quinta-feira, agosto 03, 2006

A tecnologia não garante a democracia

Uma proposta para construção democrática de uma lei geral de comunicação eletrônica

Por Israel Fernando de Carvalho Bayma

Um grande tema mobiliza a área tecnológica em todo o mundo desenvolvido: a convergência tecnológica. Ela é resultado do brutal avanço tecnológico alcançado pela humanidade o qual nos permite, hoje, integrar voz, dados e imagens por meio das novas plataformas digitais, as chamadas tecnologias da informação e comunicação (TICs). A comunicação social eletrônica é uma dessas TICs cujo segmento das comunicações compreende a radiodifusão aberta (rádio e televisão de recepção gratuita), a televisão por assinatura, e as demais mídias eletrônicas. E é este importante setor que vive um momento de transição decorrente da existência de uma configuração integrada dessas novas plataformas tecnológicas digitais.
E o que isto interessa à população brasileira? Vejamos a situação do Brasil na área das comunicações. O País tem 43,5 milhões de domicílios com rádio e somente 3,7 milhões de assinantes de televisão segmentada. Em 1997, o número de telefones por cada 100 habitantes era de 11,7%; em 2004, passou para 29%. Apesar de a telefonia chegar a praticamente todos os 5.484 municípios do território nacional, nos 5.000 municípios mais pobres, a teledensidade é a mesma de antes da privatização: 11% - 7,5 milhões de linhas. Nos 484 municípios restantes, a teledensidade é de 40,6% - 43,9 milhões de linhas. Estes municípios detêm 61% da população e representam 80% do consumo nacional, concentrando 85% das linhas. Se considerarmos que muitos domicílios têm mais de uma linha e que boa parte das linhas está no mercado corporativo, a média de 29 telefones em cada 100 habitantes é bem menor na realidade. Com relação à telefonia móvel, 2.962 municípios não dispõem de telefonia móvel. Já 1.054 municípios têm apenas uma operadora e não existem metas de universalização estabelecidas na lei. As operadoras de telefonia móvel concentraram as suas atividades nos mercados mais atrativos, ou seja, cidades com maior índice populacional. Embora o Brasil tinha mais de 5 milhões de hosts da Internet, ocupando a 9ª posição no mundo, possuía, em 2005, somente 11 milhões de usuários ativos acessavam a rede mundial.
Por outro lado, em 2003, esse setor econômico movimentou cerca de US$ 3,8 bilhões no Brasil, entre publicidade, assinaturas, ingressos e vendas e DVDs e vídeos. 103 milhões de ingressos foram vendidos nas 1.817 salas de exibição, com faturamento de US$ 225 milhões. O País é o 52º mercado do mundo em número de salas, mas o 12º em número de ingressos. Entre 2003 e 2004, 133 novas salas foram inauguradas e, em 2004, 51 filmes nacionais foram lançados, embora só as 4 distribuidoras estrangeiras detenham 89% do mercado – mais de 80% de títulos estrangeiros (predominantemente EUA). Embora os EUA tenham 8.132 habitantes por sala de cinema e a Argentina 33.399, o Brasil tem 97.028. Enfim, o País tem poucas salas que são freqüentadas por uma parcela muito pequena da população. Assim, a TV aberta, que é o centro da economia do audiovisual, com 42 milhões de domicílios com aparelhos de televisão, representando 59% do mercado e um faturamento de US$ 2,26 bilhões (2003), constitui-se na grande oportunidade de lazer e entretenimento para a população brasileira.
Enfim, grandes parcelas da nossa população brasileira estão excluídas desses avanços tecnológicos. O que corresponde a uma enorme dívida informativo-cultural com a maioria da nossa população. Por isso, configura-se uma ocasião ímpar para que se caminhe no sentido de consolidar o importante direito à comunicação e, portanto, o acesso às tecnologias digitais àqueles grupos que, historicamente, não têm sua voz nelas representada. E é candente que o novo Governo Lula faça as transformações que o setor precisa.
A recente decisão do Governo Lula de implantar a televisão digital deve ser propulsora para que o País rompa, de uma vez por todas, com a preponderância de interesses econômicos e políticos em detrimento da regulação das comunicações e de sua democratização. E essa modernização da televisão brasileira deverá servir para que se crie mais uma oportunidade de articular novos regramentos que possam lidar com questões como o monopólio versus diversidade na oferta de informações; o compartilhamento do uso do espectro radioelétrico; as novas ofertas de serviços como a televisão e o rádio digitais; a comunicação por satélites; as tecnologias de voz sob IP (VoIP); e as comunicações WI-FI e WI-MAX. Enfim, a democratização das tecnologias de informação e comunicação.
Esse quadro, já amplamente diagnosticado pelo Governo Lula, impõe a necessidade de que se elabore um novo modelo institucional, apoiado no Capítulo da Comunicação Social da Constituição Federal, mediante uma ampla discussão com a sociedade e que se formule, no âmbito do Executivo e Legislativo, um avançado marco regulatório. É fundamental que esse novo regramento normativo-institucional defina papéis, estabelecendo marcos regulatórios onde não existam e, ao mesmo tempo, atualize e consolide a legislação esparsa, fragmentada e dispersa do setor de comunicação social eletrônica no País.
Com base no compromisso firmado com a sociedade brasileira, o novo modelo setorial deverá corrigir as atuais distorções existentes na organização e no funcionamento destes serviços e orientar as profundas transformações que serão introduzidas pela tecnologia digital. A legislação a ser elaborada deverá conter, entre outros, um adequado equilíbrio e proporção entre os sistemas Privado, Público e Estatal de radiodifusão, conforme previsto na Constituição. Deverá estabelecer, também, condições para que os serviços de Comunicação Social Eletrônica tornem-se competitivos, com diversidade e pluralidade empresarial, evitando índices de concentração da propriedade e da produção de seus conteúdos que impeçam ou desequilibrem a concorrência, estimulando que esta se dê apenas pela qualidade dos serviços.
Várias são as razões para que o novo Governo Lula elabore, de forma democrática, um novo modelo institucional para o setor estimulando a participação ativa da sociedade civil organizada na sua construção. Como expressão principal de seus inovadores fins culturais, políticos e econômicos, a Política de Comunicação Social do novo Governo Lula deverá reestruturar o atual sistema de rádio e televisão educativos, transformando-o em um moderno sistema nacional de rádio e televisão públicos, via fundo público e aportes privados de caráter não-comercial. Deverá implementar um amplo programa de capacitação para leitura crítica dos meios de comunicação social e debate da estética, com a mobilização do sistema formal de educação, público e privado, bem como outros meios e sistemas não formais de educação. O programa visará a criação de condições para a compreensão, pelos cidadãos, dos recursos de linguagem e artifícios editoriais empregados pela mídia, análise crítica dos conteúdos e debate da estética, de forma a romper a passividade e a mera submissão aos conteúdos veiculados, com o estímulo à adoção de uma atitude humanizada e humanizadora diante dos veículos de Comunicação Social.
Finalmente, consideramos que qualquer proposta de construção democrática de um novo ambiente regulatório para o novo modelo institucional da Comunicação Social Eletrônica brasileira, ex ante, somente seja definido, no âmbito dos Poderes Executivo e Legislativo, após um amplo processo de debate na sociedade, pelos especialistas, pelas Universidades e centros de pesquisa, pelos movimentos sociais e suas instâncias representativas, pelo empresariado e suas instâncias.

Israel Fernando de Carvalho Bayma é Assessor Especial da Casa Civil da Presidência da República e pesquisador do Laboratório de Política de Comunicação (LaPCom) da Universidade de Brasília (UnB)