo está hoje dedicada a reescrever os parâmetros da discussão, numa operação de omissão, apagamento e o mais escancarado racismo.

Tome-se, por exemplo, o artigo de Loren Thompson na revista Forbes. Thompson entende que a guerra foi erro – não por causa das mentiras, da imoralidade ou da ilegalidade – mas, exclusivamente, pelos muitos erros cometidos envolvendo recursos, indecisão, falta de objetividade, ou por causa do sectarismo dos iraquianos, ou por causa da inconsistência das decisões militares e outras causas desse tipo. Apesar desses erros “nossas intenções eram boas” – garante Thompson[1].

Para evitar que alguém o tomasse por ‘esquerdista imbecil antiguerra’ – que é como a imprensa-empresa de direita apresenta qualquer um que se oponha por qualquer motivo às guerras dos EUA – Thomson faz um comentário interessante:

“O que os políticos e a maioria dos eleitores nos EUA já sabem hoje é que o Iraque, em primeiro lugar, nem deveria ser país; tentar fazer a democracia funcionar lá sempre foi, mesmo, missão sem futuro”.1

Esse tipo de intransigência, de falta de decência democrática (destruir um país soberano e, para justificar a destruição, negar-lhe o direito de algum dia ter existido) – eco perfeito do que Israel diz sobre o que faz na Palestina – é traço sempre presente em todos os veículos da grande imprensa-empresa nos EUA, dessa vez nas representações que oferecem da Guerra do Iraque.

Em artigo no Los Angeles Times de 15/12, David S. Cloud e David Zucchino reconhecem, embora atrasados, que iraquianos foram mortos. Mas citam o menor número de mortos que encontraram (do website Iraqi Body Count), e recorreram a generalizações tão vagas, que acabam por culpar os iraquianos por todas as violências: “Sem os EUA, caberá aos iraquianos controlar a violência endêmica naquele país.”[2]

Sim, “endêmica” – uma endemia de violência: violência que seria “natural ou característica de povo ou local específicos”, como diz o dicionário. Se os iraquianos são naturalmente violentos, violentos por causa de sua cultura, de sua religião, ou mesmo que fossem geneticamente violentos... por que o número de mortos cresceu tanto, no Iraque, a partir de março de 2003, data da invasão norte-americana? Quem tomou a decisão de ir à guerra, tornando a violência “endêmica” no Iraque? Com certeza, não foram os iraquianos.

Tampouco foram os iraquianos os culpados por ressemear sementes dos conflitos sectários. Estimular a violência sectária também foi estratégia para redefinir o papel dos militares no Iraque: pararam de ter de encontrar armas de destruição em massa (que jamais existiram) e puseram-se a combater o terrorismo – e, simultaneamente, jogavam gasolina no fogo da violência sectária.

Em termos militares crus, é possível que a guerra do Iraque esteja acabada, mas no que tenha a ver com o povo do Iraque, a guerra continua. O ‘experimento’, iniciado há nove anos com bombardeio para gerar “choque e pavor”, reaparecerá nas futuras políticas dos EUA. Toda a região foi convertida em espinha dorsal de um Império norte-americano que enfrenta a decadência.

Em seu influente livro A Doutrina do Choque - a Ascensão do Capitalismo de Desastre, Naomi Klein mostrou como a guerra do Iraque foi concebida como modelo para todo o Oriente Médio. Foi um teste, cujo sucesso influenciaria a geopolítica de toda a região. No capítulo intitulado “Apagar o Iraque: À procura de um modelo para o Oriente Médio”, Klein expõe a tentativa de destruir e em seguida ressuscitar o país, de modo a que passasse a caber melhor na forma que mais interessava aoss que provocaram a destruição. A autora conclui assim a Parte 5 do livro: “De fato, no final, a guerra do Iraque criou um modelo econômico: o modelo da guerra e da reconstrução privatizadas – modelo que rapidamente se tornou produto de exportação.”

Em artigo para FoxNews Online, sob o título “Iraque: vitória ou derrota?”, Oliver North não perde tempo com tentar mostrar-se isento, nem com manifestar qualquer simpatia aos iraquianos. “Quem venceu a guerra?” – pergunta ele. “Essa é fácil: os soldados, marinheiros, pilotos, policiais e Marines dos EUA e o povo dos EUA, cujos filhos e filhas serviram no Iraque.”[3]

Foi esse tipo de patriotismo irracionalista, esse fanatismo de torcedor de futebol, que tornou a guerra possível. E continuará a facilitar guerras futuras, que serão apresentadas ao ‘público interno’ e, daí, ao mundo, como mais vitórias falsas.

Quanto aos milhões de norte-americanos (e muitas outras pessoas, nos EUA e em todo o mundo), gente que valentemente, corajosamente, se opôs à guerra, continuam a opor-se.

Se os EUA contam com reconquistar um átomo de credibilidade em todo o mundo, que parem de pensar a guerra como mera oportunidade estratégica. A guerra é brutal e desumana. É caríssima, em vários planos de valor e em vários sentidos. E suas consequências terríveis persistem ao longo de várias gerações – como o futuro do Iraque comprovará, sem dúvida e muito infelizmente.

[1] 15/12/2011, “Iraq: The Biggest Mistake In American Military History”, Forbes, in http://www.forbes.com/sites/lorenthompson/2011/12/15/the-biggest-mistake-in-american-military-history/
[2] 15/12/2011, Los Angeles Times, “Final U.S. troops roll out of Iraq”, em http://www.latimes.com/news/nationworld/world/la-fg-iraq-last-convoy-20111219,0,1239565.story
[3] 16/12/2011, Oliver North, “Iraq: Victory or Defeat?” http://foxnewsinsider.com/2011/12/16/iraq-victory-or-defeat/